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Nós dois fomos levados juntos, no mesmo carro preto. Primeiro, me pegaram na minha casa. Estavam de tocaia, com certeza, porque sabiam que eu estava sozinho e que demoraria um bom tempo até que alguém chegasse. Depois, pegaram ele na rua, voltando da faculdade. Algemaram suas mãos, amordaçaram sua boca e ainda deram a clássica coronhada na cabeça com a arma comprida. Vamos ver se você para de dar problema agora, eles disseram.

Os livros dele ficaram caídos na calçada, junto com uma rosa amarela que ele carregava junto, deve ter ganhado.

Entrou no banco de trás, empurrado com uma brutalidade desnecessária pelo careca com cara de burro. Se sentou junto a mim, óbvio, era o único lugar que tinha, as coxas se espremendo uma contra a outra pela falta de espaço. Espaço para três, mas eram quatro pessoas sentadas. Nós, magrelos, não fazíamos diferença. Os dois gorilas, um de cada lado, blindavam a porta.

Ainda meio zonzo pela coronhada, sentou de cabeça baixa, pensando que iria morrer, talvez. Quando o carro arrancou na rua escura e deserta, parecendo cena de filme, se arriscou a olhar para o lado e me viu. Nosso olhar se encontrou furtivamente e ele esboçou o sorriso que a mordaça permitia. Ou nem sorriu e foi só algo que eu vi lá dentro dele. Mas percebeu que não estava completamente sozinho, como eu também tinha acabado de perceber.

Não dá para falar que nós éramos amigos ou algo do tipo. A gente se via de vez em quando nas reuniões do coletivo ou em alguma outra atividade. Ele sabia quem eu era e vice-versa e, geralmente, quando um falava, o outro concordava com a cabeça, depois nos olhávamos com certa cumplicidade. Quando nos encontrávamos pelo corredor da faculdade, a gente se cumprimentava discretamente. Era um desses (não) relacionamentos que podem durar anos na base do olá, tudo bem, sem se desenvolver muito. Mais por falta de oportunidade, eu acho, caso contrário seríamos grandes amigos. É que ele estudava à noite, eu de manhã. Ele vivia na morada estudantil, e eu com meus pais. Eram universos diferentes.

O sedan era preto (claro que era um sedan preto) - e todo o resto vestia preto naquela noite - encostou nos fundos de um prédio que me parecia uma

delegacia, só que não tinha nada escrito. Logo vieram mais homens, dessa vez de farda, encontrar os nossos homens, e percebi que estavam nos esperando.

Eles desceram e foram para dentro, nos deixaram trancados, com os vidros fechados. Estava um calor dos infernos, e, mesmo assim, minhas duas mãos suavam sem parar. As gotas de suor gelado se espalhavam por onde eu encostava, deixando tudo ainda mais desagradável.

Tentei me virar e ver alguma coisa, mas, além de os vidros serem muito escuros, eu estava com o corpo dolorido e quase imobilizado. Lembrei que na hora que me algemaram, torceram meu braço até quase quebrar. Num instinto meio irracional, pensei que, se a gente fosse rápido, daria para fugir, só porque não tinha ninguém olhando. Mas eu mesmo logo me dissuadi, e respirei fundo e conformado.

Ao meu lado, ele continuava com a cabeça baixa, não sei se percebeu que nós tínhamos parados e estávamos sozinhos no carro. Não sei se, àquela altura, ele tinha consciência de qualquer coisa. Seus lábios se mexiam, incessantemente, abrindo e fechando. Acho que também estava rezando.

Encostei minha mão direita na esquerda dele. Suavemente, para não assustá-lo.

Vai ficar tudo bem, eu disse.

Dali, foi uma sucessão de fatos que mal dá para explicar. Do prédio estranho, nos levaram para um batalhão de polícia, depois para uma delegacia de verdade e, por fim, cadeia. E ir para a cadeia, depois de perder a noção de tempo com tanta coisa que tinha acontecido, era, mais ou menos, como chegar em casa cansado no fim de um dia de trabalho duro. Então a ficha caiu e eu me dei conta de que estava preso, definitivamente. Os dois estávamos.

Olha que sorte, nos puseram na mesma cela, só os dois. Vai ver não queriam misturar presos comuns com universitários encrenqueiros, o que era um risco. A gente poderia acabar aprendendo a fabricar bombas ou assaltar quartéis. Ou, ainda pior, vai que a gente começava a falar sobre Marx com os outros presos e sobre a exploração do homem pelo homem. A revolução começaria ali mesmo, aposto.

A cela era bastante desconfortável. Evidentemente. Não tinha colchão, nem nada e nossa cama era o chão de cimento. Bem em cima da parede tinha um buraco gradeado na parede, que, na falta de termo mais apropriado, pode-se dizer que era uma janela. E nossa única distração era prestar atenção nas sombras e vozes que vinham ali de fora. Uma versão de mau gosto da caverna de Platão.

Os dois só de cueca lá dentro. Quando o dia amanhecia - e sempre era logo que eu tinha conseguido dormir - nos acordavam jogando um balde de água

gelada. Foi ficando insuportável. Ele começou a adoecer e tremia de frio. De noite, na hora que os soldados calavam a boca e os outros presos paravam de gritar, geralmente de dor, a gente se encolhia para tentar dormir, mas o frio não deixava. No quarto dia, jogaram um cobertor rústico e mal cheiroso em cima dele. Se esquenta, vagabundo, para você ver que a gente não é tão mal. Ele se enrolou na coberta, como uma criança, sem responder nada. Então pegaram outro balde de água gelada, jogaram na coberta e saíram rindo. Ficou tudo pior.

Eu, que vivia doente, não sei como não fiquei dessa vez. Coloquei na cabeça que tinha que ser forte e fui. Mas fiquei com pena dele. Estava pálido, com grandes olheiras. Uma cara de doente, fiquei com medo de ele morrer.

No outro dia, me deitei perto dele. Disse baixinho, no seu ouvido, que era para a gente se esquentar. Deitamos juntos então, abraçados. Senti ele dormir, a respiração profunda e o coração batendo forte. Vou ficar acordado, pensei. Antes do dia amanhecer, vou para meu canto. Se aqueles carrascos nos virem deitados assim, não vão perdoar. Mas não aguentei e acabei dormindo também. Não só pelo calor, mas, depois de tantos dias, acho que finalmente nos sentimos protegidos, ainda que soubesse que nada poderia nos proteger.

De repente, o balde de água fria. Tinha, assim, uns doze homens fardados em frente a cela, um foi chamando o outro. Olha lá, sargento, vai ter que jogar água fria para separar os dois, que nem cachorro trepando. Os dois viadinhos.

Além de comunistas, são viadinhos. Tem que tirar foto e mandar para a família.

Que vergonha.

Pulei de pé, empurrando ele para o outro lado sem querer. Fiquei arrependido e com mais pena. Acorda, eu disse, e ele foi abrindo os olhos muito lentamente, parece que tinha desistido. Senti minhas pernas molhadas, acho que urinei em mim mesmo de tanto medo.

Os caras foram saindo, ouvi falar em transferência, que estava na hora de nos separar. Não tinha o que fazer. Sentamos cada um num lado da cela, encolhidos. Ninguém tinha coragem de falar nada. Esperamos, o que mais dava para fazer.

Não sei quanto tempo passou, porque as horas eram meio iguais. Só quando o sol nascia ou se punha que era diferente. Eles voltaram então, tinha um homem diferente junto, sem farda, com muita cara de mau. Devia ser um tenente, alguém mais importante que os outros. Não falou nada, só olhou e balançou a cabeça. O sargento careca, aquele com cara de burro, olhou para mim gritando. Se apruma que você vai para a cela comum, lugar de bandido é com bandido. Depois olhou para ele e disse. E você, se prepara. Vai conhecer a

Eu sentia tanta, mas tanta raiva quando aquela gente saiu - deviam de ter ido buscar algemas ou algo assim - ele veio até onde eu estava e segurou minhas mãos. As dele estavam geladas, ou eram as minhas. Frio, medo, ou febre? Seus lábios finos e sem cor mal se abrindo, disseram. Obrigado, ele disse. Pelo quê, perguntei. Por existir.

Vieram e levaram ele primeiro. No caminho, eu já o ouvia gritar, porque batiam em suas pernas com o cassetete. Quanto mais gritava, mais apanhava.

Levaram, foram levando. Para onde, não sei. Não sei nem se ele chegou aonde queriam levar, de tão fraco que estava. Foi para o inferno e ficou, que era o único lugar para onde esses homens maus conheciam o caminho.

Que tristeza me deu. Sobreviver àquilo perdeu o sentido. Por que não me levaram em vez dele, podiam me bater, matar, fazer o que quisessem, eu não me importava. Mas não com ele, que tinha aquele olhar triste, como se conhecesse o destino que ia ter desde que nasceu. Aquele olhar triste e bonito, que parece um poema.

Senti uma lágrima escorrer pelo meu rosto e, o sol batendo, a fez brilhar, como um prisma. De novo, não sei quanto tempo passou. Só me sentei encostado na parede e comecei a rezar, gemendo e suspirando neste vale de lágrimas.

Julia Mascaro Alvim