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— Conta-me uma história verdadeira, avô! — lança o menino de uns oito ou nove anos. — Daquelas da televisão!

Desde pequeno que o ancião lhe conta histórias do seu passado profissional na televisão pública, sobretudo as dos tempos pioneiros.

— Já tas contei todas, Ricardo! — mente ele, conscientemente. As histórias não acabam nunca, sabe-o bem, a única limitação é a memória. — Queres qual?

— Aquela da avaria das luzes da câmara do locutor; e ele fazia caretas, a pensar que a câmara não estava a transmitir — entusiasma-se o miúdo.

Aquela lembrança divertida traz-lhe instantaneamente, sem saber por quê, outra recordação antiga, passada também naquele estúdio. Não sabe se já a contou, mas envereda por essa peripécia:

— Vou-te contar a do Homem Invisível — declara, confiante na proposta.

— Conta, avô, conta! Essa não conheço — delira a criança.

— Foi assim: no princípio da Televisão Portuguesa, havia um programa que passava filmes policiais e que era apresentado por um senhor que se intitulava

“Inspetor Varatojo”. O senhor explicava muitas coisas dos filmes e a maneira como os polícias e os detetives, por meio de raciocínio e muita observação, descobriam os bandidos que faziam os crimes. O programa era só isso: o senhor a explicar estas coisas e depois passava o filme. Mas era muito popular.

Ricardo começa a ficar parado, preso à história.

— Como só tinha um senhor a falar, o programa era feito num estúdio pequenino, ainda mais pequeno do que esta sala. E não precisava de mais do que duas câmaras: uma para dar a cara do senhor e outra para o mostrar em tamanho maior, a ver-se em fundo uma secretária ou um mapa ou algo assim.

Na altura, eu era operador de câmara, mas fazia o que fosse preciso, das coisas técnicas. Nessa época, éramos “meia dúzia”, éramos como uma família. Ora, certa vez, o senhor Artur Varatojo — era assim que ele se chamava — precisou de ir ao Brasil, lá por coisas dele. E, portanto, não podia estar cá para apresentar o programa, que passava uma vez por semana.

— Então, gravaram-no a falar no estúdio, antes de ele ir embora, e no dia do programa passaram o vídeo! — deduz o rapazito, já muito rodado em tecnologias.

— Pois… O problema, Ricardo, é que nessa altura não havia gravadores de imagem, só de som… — articula o avô, ciente da mossa que está a causar nas certezas do petiz e do aumento de curiosidade que lhe está a suscitar.

— Não havia, avô? Como é que isso podia ser?

— Era! Não havia. Tudo era feito em direto: peças de teatro, concertos, provas desportivas. Só se filmava quando alguma coisa não se conseguia passar em direto.

— Já sei, filmavam com uma máquina fotográfica, como aquelas que tens guardadas — adianta-se o neto, a agrupar informações.

— Isso! Mas maiores; máquinas de filmar que usavam grandes rolos de fita de filme. Era um processo complicado, demorado e caro. Por exemplo, as notícias para o Telejornal eram captadas em filme. O operador, depois de as filmar, voltava para os estúdios, levava o filme ao laboratório, onde era revelado; depois era montado, para tirarem as partes sem interesse, e só então era posto na máquina que o transmitiria durante a emissão do Telejornal — descreve o ex-técnico com pequenos lampejos no olhar. — Percebeste tudo?

— Hmm! Acho que sim. O avô já tem falado disso.

— Mas, dessa vez, não filmaram o Inspetor Varatojo, já não me lembro por quê. Se calhar, foi porque gostou da solução engenhosa que combinou comigo.

— O quê, avô, tu é que resolveste o problema? — recrudesce o entusiasmo parental do rapaz.

— Já não me lembro de quem teve a ideia. Sei que nessa altura — o antigo operador de câmara semicerra os olhos, a concentrar-se na memória, que cada vez está mais volátil — devia ser aí por 1961, 62..., andavam a passar na televisão os filmes do Homem Invisível. Com grande êxito. E uma coisa levou à outra. Pois se o Inspetor não estava cá… estava invisível. Às vezes umas ideias puxam as outras.

— O quê, avô, o quê? — o jovem não cabe em si de excitação.

— Pensámos pôr o Inspetor Varatojo a apresentar à maneira do Homem Invisível! Embrulhado em ligaduras? Não; invisível. Só com a voz dele.

— Eh, avô, isso era batota, não? Só o som?

— O problema é que ficava uma imagem muito pobre, sem movimento.

Televisão são imagens a mexer. É o que as pessoas esperam. Então, resolvemos dar-lhe algum movimento, para parecer verdade. Fizeram-se as gravações de som do Inspetor Varatojo a apresentar os seus filmes policiais e ele pôde ir à vida dele.

Com tanto contacto com filmes, o ex-técnico aprendera alguma coisa da maneira de fazer render uma história, até porque também passara pela realização.

— No dia do programa — acho que era às segundas-feiras — apontou-se uma câmara de frente para uma secretária, com uma máquina de escrever em cima; outra câmara só a mostrar a máquina, do ponto de vista de quem estivesse sentado a escrever à máquina. Era uma máquina daquela época, grande, mecânica, com uma letra metálica em cada braço comandado por uma tecla. À hora do programa, quem estivesse em casa a assistir ouvia o bater das teclas e a voz de sempre a apresentar os filmes, mas não via o Inspetor, supostamente sentado à secretária, a ler o que batia à máquina; só a secretária e a cadeira vazia.

Um sorriso deliciado, mas subtil, aflora o rosto do narrador.

— A outra câmara ia mostrando a máquina de escrever a bater as teclas sem ninguém lhe tocar. Ninguém, não! A voz do Inspetor avisara no princípio, em tom maroto, que nesse programa ele próprio estava invisível…

— Boa, avô, fantástico! Isso devia ser ainda mais interessante do que nos outros dias, não? Mas como é que as teclas batiam sozinhas?

— Eh, eh, eh! — a voz excitada do miúdo é música para os ouvidos do ancião. É hora de lhe fazer, finalmente, a revelação. — Por baixo da secretária em que a máquina estava pousada, estava eu, com dez cordéis presos aos dedos, cada cordel a um dedo e a um braço da máquina… Enquanto ouvia a voz gravada do Inspetor, eu ia puxando ora um, ora outro cordel, dando a ideia de que o Inspetor invisível é que estava a acionar as teclas...

— Caramba, avô! Afinal, nesse dia, o homem invisível eras tu!

— Sim, e era duplamente verdade — eu também estava bem invisível por debaixo da secretária.

— E as pessoas a julgar que era o Inspetor Varatojo invisível… Esta foi boa, avô! O teu trabalho devia ser muito divertido. Quando for grande, também quero ir trabalhar para a Televisão. Agora, queres jogar à bola?

http://vislumbresdamusa.blogspot.pt/

Joedyr Bellas

Sou um jogador inveterado e confesso.

Mas agora estou aqui na sacada.

Fugindo do zum-zum-zum, a minha cabeça dói levemente. Uma dor fraquinha, fina, mas chata.

Insistente.

A chuva cai torrencialmente e fico distraído com a água batendo nas marquises, no chão, nas árvores.

A chuva brinca de gotejar nos fios.

Uma pessoa, acho que uma mulher, sem sombrinha, não se importa com o corpo molhado, a roupa ensopada, daqui, parece até que canta uma música qualquer;

Eu conheço essa música?

A dor na cabeça não para, penso em tomar um comprimido, mas passei da conta na bebida e o remédio não faria efeito.

Prefiro o defeito.

A mulher simula uma corridinha. Dois, três, passos e desiste. Foi puro charme. A intenção dela não era correr, não era fugir da chuva, não era procurar abrigo.

Será que ela tem casa para morar?

Deve ter. Se veste bem, uma roupa, posso arriscar, na moda. Apesar de eu não entender absolutamente nada de moda. De grife. Pra mim basta vestir.

Mas a mulher tem uma certa elegância, se destacaria, mesmo que a rua

Alguém me chama, diz que vai ter uma nova mesa de pôquer, um novo páreo no hipódromo.

Finjo que não escuto.

Não é mais pela dor de cabeça que eu não volto lá pra dentro, é aquela mulher que atrai toda minha atenção.