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O processo de desumanização dos campos de concentração

É isto um homem?

Vocês que vivem seguros em suas cálidas casas, vocês que, voltando à noite,

encontram comida quente e rostos amigos, pensem bem se isto é um homem

que trabalha no meio do barro, que não conhece paz,

que luta por um pedaço de pão, que morre por um sim ou por um não. pensem bem se isto é uma mulher, sem cabelos e sem nome,

sem mais forças para lembrar, vazio os olhos, frio o ventre, como um sapo no inverno. Pensem que isto aconteceu:

eu lhes mando estas palavras. Gravem-nas em seus corações, estando em casa, andando na rua, ao deitar, ao levantar;

repitam-nas a seus filhos.

Ou, senão, desmorone-se a sua casa, a doença os torne inválidos,

os seus filhos virem o rosto para não vê-los (LEVI, 1988, p. 9).

Como descreve Primo Levi em sua obra É isto um homem?, alguns sentimentos regiam

as relações nos campos de concentração: a fome, a sede, o frio e o medo (das ações dos nazistas

e dos próprios prisioneiros, dos transportes e seleção para as câmaras de gás).

Antes mesmo de chegar aos campos da morte, os deportados sofriam com a fome, a sede

e a falta de espaço nos transportes, que muitas vezes demoravam dias para chegar ao seu

destino. Para Levi (2004), o início de cada memória do período de confinamento é marcado

pela lembrança da crueldade dos transportes, já que os mesmos representaram a ruptura entre a

vida de homem livre e a vida de prisioneiro.

Em geral, as pessoas eram transportadas em vagões de carga superlotados de acordo com

a hierarquia atribuída pelos nazistas: judeus provenientes da Europa Oriental eram, para estes

e seu sistema, mercadoria totalmente desprovida de valor e, nesse caso, os vagões

sentar para descansar, por mais que algumas viagens durassem até quinze dias. Os transportados

também não recebiam comida ou água e suas necessidades fisiológicas deveriam ser realizadas

numa espécie de balde (se houvesse no vagão), publicamente. Essa situação de extremo

desconforto também foi citada pelos sobreviventes de Terezín.

Elie Wiesel e Primo Levi registraram suas memórias sobre os transportes:

Impossível esticar o corpo, e também não havia como todos se sentarem. Decidimos nos sentar por turnos. O ar estava rarefeito. Felizes os que estavam perto de uma janela, podiam ver a paisagem florida. [...] Ao fim de dois dias de viagem, a sede começava a nos torturar. Depois, o calor tornou-se insuportável (WIESEL, 2001, p. 41).

Era isso mesmo, ponto por ponto: vagões de carga, trancados por fora, e, dentro, homens, mulheres e crianças socados sem piedade, como mercadoria barata, a caminho do nada, morro abaixo, para o fundo (LEVI, 1988, p. 15).

“[...] No campo, o assunto principal era a comida e muitos, provavelmente, sobreviveram para lembrar da comida, para conversar sobre a comida, além de para poder comer. Não se

comia para viver; vivia-se para comer”, cita Noemi Jaffe acerca das lembranças e do diário de

sua mãe, Lili Jaffe, sobrevivente de Auschwitz (2012, p. 107).

De acordo com Primo Levi (2004) a fome crônica podia ser sentida pelos prisioneiros

alguns dias após a chegada ao campo. Essa fome regulamentar, que os acompanhava dia e noite

e não os deixava em paz, impossibilitava-os de se concentrarem em qualquer outra coisa que

não fosse meios de obter comida. Elie Wiesel (2001) afirma que sua percepção sobre si mesmo

não era mais a de um homem, mas que se reduzira a um estômago faminto, que não vivia por

outro motivo que não fosse a comida.

Em Terezín a fome também era uma companheira constante dos prisioneiros. Quem mais

inadequada. Após ser deportada de Terezín para Auschwitz, Helga Weiss50 registrou em seu

diário alguns apontamentos sobre esse tema:

É melhor deitarmos e dormirmos para esquecer a fome. Pouco depois eles traziam a sopa – aqui chamada zupa -, não muito gostosa e na qual boiava tudo o que era possível (e impossível). Nabo podre, sabugo de milho, pedaços de tutano congelados, talos e raízes de beterraba, o que dava à mistura uma cor rosada (2013, p. 143-145).

É certo que o frio castigava os prisioneiros, pouco vestidos e famintos, mas no verão eles

encontraram outro obstáculo à sobrevivência, mais duro do que a fome:

Em agosto de 1944, fazia muito calor em Auschwitz. [...] Minha equipe fora mandada a um depósito para retirar os escombros, e todos sofríamos com a sede; um castigo novo, que se somava ou, antes, se multiplicava com o velho castigo da fome. [...] a sede nos atormentava. É mais imperiosa que a fome: a fome obedece aos nervos, concede adiamento, pode ser temporariamente coberta por uma emoção, uma dor, um medo [...]; mas não a sede, que não dá trégua. A fome extenua, a sede enfurece; naqueles dias ela nos acompanhava de dia e de noite [...] (LEVI, 2004, p. 69).

Primo Levi (1988) bem esclarece o que a chegada do inverno significava para os prisioneiros do campo: “no decorrer destes meses, de outubro a abril, de cada dez de nós sete morrerão”. Significava um sofrimento constante, durante o dia no trabalho sem roupas apropriadas ao clima e à noite nos alojamentos desprovidos de calefação. Significava também ter que “gastar” parte da ração em troca de luvas e qualquer tecido ou papel que pudesse ser colocado nos pés ou abaixo do uniforme, como proteção, o que era terminantemente proibido

pelas regras do campo, mas praticado pelos prisioneiros (p. 125).

Em suas memórias, Lili Jaffe lembra como as pessoas se apertavam umas contra as outras

durante a noite para se aquecerem, fugindo do frio.

Ao entrevistar alguns sobreviventes de Terezín para escrever a obra “As meninas do quarto 28: amizade, esperança e sobrevivência em Theresienstadt”, Hannelore Brenner afirma

que a lembrança mais forte narrada é a do frio que sentiram durante a contagem de 11 de

novembro de 1943. O fato também foi registrado por Helga Weiss em seu diário, como

observado no subcapítulo 5. A criança perseguida.

Em Auschwitz, Helga Weiss voltou a passar por uma situação semelhante:

Depois do café da manhã, houve a chamada, quando fizeram a contagem, deixando- nos esperando por uma hora, talvez duas [...] Só nos deixaram voltar ao prédio quando lhes parecemos cansadas e congeladas. Ainda estamos em outubro [1944], porém é um frio cortante quando ficamos paradas a céu aberto às quatro horas da manhã [...] e quase nuas [...] e os pés descalços precisam ser enfiados em tamancos holandeses [...] E, o pior, as cabeças raspadas; é a parte que fica mais fria (WEISS, 2013, p. 143-144).

Elie Wiesel (2001) afirma que ainda mais forte que a fome ou o frio era o terror, o medo.

Uma constante no depoimento daqueles que tinham plena consciência da existência das câmaras

de gás era o medo de ser selecionado para elas. Helga Weiss afirma que, a partir do momento

que tomou consciência das câmaras, não deixou de se preocupar com elas.

Em Auschwitz essa questão era muito clara, os guardas constantemente ameaçavam os

prisioneiros dizendo que a única maneira de sair do campo era pela chaminé. Em Terezín,

depois do retorno de alguns deportados, as suspeitas sobre as câmaras de gás tornaram-se

realidade.

Anna Flachová, sobrevivente de Terezín que atualmente vive em Brno51, conta sobre o

impacto da cena e o medo sentido ao vislumbrar o retorno dos prisioneiros provenientes de

outros campos e das marchas da morte. Ela e outras pessoas se deram conta da dimensão daquilo

que estava ocorrendo com os judeus e demais grupos perseguidos:

Pensávamos que era o exército se aproximando. Mas eram os mais pobres dos pobres, os mulçumanos52. Foi horrível – alguns deles simplesmente caíram e ficaram ali,

51 De acordo com Brenner (2014). Anna Flachová (26.11.1930 -) era conhecida pelas demais colegas de quarto

como Flaska.

52 Pa aà Levi,à o à aà palav aà Mulçu a o à osà vete a os do campo designavam os fracos, ineptos,

caídos. Eram seres completamente depauperados, doentes e esfomeados, suas roupas estavam despedaçadas (BRENNER, 2014, p. 360).

O comportamento autoritário dos guardas visava, segundo Klüger (2005, p. 103),

diminuir e até mesmo negar a existência humana do prisioneiro. A autora também afirma que os guardas precisavam provar para si mesmos, através de suas “atrocidades insolentes, que aqueles seres inferiores não eram gente” (p. 130). Para tanto, fazia parte do processo de humilhação dos prisioneiros as surras constantes e públicas. Primo Levi (1988) as cita

constantemente em sua obra. Elie Wiesel também as narra:“os kapos nos batiam de novo, mas

eu tinha deixado de sentir a dor” (WIESEL, 2001, p. 57).

O uso contínuo de uniformes descaracterizava qualquer traço de singularidade ou

particularidade, criando dois polos massificados: guardas e prisioneiros. Além do que, os

uniformes – camisa, cuecas, casaco e calças de brim – eram extremamente inapropriados para

o clima europeu, para enfrentar invernos absolutamente congelantes, as longas marchas e jornadas de trabalho extenuantes, muitas vezes ao céu aberto e sempre “tendo dentro de si fraqueza, fome e a consciência da morte que chega”. De acordo com Levi (1988), “a morte começa pelos sapatos. Eles se revelaram para a maioria de nós, verdadeiros instrumentos de

tortura que, após umas horas de marcha, criam feridas dolorosas, sujeitas a infecções na certa

(p. 126; 32-33).

A ausência de normas e a incapacidade de compreender os desmandos dos nazistas era

outra questão que causava grande inquietação, ansiedade e medo nos prisioneiros. Para Klüger

pois, quando observados de longe, davam a impressão de árabes em oração. Dessa imagem derivou a definição de mulçumano, ou seja, aqueles que estavam morrendo de desnutrição, que não podiam mais se erguer e que, de acordo com Jean Améry (Apud AGAMBEN, 2004, p. 49), eram os prisioneiros que haviam abandonado qualquer esperança e que haviam sido abandonados pelos companheiros. Um cadáver humano em agonia, sem discernimento do bem e do mal, da nobreza e vileza, da espiritualidade e não espiritualidade. Outra explicação provável remete ao significado literal do termo árabe muslim,à ueà sig ifi aà a ueleà ueà seà su eteà i o di io al e teà àvo tadeàdeàDeus .àága e àta àaludeàaoàfatoàdoàte oàMuselmann se aproximar de

Muschelmann, homem-concha, ou seja, fechado em si mesmo. Para Klüger (2005), os mulçumanos eram aqueles

(2005, p. 117), a lógica não era um princípio básico do campo de concentração. Primo Levi – e

isto também é discutido por Agamben (2008) – narra a forma como ocorria a seleção no

desembarque, ao chegar em Auschwitz. Ele conta que, em geral, os prisioneiros eram separados

entre sãos e doentes. O segundo grupo era imediatamente enviado às câmaras de gás. Mas podia

haver outros critérios de seleção como, por exemplo, quando as portas dos vagões repletos de

pessoas eram abertas dos dois lados do trilho, quem descia de um lado era selecionado para o

trabalho e do outro era selecionado para as câmaras de gás. De acordo com Agamben,

essa ausência de normas comuns explica também porque os novos detentos foram geralmente derrubados já nos primeiros dias de sua estada no campo. Perdiam tempo e energia em tentar compreender aquilo que lhes acontecia, em querer entender que sistema regia o campo, em vez de se concentrar, desde o início, no único esforço válido, a saber: tentar sobreviver a qualquer custo [...] Auschwitz é exatamente o lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, com a regra, e a situação extrema converte-se no próprio paradigma do cotidiano (p. 9-10; 57).

Primo Levi (1988) afirma quão absurdamente complicado era o regulamento do campo, com inúmeras proibições, “infindáveis e insensatos” rituais obrigatórios de arrumação dos alojamentos, limpeza dos uniformes, controle de piolhos e sarnas, costura e remendo dos botões

e casacos.

Um ritual bastante citado pelos sobreviventes são as contagens que ocorriam a céu aberto – na chuva, sol ou neve –, duravam horas, não poupavam os doentes, crianças ou idosos, não forneciam a mínima possibilidade de descanso, salvo alguns que se escondiam ao final da fila

e agachavam a fim de aliviar o cansaço, arriscando a própria vida. Para o autor (2004), as

chamadas eram cerimônias vazias, destituídas de sentido, mas dentro da lógica nazista eram

repletas de significado pois, juntamente com a fome, o frio e o trabalho escravo contribuíam no

“E ainda não falamos do trabalho, que por sua vez é um emaranhado de leis, tabus e problemas”. Para Levi, o campo “possui uma estrutura interna incrivelmente complicada e abriga em si o suficiente para confundir nossa necessidade de julgar” (2004, p. 32-33; 36).

Outra questão que para Primo Levi gerava grande confusão e ansiedade era o fato de

conviverem no campo muitas línguas, ao que ele chama de “perpétua babel”. Os recém-

chegados se encontravam acuados sem entender os gritos histéricos “em línguas nunca antes ouvidas” a que eram submetidos e muitas vezes era-lhes infligido castigo físico por não

obedecerem às ordens não compreendidas. “Logo nos demos conta [...] de que saber ou não o

alemão era um divisor de águas [...]. A maior parte dos prisioneiros que não conhecia o alemão [...] morreu nos primeiros dez ou quinze dias de sua chegada” (LEVI, 2004, p. 36; 79).

A ausência de lógica também permeou os trabalhos forçados executados pelos

prisioneiros nos campos de concentração. A falta de objetivos claros ou um sentido para as

tarefas que a tanto custo eram executadas por homens, mulheres, meninos e meninas,

praticamente no cúmulo da exaustão e da fome, é, segundo Klüger (2005), a essência de um trabalho escravo, o que faz com que o “trabalhador-escravo” o despreze. Em Terezín, os prisioneiros de 14 anos ou mais eram obrigados a trabalhar, mas suas designações não eram tão

ilógicas como em Auschwitz. Havia trabalhos forçados, mas com objetivo de subsistência do

próprio campo (p. 137).

Primo Levi denomina o grupo de prisioneiros obrigados a executar certos trabalhos como pertencentes à “zona cinzenta”. Em Auschwitz, esse grupo era incumbido de levar homens, mulheres e crianças nus até as câmaras de gás e manter a ordem para que sua execução pudesse

ocorrer com êxito. Depois, arrastar os cadáveres para fora, lavá-los com jatos d’água, verificar

seus orifícios com o intuito de encontrar objetos preciosos, arrancar os dentes de ouro, cortar

crematórios, queimá-los e remover suas cinzas. Esse “Comando Especial” era periodicamente exterminado e mantido em absoluta segregação em relação aos demais. De acordo com o autor, “ter concebido e organizado os Esquadrões foi o delito mais demoníaco do nacional- socialismo” (2004, p. 45).

Bela Katz – o filho de um grande comerciante de minha cidade – havia chegado a Birkenau com o primeiro carregamento, uma semana antes de nós. Quando soube de nossa chegada, mandou-nos um recado dizendo que, escolhido por sua robustez, fora obrigado a introduzir no forno crematório o corpo de seu próprio pai (WIESEL, 2001, p. 55).

Em Terezín os prisioneiros não precisaram passar por situação tão extrema, mas foram,

inclusive as crianças, incumbidos de carregar os mortos, incinerá-los e guardar suas cinzas em

caixas. Horst Cohn, sobrevivente de Terezín nascido em Berlim, conta que em meados de

novembro de 1944, aos 13 anos de idade, foi encarregado, juntamente com mais outras 19

crianças, de destruir as urnas com as cinzas dos mortos que eram depositadas no campo. Sobre

essa tarefa, Cohn relatou:

A morte não nos assustava, assim como a cinza dos mortos não foi capaz de nos assustar. Nós sabíamos da existência do crematório onde os mortos eram queimados, e sabíamos que as cinzas eram guardadas. Também sabíamos que cada cadáver era queimado separadamente. Um prisioneiro judeu empurrava um cadáver para dentro do forno a uma temperatura por volta de 2.500 graus. Tudo era queimado, inclusive os ossos. Do outro lado do forno, outro prisioneiro juntava as cinzas com auxílio de um gancho de ferro, colocando-as em uma caixa de papelão, que depois fechava. A seu lado outro prisioneiro etiquetava as caixas: Nome, local de nascimento, data de nascimento e data do óbito (BRENNER, 2014, p. 342).

A morte rondava todos os lugares, trazendo um clima de extremo desconforto, medo e

tensão: ela estava na fila da comida, na ração pobre que não saciava os famintos, nos

companheiros de cama infectados, nas ações inesperadas dos nazistas e, principalmente, na

fumaça que emanava das chaminés, no cheiro de carne queimada que anunciava o destino de

“Não longe de nós, de uma fossa subiam chamas, chamas gigantescas. Alguma coisa estava sendo queimada ali. Um caminhão se aproximou do buraco e despejou sua carga: eram criancinhas. Bebês! Sim, eu vi, vi com meus olhos... Crianças em chamas” (WIESEL, 2011, p. 52).

[Spulka]53: Houve um processo de dessensibilização lá. Pela manhã, quando nós

saíamos dos quartos, as pessoas mais velhas estavam morrendo e nós estávamos pulando entre os cadáveres, jogando bola, e nós olhávamos para eles como se fossem objetos no chão que você tem que pular. Depois, eles eram colocados nos carrinhos e carregados até o crematório. Aquele tipo de experiência cria uma espécie de desmistificação da morte.

[Robin]: De alguma forma, nos campos, você considera a morte como certa. Depois que nós fomos para outros campos, vimos como as pessoas eram espancadas até a morte. Em um transporte [para Auschwitz], um colaborador veio e bateram nele até a morte e isto não significou nada. Nós vimos pessoas enforcadas e uma montanha de cadáveres e isto não significou nada (GRUENBAUM, 2004, p. 66; 143, tradução nossa).

Além das incongruências praticadas pelos nazistas, os próprios prisioneiros tinham suas leis e sistema de sobrevivência, e isso, seja em Auschwitz ou em Terezín, oprimia os “não privilegiados”, opressão essa que era a base da estrutura social do campo, de acordo com Levi (1988, p. 43).

Fechem-se entre cercas de arame farpado milhares de indivíduos, diferentes quanto a idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e ali submetam-nos a uma rotina constante, controlada idêntica para todos e aquém de todas as necessidades; nenhum pesquisador poderia estabelecer um sistema mais rígido para verificar o que é congênito e o que é adquirido no comportamento do animal-homem frente à luta pela vida (Ibid., p. 88).

Em suas reflexões sobre a vida no universo concentracionário, Primo Levi (2004) observa

que os prisioneiros viviam como animais subjugados, que estavam restritos a essa condição.

Em outro trecho conclui que ele e seus companheiros haviam chegado ao fundo:

Mais para baixo não é possível. [...] Nada mais é nosso: tiraram-nos as roupas, os sapatos, até os cabelos; se falarmos, não nos escutarão – e, se nos escutarem, não nos compreenderão. Roubarão também o nosso nome, e, se quisermos mantê-lo, deveremos encontrar dentro de nós a força para tanto, para que, além do nome, sobre alguma coisa de nós, do que éramos (LEVI, 1988, p. 25).

[Spulka]: Não havia mais nada que pudessem tirar de nós. (GRUENBAUM, 2004, p. 63, tradução nossa).

Seu pensamento lúcido e analítico vai além, afirmando que o processo de desumanização

imposto pelos nazistas aos prisioneiros era uma forma de justificar suas mortes, tornando-os tão miseráveis que realmente merecessem aquele destino. “Para condicionar aqueles que

deviam executar materialmente as operações. Para tornar-lhes possível fazer o que faziam”

(LEVI, 2004, p. 108).

Para Levi, ainda havia alguns poucos prisioneiros que apresentavam traços de

humanidade e que o faziam lembrar, raramente, de que ele ainda era um homem.