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5. A proposta de ensino de arte em Terezín e sua relação com os mestres de Viena e da

5.3. Paul Klee

Friedl capturou o melhor, em sua visão, de seus mestres. Exercícios realizados pelas

crianças a partir da observação de objetos ou lugares tinham estreita relação, em sua abordagem

de ensino e aprendizagem da arte, com as ideias propagadas por Paul Klee na Bauhaus. Para Klee, aquele que observa a natureza deve “ver além” do objeto, se relacionar com ele e tirar dele seu melhor, sua beleza. Essa “visão de mundo” a que Klee se refere, segundo Wick, é mais abrangente e se refere à visão de uma época histórica que, de acordo com Kandinsky, seria a

“época do grande espiritual”, na qual o objetivo da arte não consistiria na mimese da natureza, mas em tornar visível uma realidade interior, ideia próxima das concepções expressionistas

(1989, p. 335).

De acordo com Wick, Klee entendia a arte como “instrumento destinado a tornar visível

uma realidade diferente da realidade terrestre percebida cotidianamente”, uma forma de

desviar-se da realidade comum, do “cinza dos dias úteis” e levar consolo ao homem (1989, p.

315; 317). Partimos do pressuposto de que esse pensamento tenha motivado Friedl a “transformar” a realidade concentracionária, proporcionando às crianças outras formas de vislumbrá-la através da arte.

Os estudos com Paul Klee ampliaram sua visão do ensino da arte em relação à observação

da natureza como mote criador. Ao mesmo tempo, Friedl também aplicou os métodos de Itten

no que diz respeito à exploração de materiais, contraste e movimento, objetivando desenvolver

a sensibilidade artística das crianças.

Em Terezín, Friedl utilizou essas ideias para ensinar as crianças a observarem o mundo e

a interpretarem, de forma artística, suas percepções sobre um ramo de flores, a face de um colega, um sonho, uma memória. “Ela os ensinou que o comum – que poderia ser uma visão ou evento diário, uma saudade ou um objeto – valia a pena ser refletido e recordado em um desenho, uma pintura ou uma colagem”. Para ela, os estudos de observação requeriam das crianças um olhar contemplativo e exame minucioso, a fim de capturar a essência do objeto ou

tema. Esses exercícios fomentaram um íntimo relacionamento das crianças umas com as outras

e com a natureza (WIX, 2010, p. 23, tradução nossa).

Klee chegou à Bauhaus na primavera de 1921 e lá permaneceu até 1931. O artista

primeiramente assumiu a direção da oficina de encadernação. Com a dissolução dessa oficina,

em 1922, Klee foi encarregado da direção da oficina de pintura vitral. Ele também ministrou

própria experiência como artista e encorajou outros professores a convidarem seus estudantes para o contato com a natureza. “Orientar os alunos no domínio da natureza e da vida é tão necessário quanto orientá-los no domínio dos meios plásticos: a forma deve fundir-se com a concepção do mundo” (KLEE Apud FRAGOSO, 1984, p. 9).

Livre das amarras da tradição artística acadêmica, Klee descobriu, no início do século

XX, uma coleção de seus desenhos de criança. Esses desenhos despertaram seu interesse pela

arte infantil. Por meio do estudo deles e dos desenhos realizados por seu filho Felix, Klee

procurou em sua obra recriar o espírito infantil, buscando olhar para o mundo como uma

criança: livre de padrões e convenções. Ele acreditava no potencial criador da criança e em sua

capacidade artística (WIX, 2010).

O olhar de Klee para seus trabalhos de criança ajudou-o a moldar sua arte e seu ensino e,

consequentemente, transformou as experiências em arte e educação de Friedl no campo,

fazendo-a olhar para o trabalho de seus alunos e “ver além”, além de suas concepções sobre

arte, de seus padrões e convenções adultos.

Em sua palestra, ministrada na Bauhaus em 1923, Klee disse que os artistas são mais

complexos que câmeras fotográficas, no sentido de não apenas se prestarem a representar as

coisas ao seu redor, mas também por apresentarem outros olhares e formas de conceber e

expressar o mundo. Ensinou que os artistas deveriam comunicar suas experiências internas

como um componente essencial na representação física do mundo. Neste sentido, as aulas de

Friedl priorizaram a expressão daquilo que suas crianças tinham de melhor, objetivando anular o processo de desumanização imposto pelos nazistas: “Friedl deu-nos para desenhar o que nós gostávamos de fazer, o que nós sonhávamos.... Ela nos transportou a um mundo diferente....

diferente... Ela não nos fez desenhar Terezín 89” (WIX, 2010, p. 21, tradução nossa, grifo nosso).

CAPÍTULO 3

Os desenhos de Terezín: um outro testemunho do

Holocausto

Figura 4 – Composição de Ruth Schächterová (1930-1944)90

90 Fonte: Coleção do Museu Judeu de Praga. Reprodução da imagem disponível em: RUBIN, Susan Goldman.

Quando as pessoas morrem e seus testemunhos são silenciados, resta a arte Arnost Lustig91

Os trabalhos das crianças formam um grupo bastante heterogêneo. De acordo com a

curadora do setor de Artes Visuais do Museu Judeu de Praga, Sra. Michaela Sidenberg, nas

duas malas escondidas por Friedl foram encontradas cerca de 4.500 peças, sendo que muitas

delas apresentam registros nos dois lados do papel, formando, assim, um grupo com 5.849

desenhos, pinturas, bordados e colagens autônomos. Destes, um subgrupo formado por 367

trabalhos artísticos, previamente selecionados de acordo com os critérios estabelecidos no

tópico Metodologia, compõe o corpus de análise da tese. Esses desenhos refletem, em geral, as

impressões e percepções das crianças sobre si mesmas e sobre o universo concentracionário,

seus sonhos, incertezas, sua vida antes da perseguição e confinamento e o desejo de liberdade. Essa produção também pode ser entendida “como uma forma de resistência subjetiva à violência a que os judeus estavam sendo submetidos”, ou seja, um meio de elaborar, estruturar e organizar seu sofrimento, de modo a transformar sua perda, tristeza e dor em objetos artísticos

(BORGES e LERNER, 2012).

Corroboram a análise, além dos autores selecionados e explicitados na Metodologia, os

testemunhos das crianças que sobreviveram ao campo de Terezín e seus diários. O uso de

testemunhos para auxiliar a compreensão da situação dos sujeitos atribui à tese outra dimensão,

mais próxima, pressupõe-se, ao campo do real, visto que os fatos ocorridos em Terezín e durante

a Segunda Guerra Mundial, em geral, são tão absurdos e não identificáveis com outros eventos

historicamente conhecidos que permeiam o campo ficcional.

91 Arnost Lustig (1926-2011) foi um renomado escritor checo de origem judaica que sobreviveu ao campo de

Essa terceira parte da tese se propõe a analisar o corpus da pesquisa a partir dos autores

selecionados e tendo em vista que a produção da criança é fruto de sua poética pessoal, de suas

vivências e experiências pessoais e compartilhadas e dos métodos de ensino da arte empregados

por sua professora em Terezín, que refletem sua formação e influências.

A liberdade de expressão proposta por Friedl em Terezín foi um importante ponto de

equilíbrio mediante a falta de liberdade de ir e vir das crianças. Ao contrário das crianças do

Führer, que não possuíam liberdade de pensamento no sentido de executarem ordens sem questioná-las ou refletir sobre elas, as crianças encontraram nas aulas de Friedl a liberdade que

lhes havia sido brutalmente arrancada; não a liberdade que elas desejavam, de voltar para suas

casas, de retornar a suas vidas, mas a liberdade de pensamento e expressão através da arte. Essa

ideia da arte como um espaço de liberdade tem afinidade com o pensamento de vários artistas

modernos, entre eles Marcel Duchamp (1887-1968), para quem “o fim da atividade artística

não é a obra, mas a liberdade. A obra é o caminho e nada mais” (PAZ, 2002, p. 64).

A situação em que os sujeitos se encontravam nos campos tinha o poder de retirar deles

suas qualidades e características humanas essenciais, sua dignidade, mas não podia destruir seu

pensamento. Sendo assim, uma das principais funções da arte em Terezín foi de resistência,

organização e manutenção do pensamento das crianças. Neste contexto, a arte permitiu às crianças “sonhar para além dos muros” (LEFREVE; PECCI; SCHOEPS; LEFREVE; BUENO, 2014, p. 15).

As crianças ajudaram a dar forma ao mundo percebido, incluindo sua subjetividade nos

trabalhos, atuando, dessa forma, de acordo com os ideais modernos, que abriram espaço mais

amplo para a inserção da subjetividade do artista na obra. Sua visão sobre o campo é, ao mesmo

As crianças encontraram em Friedl uma mestra e cuidadora atenciosa e amável, o que

gerou possibilidades de troca entre elas e a professora e estimulou ainda mais sua produção,

mesmo numa situação de vulnerabilidade emocional e social. Como mencionado no Capítulo

2, Friedl não as fez testemunhar Terezín, ela não solicitou que nenhuma criança desenhasse o

campo. Elas também não tiveram a intenção de testemunhar, registraram seu meio social a fim

de compreender sua condição, o que acabou por testemunhá-lo.

Apesar disso, a arte foi um importante instrumento de denúncia do estado de miséria, frio,

doenças, desespero e humilhação vividos em Terezín. Muitos artistas retrataram a velha

fortaleza, cada um sob o seu ponto de vista, de acordo com sua poética, mas nenhum destes

registros é tão impactante quanto o testemunho das crianças sobre os horrores presenciados.

Nesse sentido, a produção destes artistas e das crianças serviu como outro testemunho do

Holocausto, um testemunho poético, pautado na observação dos fatos no aqui e agora e não a

partir da reconstrução da memória, o que acarreta outras implicações.

A partir dessas informações e acordando com Cizek no fato de que “o ponto de vista da

criança [sobre si e sobre o mundo] é mais verdadeiro do que [o dos adultos]” e de que seus

trabalhos artísticos expressam as imagens de seu pensamento, seus medos, desejos, sonhos e

esperanças (CIZEK Apud VIOLA, 1936, p. 09, tradução nossa), e com Cohn em sua afirmação

de que “a diferença entre as crianças e os adultos não é quantitativa, mas qualitativa, [significando] que a criança não sabe menos, [mas] sabe outra coisa” (2005, p. 33), pressupomos que os desenhos das crianças de Terezín, a partir da análise de sua forma e

conteúdo, pautada em autores que se dedicaram a compreender como e por que a criança

desenha, podem ser um meio de expressão tanto quanto sua linguagem escrita ou oral. Sendo

assim, reconhecemos a legitimidade dos desenhos, considerando-os objetos de estudo e análise