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Um barulho interrompe a sequência de seus pensamentos, chamando-a de volta à realidade, após uma suspensão cuja duração nem ela saberia quantificar. A princípio, ela olha ao redor, confusa. Em seguida, identifica de onde vem o ruído.

A alguns metros de distância - ela deve apertar os olhos com força para poder ver - um homem está tentando agredir um animal. Um cachorro? Não, é um gato. Ele tenta chutá-lo, mas o bichinho com um movimento rápido consegue escapar.

É uma cena que não dura muito, que mal interrompe a tarde e a tranquilidade silenciosa daquele vislumbre dos subúrbios, em que alguns trechos de verde soltam a respiração de quem procura uma breve folga do cimento, do alcatrão e dos gás de descarga.

Depois, como se nada tivesse acontecido, o homem se afasta e o gato faz o mesmo, mas na direção oposta.

Para dizer a verdade, observado de longe, nem parece um gato. Ele avança em pequenos passos, leve como uma pluma, como se manter-se de pé e equilibrado lhe provocasse um esforço enorme, movendo-se por inércia e em harmonia com os sopros suaves do vento e não por uma vontade precisa de avançar.

Lara olha para ele com curiosidade. Poderia ser um filhote ou um espécime adulto, que cresceu em condições desesperadas e, portanto, ficou extremamente desnutrido. De vez em quando, ele para e, naqueles momentos, não se parece mais com uma pluma, mas com um entulho, um resíduo, na melhor das hipóteses uma pedra escura e anônima, que não acrescenta nada e nada tira da natureza acidental do caminho que serpenteia à beira dos canteiros do parque.

À medida que se aproxima, o contorno do corpo debilitado se torna mais visível e digno de compaixão. Lara gostaria de ignorá-lo, desviar o olhar daquela visão dolorosa, mas não consegue. Ela é fascinada, hipnotizada por aquele ser tão frágil, mas tão visivelmente teimoso.

Quando ele está prestes a alcançá-la, quando só faltam alguns passos para flanquear o banco em que ela está sentada, Lara faz um verso tentando atrair sua atenção. Surpreendentemente, o gato ouve, para e olha para ela. Tem olhos turvos, escondidos sob resíduos de muco seco. Então, ele começa a andar novamente, balançando como a lâmina de um pêndulo antigo.

Ao tocá-lo, Lara não se importa que ele possa ter pulgas. Nem mesmo a idéia de que ele possa transmitir-lhe alguma doença a toca. O pêlo está arrepiado e sujo.

Em alguns lugares, o pêlo falta e têm partes da pele cobertas de crostas e feridas profundas, vestígios de sarna ou brigas furiosas.

Quem te reduziu assim?

Em resposta, o gatinho ronrona - parece quase feliz - e a esfrega entre os tornozelos.

Espere, vamos ver se tenho algo para você.

Lara abre a mochila, remexe um pouco e pega o pacote de bolachas com as quais ela pensara fazer um lanche.

Eu acho que você precisa mais do que eu, certo?

Lara é muito magra. Tem pulsos finos com uma pele diáfana e branca, marcada por veias azuis como riachos de montanhas altas. Ela deveria comer mais, mas ninguém se importa de dizer isso para ela. Nem ela mesma se importa.

Lara mora sozinha. Lara està sozinha. Mesmo se ela divide o apartamento com duas colegas da faculdade.

As costas do gato estremecem sob seu toque e, em troca, Lara se dà conta que, excluindo si mesma, há meses ela não se permite o luxo de tocar em alguém. Ela se dà conta que esse gato é o único com quem ela fala, realmente, há semanas.

Lara abre o pacote e algumas migalhas caem. O gatinho cheira o ar e, seduzido, pula no colo dela. Com as garras das patas de frente, ele puxa um fio das meias escuras, encobrentes, de cento e vinte denier, que ela se acostumou a usar, para que suas pernas pareçam um pouco maiores.

Calma, calma! Ela implora, mal escondendo um sorriso.

Depois tira um biscoito da embalagem e o divide em pequenas porções que coloca ordenadamente nas coxas, como se estivesse preparando um banquete para um convidado especial.

O gato é tão voraz que, em várias ocasiões, corre o risco de mordê-la. Algumas vezes ele consegue. Come o primeiro biscoito em pouco mais de um minuto.

Enquanto Lara tira outro da embalagem, o gato lambe as patas, alternadamente, primeiro a direita, depois a esquerda, o nariz mantido baixo, apontado para o ponto em que pouco antes havia os pedaços que rapidamente devorou.

Lara começa a quebrar o segundo biscoito e o gato a atrapalha freneticamente -talvez ele esteja tentando ajudá-la - movendo as patas como se quisesse dizer, apresse-se, mova-se! O gato a arranha, mas sem machucá-la.

Mais tarde, em casa, Lara encontrará pequenas feridas avermelhadas nas mãos que não se preocupará em desinfetar.

Desta vez, ela nem tem tempo para organizar as porções, porque a cada tentativa o gato arranca a mordida de seus dedos, engolindo-a quase sem mastigar.

Você estava com muita fome, hein?

Lara se vê invejando-o por sua voracidade, pela maneira pela qual, através daqueles pedaços secos e salgados, o gato parece estar engolindo possibilidades inteiras de vida. Ela poderia levà-lo em casa. Tem quase certeza de que, se ela tentasse abraçá-lo, ele não resistiria. Ao contrario, ele ficaria agradecido. Por tê-lo olhado, por tê-tê-lo acolhido, por tê-tê-lo salvado. Afinal, não é isso que todo mundo, incluindo gatos, está procurando?

Sim, ela o levará para casa, o levará com ela. Cuidará dele. Irá alimentá-lo, se preocupará com ele. Talvez ele irá até amá-lo. E isso poderia ser o começo de algo bom, algo que gradualmente a ajudará a se amar. Porque amar-se é a única coisa que Lara realmente precisa.

O segundo cracker termina mais rápido que o primeiro. Lara está se preparando para tirar outro da embalagem, mas de uma maneira inesperada o gato sacode, como se estivesse irritado, e pula.

Ei, espera!

Ele não a escuta. Ele nem se vira para olhá-la. Nem um pequeno aceno de cabeça, nenhuma forma de gratidão.

O gato vai embora e, dessa vez, é rápido. A pequena refeição parece ter fornecido energia suficiente para revigorá-lo. Ele não percebe o que recusou, o que deixou para trás. Mas é algo que ele nunca conheceu - consideração, cuidado, amor - por esse motivo, o gato não sente nem necessidade nem falta disso.

Quando ele chega ao portão do parque, atravessa-o rapidamente.

Lara deseja que ele se vire para cumprimentá-la.

Mas ela sabe, Lara sabe, que os gatos não dizem tchau.

Este gato nem sequer lhe disse miau.

Maria Vania e Jacilene Bandeira