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Toda moeda tem dois lados; toda ação provoca uma reação; todo perseguidor tem uma

vítima. A perspectiva da criança nazista, dita forte, corajosa, brava, disposta a dar a própria

vida, é muito diferente da perspectiva da criança perseguida: com medo, um medo não

compreendido por ela mesma, uma situação de confusão e desordem que aos poucos foi se

instaurando em sua vida; fome, muita fome; frio; doenças.

Graças aos diários escritos durante a perseguição nazista e aos relatos dos sobreviventes

do Holocausto é possível mensurar em que condições essas crianças viveram.

Hitler deu aos “seus meninos e meninas” o poder de decidir sobre a vida de outros, de matar, espancar, humilhar, o que foi visto com bons olhos pelos pais e líderes e os encantava:

a sensação de poder, mesmo para crianças. Os diários e depoimentos de sobreviventes estão

repletos de trechos de perseguições, surras, humilhações, episódios de fome, cansaço físico e

mental e o constante medo do desconhecido: o que virá depois? Para onde vamos? O que farão

conosco? Retornaremos?

Como dito, as Leis Raciais de Nuremberg excluíam os “indesejáveis” dos locais públicos,

lugares esses nos quais as crianças estavam acostumadas a frequentar, como parques, cinemas,

restaurantes e lojas. Depois tiveram de usar estrelas amarelas costuradas às suas roupas, identificando sua “falta de pureza racial”, o que causava grande constrangimento às crianças. Em muitos casos seus pais estavam desempregados e sem perspectiva de mudar a atual situação.

A notícia de que judeus não poderiam ser empregados em cargos governamentais causou agitação entre as famílias. Depois, nenhum “ariano” [...] poderia dar emprego a um judeu [...] Entre outras, houve uma ordem que realmente me deixou chateada: a expulsão de crianças judias de escolas públicas.

Foi adicionado um aviso aos cardápios de todos os restaurantes, impresso em letras grandes para ninguém deixar de ver: ‘Judeus não são permitidos’[...] (WEISS, 2013, p. 31; 34).

[Pavel]45: Eu me lembro de ser perseguido em Praga. Nós tínhamos de vestir uma

estrela amarela e nossa liberdade de movimento e oportunidades de brincar com outras crianças era restrita (GRUENBAUM, 2004, p. 109, tradução nossa).

Mísa é um dos sobreviventes de Terezín. Ele relatou suas experiências no campo na

bibliografia de Gruenbaum (2004). Segundo Mísa, a perseguição antes do confinamento em

Terezín foi um período terrível, seu pai ficou desempregado e perdeu todas as suas

propriedades. Mísa e sua família tiveram de se mudar de um apartamento grande e espaçoso

para um bem menor.

Depois, ele teve de ir morar com a avó e sua irmã foi morar com uma tia, depois com seus

avós. Toda conta bancária havia sido confiscada e sua família ficou numa situação financeira

bem complicada. Mísa conta que teve de fazer cintos e vender nas ruas. Ele andava em torno

da cidade tentando encontrar bitucas de cigarro para reutilizar o tabaco e fazer novos cigarros.

A mãe começou a trabalhar em um berçário judaico, ao lado de seu prédio.

Segundo Mísa, o que lhe incomodava profundamente era o fato de ter de usar a estrela

amarela costurada à roupa. As outras crianças o perseguiam e jogavam pedras nele, o que era

muito assustador. Suas aulas tinham de ser escondidas em vários lugares diferentes, pois as

escolas haviam sido proibidas aos judeus.

Os tempos eram muito ruins para mim, mesmo não estando consciente de tudo o que estava acontecendo. Em novembro de 1942 minha mãe, minha irmã e eu fomos chamados para um transporte. Nos permitiram levar apenas alguns de nossos bens conosco. Marchamos através de Holesovice para a estação de trem. Eu me lembro de ter visto muitas pessoas na rua principal assistindo àquele estranho desfile; notei nossa velha governanta tristemente acenando para nós. Nós fomos amontoados no edifício

Fairground e tivemos de ficar lá por alguns dias e noites, dormindo no chão, uma

pessoa junto da outra. Eu ainda me lembro de estar perto de um deficiente mental que comia seu próprio excremento [...].

Para mim, ir para Terezín foi quase um alívio, já que eu não tinha que me preocupar mais com crianças jogando coisas em mim (GRUENBAUM, 2004, p. 83-84, tradução nossa).

Ruth Klüger também relatou suas experiências quando criança durante a Segunda Guerra

Mundial. Ela narra como foi hostilizada em sua cidade natal, Viena46, e as dificuldades pelas

quais teve que passar:

Passei por oito escolas diferentes em cerca de quatro anos. Quanto menos escolas sobravam para nós [judeus], tanto mais distante era o caminho até elas, tínhamos de tomar o bonde e outros transportes urbanos nos quais não nos era permitido sentar. Quanto mais longa a distância tanto menor a chance de evitar encontros e olhares hostis. Chegava-se à rua e pisava-se em terra inimiga. Pouco mitigava esta sensação desagradável o fato de que nem todos os transeuntes eram hostis.

Na aula de trabalhos manuais, minhas coleguinhas aprendiam agora a fazer suásticas recortando e colando papel colorido, nós, quatro ou seis meninas judias, podíamos colar o que quiséssemos [...]. De vez em quando as meninas arianas aproximavam-se e deixavam que admirássemos seu lindo trabalho de colagem. Podíamos criticar e comparar. Era óbvio que isso não poderia continuar assim, e as autoridades logo perceberiam. As crianças judias foram expulsas das escolas públicas e encaminhadas à sua própria escola (2005, p. 17; 39).

Depois das perseguições e da segregação vieram os campos de concentração e todo o

processo de desumanização executado neles. Antes de serem enviadas a Terezín, as crianças

passaram pela dolorosa espera pelos transportes. Não havia certezas sobre para onde as famílias

seriam mandadas e nem como seriam as condições de vida neste lugar, o que gerou grande

medo e ansiedade na população checa.

Ao chegar a Terezín, as crianças eram separadas de suas mães e pais e levadas aos

alojamentos para meninos e meninas, onde viviam em quartos superlotados. As crianças bem

pequenas (a bibliografia consultada não menciona a idade, mas acreditamos que seja abaixo

dos oito anos de idade) eram enviadas a um berçário ou creche, onde podiam receber a visita

dos pais com frequência. Todos os quartos dos alojamentos infantis possuíam cuidadores.

[Na chegada a Terezín], com olhos saudosos, famintos, fitamos o último ponto onde vimos os maridos, pais, irmãos e filhos. Mesmo garotos de quatorze anos são contados como adultos e não podem ficar com suas mães (WEISS, 2013, p. 71).

A falta de regras claras, as mudanças repentinas de humor dos guardas, a incerteza, de

forma geral, eram estratégias utilizadas pelos nazistas para confundir e amedrontar os detentos

nos campos de concentração.

Amanhã pode vir uma ordem diferente. Aqui ninguém tem certeza de nada.

[...] todos os habitantes do gueto, desde as crianças mais novas no Säuglingsheim [lar de bebês] até os mais velhos, foram levados a uma imensa campina (a bacia Bohusovice), alinhados às centenas e mantidos de pé desde o raiar do dia até a mais profunda escuridão, sendo rearranjados e recontados a todo momento [...] (WEISS, 2013, p. 83, 106-107).

[Alice Herz-Sommer]47: Enquanto o dia passava, cada vez mais pessoas

(especialmente as idosas) desmaiavam, caindo no chão. Algumas perdiam a consciência. Outras, embora conscientes, eram incapazes de se manter em pé. Mesmo muitos dos prisioneiros mais jovens estavam esgotados. Alguns se esgueiravam furtivamente para o final das filas, onde se agachavam sem que a polícia e os homens da SS percebessem, para descansar seus corpos esgotados durante alguns minutos (BRENNER, 2014, p. 237).

Em Terezín, as piores situações enfrentadas pelas crianças eram a fome constante, pois a

ração era insuficiente para crianças, adultos e principalmente idosos, as doenças contagiosas,

que dizimaram muitas pessoas, o fato de estarem separadas de seus pais, a falta de higiene, as

pragas e, principalmente, o medo dos transportes que partiam de Terezín rumo ao leste Europeu.

Esses aspectos podem ser observados nas anotações realizadas por Helga Weiss48 em seu diário:

47 Sobrevivente de Terezín. Neste trecho, tanto Helga Weiss quanto Alice Herz-Sommer, referem-se à contagem

ocorrida em Terezín, em 11 de novembro de 1943. Relatos sobre essa contagem aparecem no depoimento de outros sobreviventes.

48 Helga Weiss nasceu em 1929, em Praga. Depois de sobreviver ao Holocausto, Helga voltou à sua cidade natal,

Pensamos que, por estar em Terezín, seríamos poupados de mais situações como essas. Agora, parece que esses “transportes” nunca terão fim.

Nossa ração é um pedaço de pão para três dias e, além do mais, mofado.

Dizem que algumas crianças polonesas estão a caminho. [...] Seu aspecto é terrível. É impossível adivinhar as idades. Têm rostos cansados, envelhecidos e corpinhos minúsculos. Grande parte não tem meias e só algumas estão calçadas. Elas retornam da Entwesung [Desinfestação] com as cabeças raspadas; ouvimos dizer que tinham piolhos. Todas têm olhares aterrorizados e resistiram, amedrontadas, quando lhes mostraram os banheiros. Tinham medo de que fosse gás?49

Icterícia e tifo estão fora de moda. Surgiu uma doença nova: encefalite.

Eca, esses percevejos nojentos! É impossível dormir. [...] Eles se arrastam pelas paredes, pelos edredons, por todo o corpo, caem em nosso rosto.

[...] um banho pela primeira vez em três anos (2013, p. 79, 81, 105, 111, 112, 124, 125).

Algumas crianças também enfrentaram uma rotina de trabalho. Kikina, Mísa e Pavel

relataram suas experiências de trabalho em Terezín e outros campos:

Nós trabalhávamos ao ponto da exaustão. Estávamos desgastados e dormíamos enquanto caminhávamos.

Era inverno e estava ficando um pouco frio. Nós não tínhamos comida suficiente e nem roupas quentes. [...] Nossa saúde estava deteriorando. Eles [nazistas] nos mudavam de campo para campo. Nós estávamos no meio da floresta e eles estavam construindo fábricas clandestinas, e nos mandaram fazer um trabalho duro, o que era difícil para a idade de 13 e 15 anos (GRUENBAUM, 2004, p. 74, 109, tradução nossa).