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O Milagreiro

Meados de abril de 1956.

O trem da Reffesa parou, esguichando vapor na multidão. Os vagões estremeceram. Curiosos amontoavam-se nas plataformas da segunda classe. Os papos-amarelos abriram caminho aos PMs enfurecidos.

A notícia se espalhara. Alvoroço incontido. O capataz do coronel Olegário Britto tomou a frente, impelindo os policiais como quem açula cães.

Olhares curiosos vasculhavam os vagões. Maria Fininha tagarelava às alturas. Impetuosa. Sem sobrosso, incriminava o homem sentado ao lado. O desconhecido argumentava em vão. E a negra representando, cheia de manha.

Algemados, desceram aos solavancos. O homem resistiu. Uma coronhada do papo-amarelo tirou-lhe sangue do supercílio direito, ensopando a lapela do paletó de linho branco. Pelo contingente foram conduzidos à delegacia. Presos, submetidos a interrogatório:

– Não conheço esta mulher.

– Melhor dizer tudo – vociferou.

– Não conheço esta infeliz. Ela me ofereceu a poltrona, só isso.

– E tu, mulher, tem mais a acrescentar? – inquiriu-a o delegado, inchado no fardão de cáqui, coturnos pretos, cheios de rachaduras, esperando a confissão que não veio.

– Já disse tudo. Mas, se a excelência tiver dúvida, devia de reparar nos trens desse homem.

Tornaram, então, ao homem, azucrinando-o, fustigando-o nas costelas com um umbigo de boi. Desesperou-se:

– Não conheço esta infeliz...

O pé de peru cobriu-lhe o lombo.

– E isto, como explica? – reperguntou cabo Arlindo, espalhando as joias no soalho.

O homem, atônito, buscava explicação para o que via. Nunca tocara numa única joia, e elas ali, saltando de sua valise. Recostou-se na grade da cela, olhos cerrados. Lembrou-se de que havia se ausentado da poltrona para ir ao banheiro.

Só pode ser isso – imaginou.

Ordenadas as ideias, tentou explicar ao delegado, que não quis ouví-lo.

– Joga água de sal nele. Evita infecção.

João Xavier, conhecido por João Cartomante, lia cartas. Alegrava as pessoas revelando futuros promissores e passados honrosos. Nada que trouxesse amarguras, nem constrangimentos. Sentia-se feliz, gozava de respeitabilidade por onde passava.

Aos policiais só interessava a confissão de culpa, nada de explicações descabidas. Cel. Olegário, influente na região, poderia facilitar ou dificultar suas vidas. Então, empenhavam-se. E o couro ardia no lombo do miserável. Ao lado, a negra gargalhava.

Com trejeito e faceirice, ela fisgou o policial. Regalias não lhe faltavam. Ia e vinha à cela quando bem desejava. Seguida apenas pelo olhar atento do jovem militar nas nádegas carnudas dentro do vestido de seda, colado ao corpo. Dizia que nenhuma liberdade a mandaria para outro lugar, pois gostava dali. O policial, confiando na negra, escancarou as portas. Entregou-lhe a chave da cela, o dinheiro da feira. Fininha tagarelava nas esquinas, puxava conversa com os feirantes... Inteirava-se de tudo. Assuntou da visita do bispo à cidade, durante as festividades da Padroeira, em 15 de agosto.

Quinta-feira, sol a pique, o povo se acotovelava na estação, à sombra do tamboril, à espera de dom Libório. O trem especial atrasara, impacientando a gente que subia e descia a plataforma, molestando o telegrafista. Ávidos para beijarem o anel do Santo Padre. Dali, o transportariam à Casa Paroquial. Cadeira especial, pálio em veludo vermelho. Os homens mais importantes disputavam o revezamento. Rua enfeitada com flores silvestres. O sino, em regalo, atraía o povo à Matriz, à Rua das Carrapateiras.

Na agitação, a negra se foi. Engazopou os praças, o amante. Inexplicável?

Na verdade, só uma explicação. Conclusão do delegado:

– As rezas do Cartomante... É... só pode ser isso... Se adivinha o futuro e revela o passado, é capaz disso. É preciso esclarecer... Bota no pau de arara – ordenou a cabo Arlindo.

No decorrer do dia, o infeliz como um morcego. Ao anoitecer, o pé de peru nos lombos. Os gritos inquietavam a cidade. Murmúrios em profusão. A alucinação não tardou, fazendo-o retroceder na sustentação de inocência. Tinha visões das joias pelos cantos da cela, no corredor, ao ponto de tentar apanhá-las.

Água salgada nas feridas ou álcool no rosto o reanimavam para as argolas. Posto em cruz, pendendo pelos pulsos, arquejava toda a noite. Julgado ineficaz o tratamento, decidiu o delegado por algo mais impactante.

– O povo tem de tomar as dores deste infeliz. As joias é o que interessa – concluiu, ordenando ao praça que providenciasse duas mulas, encangalhadas e atasse nelas aquele homem teimoso.

Atados os pés e os punhos, as mulas o arrastavam pela cidade, guiadas por um policial a cavalo. Busto ereto, olhar no horizonte, tocando o preso como se

gosto de sangue na boca.

Das janelas, olhares medrosos perseguiam os animais, num debulhar de terços. Rogavam compaixão aos santos. Dia inteiro de agonia. Só ao pôr do sol um descanso, que as mulas precisavam beber. E beberam água fresca à vista do homem sedento que, resfolegando, não dizia coisa com coisa. Sussurros inaudíveis custaram-lhe as unhas, arrancadas a alicate. Ainda com vida, fora enterrado numa cova vertical, cabeça fora, atraindo formigas e urubus. Ordens dadas e cumpridas, o cel. Olegário deu-se por satisfeito.

Contam que, após festejar a desgraça do homem, o coronel sentiu-se mal, acometido de doença desconhecida. Gastara toda a fortuna com médicos, hospitais e viagens. De volta para casa, prostrara-se na alcova. Moribundo, fora visitado por um estranho, jamais visto na região, desejoso de um acerto de contas.

Daqui sairemos juntos – disse o desconhecido ao médico do coronel.

Num segundo de distração, o estranho sumiu. Ninguém o viu sair, como também não foi notado o cerrar dos olhos do coronel. Castigo. Também inexplicável a morte de Fininha e dos policiais, um após outro. Mistério que o tempo não revelou. Restou distante o túmulo, onde o povo ora e faz promessas.

email: austregésilo@ifpi.edu.br

Biah Vieira