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Breve apresentação do perfil e das principais ideias dos autores selecionados

Antes de iniciarmos a análise dos desenhos, faz-se importante apresentar brevemente a

trajetória dos autores selecionados, bem como um apanhado geral de suas teorias, que serão

utilizadas como parâmetro para melhor compreensão da produção artística ocorrida em Terezín.

Arno Stern nasceu em Kassel, Alemanha, em 1924. Ao ser perseguido durante o Regime

Nazista, Stern fugiu juntamente com seus pais, permanecendo dois anos em um campo para

refugiados na Suíça e, aos 18 anos, radicou-se na França. Nesse país, foi-lhe solicitado que

prestasse apoio a um grupo de crianças órfãs de guerra em um centro de assistência. De acordo

com Ivaldi (2014),

sem conhecimentos prévios para realizar essa tarefa, mas com uma grande empatia e capacidade de escutar as crianças, Stern descobriu a atração que uma caixa de pintura provoca nelas. Assim surgiu a primeira de suas “oficinas”, dando origem a uma longa atividade como investigador, que o levou a desenvolver a teoria da existência de um código universal, de uma memória orgânica (formulação), composta por figuras arcaicas, primárias e essenciais (p. 13, tradução nossa).

Sua chamada “Teoria da Formulação” também é conhecida como Semiologia da Expressão.

Viktor Lowenfeld nasceu em Linz, na Áustria, em 1903, e, de acordo com Leshnoff

(2013), foi um dos mais influentes arte-educadores do século XX. Suas primeiras experiências

no campo da educação ocorreram no Instituto Hohe Warte para Cegos, uma instituição judaica

localizada em Viena, onde Lowenfeld ensinou e documentou as atividades escultóricas

desenvolvidas por estudantes parcial ou totalmente cegos, e na Chajes Realgymnasium, escola

judaica de Ensino Médio, também de Viena, local em que Lowenfeld ensinou arte e matemática

por 14 anos, antes de fugir dos nazistas em 1938, imigrando para os Estados Unidos. Anos mais

tarde, ele receberia a notícia de que seus pais haviam morrido durante o Holocausto. A Chajes

Realgymnasium, assim como outras escolas europeias, foi influenciada, no pós I Guerra

Mundial, pela reforma escolar. Isso, além de outras questões, aponta a influência do Movimento

Escola Nova no pensamento e prática de Lowenfeld.

Em 1947, Lowenfeld publicou suas teorias sobre as fases do desenvolvimento da arte

infantil através da obra “Creative and mental growth”94, cuja versão de 1970, escrita em parceria

com W. Lambert Brittain, é utilizada nesta pesquisa.

Ele estruturou sua filosofia de arte-educação, fornecendo para “cada professor uma compreensão do relacionamento íntimo entre o crescimento e a expressão criativa” ao defender que a liberdade de expressão criativa individual poderia levar ao bem-estar emocional, social e psicológico (LESHNOFF, 2013, tradução nossa).

Para Lowenfeld e Brittain, o desenho infantil seria um reflexo dos sentimentos da criança,

de sua capacidade intelectual e criadora, de sua percepção, seu gosto estético e de sua evolução

social enquanto indivíduo. De acordo com os autores, conforme a criança cresce e se

desenvolve em diferentes áreas, seus desenhos acompanham essa evolução.

94 LOWENFELD, Viktor. Creative and mental growth. New York: Macmillan Co., 1947. A versão em língua

De acordo com Leshnoff (2013), Lowenfeld era um talentoso arte-educador que

encorajava a autoexpressão e o pensamento crítico, se preocupava com as características

técnicas dos trabalhos, acreditava na educação de todos os sentidos, não apenas da visão, e

criava em suas classes uma atmosfera de muita liberdade, diferentemente de seus

contemporâneos.

Para Lowenfeld e Brittain, o desenho infantil apresenta os interesses da criança de acordo

com os recursos gráficos de seu estágio evolutivo. Segundo os autores, a criança percorre

diferentes fases do desenvolvimento de sua personalidade e de sua capacidade criadora, que

vão da infância à adolescência, assim descritos como: Fase das Garatujas, dos dois aos quatro

anos de idade; Fase Pré-esquemática, dos quatro aos sete anos de idade; Fase Esquemática, dos

sete aos nove ano de idade; Fase do Realismo, dos nove aos 12 anos de idade; Fase do

Pseudonaturalismo, dos 12 aos 14 anos de idade; e Fase da Decisão, dos 14 aos 17 anos de

idade (1970, p. 9).

A Fase Pré-esquemática apresenta imagens circulares e linhas que sugerem uma figura

humana ou animal. Durante esse estágio a ideia visual é desenvolvida. As figuras construídas

pelas crianças têm relação com os objetos do mundo, mesmo que ainda não sejam totalmente

perceptíveis aos adultos. Os objetos dispostos na folha ainda não se relacionam entre si e o uso

da cor é mais emocional do que naturalista.

Na Fase Esquemática a criança desenvolve o conceito de esquema.

O esquema pode ser determinado pelo modo como a criança vê alguma coisa, pelo significado emocional que ela lhe atribui, pelas suas experiências cinestésicas, pelas impressões táteis do objeto ou pela forma como o objeto funciona ou se comporta (LOWENFELD e BRITTAIN, 1970, p. 183).

Nessa fase, a criança também demonstra maior consciência em relação ao espaço, onde

agora observamos a presença de linhas de base e de horizonte, mas o desenho permanece sem

perspectivação. Os objetos relacionam-se espacialmente e as cores são usadas de forma

espelhamento, ou seja, quando as figuras apresentadas estão perpendiculares à linha de base.

Outro fenômeno é o chamado “raio X”, quando a criança desenha algo visto de dentro e de fora

ao mesmo tempo.

Na Fase Realista a criança atinge a consciência do eu e se torna auto-crítica. O esquema

deixa de ser adequado e a criança se sente ávida por transmitir particularidades em suas figuras.

Nessa fase, a criança se dá conta do distanciamento existente entre seus desenhos e o mundo a

sua volta, tal como ela o percebe. A criança adquire maior consciência a respeito da perspectiva.

Os objetos, aos poucos, abandonam a linha de base e os efeitos tridimensionais são conseguidos

também através do uso de sombras e combinações de cores.

O estágio do Pseudonaturalismo é marcado pela importância do produto final,

diferentemente dos estágios anteriores em que o processo era mais importante. A Fase das

Garatujas será mencionada na análise dos desenhos de Jana Hellerová, a única criança do corpus

de pesquisa cujos trabalhos pertencem a esse estágio.

Filósofo e etnógrafo, Georges-Henri Luquet nasceu na França, em 1876. Suas teorias

sobre o desenho infantil foram formuladas a partir da observação sistemática de crianças no ato

de desenhar, acompanhando e registrando suas ações e verbalizações antes, durante e depois. “Analisando a produção de desenhos pré-históricos, primitivos e de crianças, [...] Luquet percebe o desenhar como um ato de representação da realidade” (DUARTE, 2007).

Luquet designa o desenho infantil como realista baseado na observação da natureza de

seus temas e de seus assuntos. Para o autor, num primeiro momento, a criança traça linhas no

papel por imitação à escrita. Num segundo momento, ela passa a estabelecer analogias visuais entre as linhas grafadas e determinados objetos. E, num “terceiro momento, em que o desenhar parece mesmo definido, no qual a criança se esforça para estabelecer semelhanças entre o seu desenho e um objeto qualquer do seu cotidiano” (Ibid.).

Dessa forma, assim como Lowenfeld e Brittain, Luquet também construiu suas teorias a

partir de fases do desenvolvimento do desenho infantil. O autor nomeia essas fases como

Realismo Fortuito, a partir dos dois anos de idade; Realismo Fracassado, entre três e quatro

anos de idade; Realismo Intelectual, que se inicia aos quatro anos, podendo se estender aos 12

anos de idade; e Realismo Visual, que se inicia por volta dos oito ou nove anos de idade.

Luquet afirma que a criança desenha a partir de um modelo interno. A noção de modelo interno fundamenta sua teoria das etapas do desenvolvimento. “Todo desenho é a tradução da imagem visual que forneça o motivo apresentado e, acreditamos, de uma imagem visual mais

ou menos nítida realmente presente no espírito do desenhista no momento que ele desenha, o que nós denominamos modelo interno” (LUQUET, 1913, p. 145 Apud DUARTE, 2007). Para o autor, o modelo interno é um exemplar mental que a criança reproduz quando realiza um desenho de memória ou quando “copia” um objeto que está diante dos seus olhos. Na visão de Luquet, o que a criança desenha é aquilo que ela sabe sobre determinado tema, ou seja, é um

resumo gráfico mental “modelado entre o ver e o desenhar” (DUARTE, 2007).

O modelo interno acompanharia a criança até a chegada da etapa do Realismo Visual, em

que a realidade passa a ser representada pela criança, nessa fase quase um adolescente, sem

qualquer síntese como resultado, mas a partir de sua compreensão dos recursos gráficos

adquiridos.

Luquet também pontua nos desenhos infantis características que ele denomina como “Idealismo”. O Idealismo consiste em atribuir voluntariamente caracteres estranhos ao objeto representado, de forma a conseguir um resultado melhor que o natural, acrescentando ao

trabalho características supérfluas, modificando os aspectos reais dos elementos ou colorindo

as figuras de forma decorativa.

De acordo com Duarte (2013), Luquet também define o conceito de “Esquematismo” que

dificuldades motoras e psíquicas da criança pequena, estágio que o autor nomeia como

Realismo Fracassado.

Para Iavelberg, existe uma relação entre as fases de desenvolvimento do desenho infantil

em Luquet, Lowenfeld e em suas próprias concepções, que pode ser expressa através do quadro

comparativo proposto pela autora:

Luquet (1913) Lowenfeld (1947) Iavelberg (1993)

Realismo Fortuito Garatuja

Garatuja nomeada

Ação

Realismo Fracassado Pré-esquema Imaginação I

Realismo Intelectual Esquema Imaginação II

Realismo Visual Realismo95 Apropriação

Proposição

Tabela 1 – Relação entre as fases de desenvolvimento do desenho infantil propostas por Luquet, Lowenfeld e Iavelberg. Iavelberg, 2013b, p. 1996.

Para Iavelberg, o desenho propicia à criança a integração “entre cognição, ação, imaginação, percepção e sensibilidade”. É uma forma singular de expressão dos conhecimentos e experiências da criança, sendo que “a oportunidade para desenhar sistematicamente promove seu progresso na linguagem do desenho” (2013a, p. 57).

Partindo para concepções mais contemporâneas, Iavelberg afirma que “o desenho espontâneo da escola renovada dá lugar ao desenho cultivado que, influenciado pela cultura,

mantém seu epicentro na criança, sujeito criador informado que produz como protagonista de seus desenhos”. Para a autora, a cultura influencia a produção da criança, seja na escolha de

95 Optamos por não colocar a Fase Pseudonaturalista, descrita por Lowenfeld, por dois motivos. Primeiro, a

autora não a cita na tabela; segundo, Luquet afirma que a Fase do Realismo Visual se inicia aos oito ou nove anos, mas não pontua quando ela se encerra.

96 Na tabela original, Iavelberg também estabelece relações com as fases do desenvolvimento do desenho infantil

temas ou nas formas de expressão, pois seu repertório visual é formado por imagens advindas

de obras de arte, da mídia, dos trabalhos produzidos por seus pares etc. A criança se mantém

aberta às suas possibilidades de construção, criação e expressão, agindo informada pela cultura

(IAVELBERG, 2013a, p. 11, grifo nosso).

De acordo com Iavelberg, o desenvolvimento do desenho infantil não deve ser compreendido mediante fases universais, mas de “momentos conceituais”, de acordo com a Tabela 1, que estão submetidos às experiências de aprendizagem da criança e suas

oportunidades de desenhar, ao desenvolvimento cognitivo e à cultura.

Num primeiro momento, a criança estaria interessada em realizar movimentos e observá-

los durante a ação. Sendo assim, Iavelberg designa como Ação o momento em que a criança “produz algo para ser visto. Inicialmente é o gesto, que pouco a pouco é coordenado com o olhar e o equilíbrio do corpo todo” (Ibid., p. 66).

Imaginação I seria o momento onde os rabiscos vão se transformando em figuras que

constituem símbolos. No início, essas imagens são desenhadas separadamente na folha,

desarticuladas entre si.

“Aos poucos, o desenhista articula esses símbolos em imagens narrativas. [...] A criança agora pensa que pode desenhar o que quiser e que muitas coisas podem aparecer nos seus desenhos. Coisas que existem e coisas que não existem”. Este momento conceitual é chamado por Iavelberg de Imaginação II e, para representar o espaço, a criança também lança mão de

transparências, planos deitados e rebatimentos, assim como também descrito por Luquet (1972)

(Ibid., p. 66).

Num momento posterior, a criança passa a estabelecer maior relação entre seu desenho e os objetos reais ou irreais do mundo, ou seja, “busca desenhar como se vê usando as regularidades da cultura de desenhos ou os códigos da linguagem, apropriando-se deles. [...] Observa as regras de representação do espaço (perspectivação)” e busca dominar outros modos

eficazes de representação de partes específicas dos objetos. A este conjunto de transformações

ocorridas no desenho infantil, Iavelberg nomeia Apropriação. Para a autora, o desenvolvimento

e a aprendizagem no momento conceitual da Apropriação requer abordagens que transcendem

as orientações da livre expressão (IAVELBERG, 2013a, p. 67).

Por último, a autora designa como Proposição o momento conceitual em que “cada

desenhista tem consciência de que o desenho pode expressar o que quiser: sentimentos, ideias,

eventos; e ainda apresentar-se em diversas modalidades (bidimensional, tridimensional, virtual)”. Iavelberg pontua que esse momento conceitual não significa o fim do processo (Ibid., p. 68).

Diferentemente dos autores anteriormente citados, Brent e Marjorie Wilson e Al Hurwitz

(1987) não organizaram suas teorias sobre o desenho infantil a partir de fases ou momentos

conceituais, mas antes, afirmam a existência de alguns fatores determinantes, como o

desenvolvimento orgânico da criança, as formas compartilhadas de aprendizagem, como o

empréstimo de imagens da cultura e da arte, as habilidades, o desejo de desenhar, a memória

visual, a imaginação, inventividade, as oportunidades de aprender e aplicar as habilidades

gráficas adquiridas, entre outros.

Para os autores, os desenhos das crianças menores, abaixo de oito anos de idade, emergem

de fontes interiores de criação e possuem símbolos universais. Já as crianças com idade superior

possuem uma tendência a se apropriar das imagens a sua volta e procuram imitar ou copiar tais

configurações gráficas. Este processo de aquisição de “modelos” ou convenções artísticas é,

segundo os autores, a base do desenvolvimento em arte.

Brent e Marjorie Wilson (1982) trabalham com o conceito de signo visual, ou

configuracional, e não de representação, ideia que estabelece, ao nosso ver, certa relação com

o conceito de modelo interno de Luquet.

Aprender a desenhar signos configuracionais é um processo muito semelhante ao aprendizado do uso de signos verbais [...].

A criança aprende a formar seus próprios signos configuracionais principalmente por meio da observação do comportamento-de-fazer-signos-configuracionais de outras pessoas, por observar inicialmente que outras pessoas fazem desenhos, verificando então, a maneira pela qual são feitos, as razões pelas quais são feitos, as situações nas quais são feitos, a variedade de signos configuracionais feitos e as diversas formas que tais signos tomam em nossa cultura (p. 63).

Notamos nos autores a forte tendência em enfatizar a importância do “empréstimo” de imagens, seja da arte, da cultura ou dos pares, na aquisição de convenções artísticas e no

desenvolvimento do ato de desenhar da criança. De acordo com Iavelberg (2003), as pesquisas contemporâneas de Brent e Marjorie Wilson nos “mostram que os símbolos presentes nos desenhos das crianças mudam na história, seguindo as convenções estabelecidas nas culturas visuais e sofrem influência de contextos culturais” (p. 96). Para os autores, esse processo é essencial em face da “natureza da percepção e no fato de que os programas que usamos para as tarefas diárias de viver no mundo não são facilmente convertidos em programas97 para a produção de desenhos” (WILSON e WILSON, 1982, p. 67).

Por último faz-se necessário pontuar que, de acordo com a bibliografia analisada, alguns

pontos do pensamento dos autores selecionados encontram concordância nas concepções

artísticas e pedagógicas de Friedl.

Para Friedl, as crianças abaixo de dez anos de idade necessitavam desenhar e pintar como

meios primários de autoexpressão. Já as crianças acima dessa idade precisariam encontrar

meios de expressar o mundo, não como visto em sua imaginação, mas de acordo com a

realidade. Aqui pressupomos que Friedl está discutindo a quebra do uso de modelos internos

pela criança, assim como proposto por Luquet, para dar lugar a uma interpretação mais

naturalista do mundo, ou seja, a conquista do Realismo Visual.

97 Chega osà à o epçãoà desteà o ple oà atoà deà dese ha ,à ouà doà o po ta e toà deà faze à sig osà

o figu a io aisà o oà se doà u à p og a a.à Co oà Lu iaà : à o se vou:à I vestigaç esà psi ol gi asà modernas tornaram claro que cada processo comportamental é um sistema funcional complexo baseado num pla oàouàp og a aàdeàope açãoà ueà o duzàaàu aà etaàdefi ida .àNoà ueà o e eàaàu àp og a aàpa aàoà desenho, poder-se-ia pensar na mente como um programador para oà o putado / e o à WIL“ONàeàWIL“ON,à 1982, p. 64).

Para a artista e professora, é nessa etapa que a criança deveria ser conduzida e orientada

nas técnicas artísticas que correspondem às suas necessidades expressivas. Segundo ela, tudo

se resumiria ao trabalho com proporções, ritmo, luz, sombra, espaço e cor.