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Primeiramente, é com muito prazer, que vou lhes apresentar o meu avô, Lázaro Marani. Nós o chamamos carinhosamente de vô Lazinho. Ele era um homem franzino, seus cabelos loiros se misturavam aos ruivos, que acentuavam os olhos esverdeados que mesclavam com azul-celeste. Seu olhar era sereno, sua fala tranquila e doce, tinha o dom de apaziguar as relações com sabedoria da sua experiência de vida. Via-se nele, um bom homem. Realmente, era um grande homem e pleno de gratidão.

O homem que pediu a Deus cem anos de vida e chegou aos 102 de idade.

Nós tivemos o privilégio de tê-lo conosco, até o fim dos seus dias. Há três anos atrás, uma queda tirou sua mobilidade. Tinha sede de viver mais e mais, até quando aguentasse suas forças. Era abraçado pela Fé em Deus. Evangélico, não fazia nenhuma distinção de religião, pois considerava Deus único e Pai de todos.

Era filho de imigrantes italianos genoveses, cujo os pais vieram do estrangeiro para trabalhar na lavoura cafeeira na América brasileira, mas antes, o meu bisavô Luís Marani, trabalhou na cidade de Torrinha, arrumando a estrada de ferro. Em época de Primeira Guerra Mundial (1914 -1918), nascia o meu avô, em 25 de janeiro de 1918, na cidade de Torrinha do estado de São Paulo – Brasil.

Em sua memória tinha momentos de sua infância, lembrava que ainda criança, sua família na década de 1920 mudara para a região Centro Oeste do estado de São Paulo, precisamente na fazenda cafeeira Chantebled, próxima a cidade de Júlio Mesquita. A fazenda empregava centenas de mão-de-obra imigrante. Na década de 1950, a fazenda foi comparada a uma cidade, era de admirar-se, pois até cinema havia nesse centro para a comunidade. Além dos italianos, havia os japoneses, que chegaram posteriormente à fazenda e eram estranhos aos olhos dos ocidentais e dos próprios estrangeiros italianos. Também

Lá cresceu, ao meio as plantações de café, juntamente com 7 irmãos:

Paulinho, Enéias, Balbina, Augusto, Catarina, Luís, Angelina e Lázaro, o caçula.

Para ele, uma espiga de milho poderia ser tudo o que quisesse, uma boneca, um carrinho e tudo mais o que desejasse, pois era seu mundo. Costumava brincar com as espigas de milho nos longos corredores de café, enquanto seus pais e irmãos mais velhos, cuidavam da terra e da produção da lavoura, pois para cada família era dado 2.000 pés de café, que ficariam sob a responsabilidade do grupo até a colheita. Outras culturas agrícolas podiam ser cultivadas pelos próprios colonos, nos espaços dos corredores da plantação de café para subsidiar a alimentação. Além disso, a criação de porcos e galinhas era permitida para o próprio sustento da família. O cultivo da terra à plantação de milho verde para mesa, os pratos saborosos como o curau, o bolo de milho e a polenta, são apreciados pelos italianos na cozinha brasileira.

Essas são palavras de meu avô, expressas para falar do tempo passado que não existe mais. Um tempo rico pela natureza e de gente humilde. Um tempo duradouro, sem pressa para poder vivê-lo e ter uma extensão atemporal a perder de vista, às várias gerações para poder significá-lo e ressignificá-lo. O homem secular se deparava com os pés de café com mais de 2 metros de altura e carregado de frutos. A produção era alta. A vida desses imigrantes circulava no ciclo do café, marcada pela passagem do tempo na chegada da florada branca, que trazia o nascimento do grão verde jovem e seu amadurecimento, do grão vermelho pronto, para a fase da colheita. Não conhecia a doença, e nem a praga do café, pois a terra fértil e gentil estava em meio à mata virgem e aos animais selvagens que ali vagavam.

O café acabou. A fazenda de café não existe mais, porém hoje se planta o capim que forma o pasto para o gado. Não há colonos e nem as casas. Não há o milho verde granado, que produz o amido em abundância, que faz o mingau da polenta ficar consistente, que possa despejar numa mesa de pedra e cortá-lo em pedaços quadrados, com o fio da linha de carretel e ter toda a família em volta da refeição, denominada de “hora sagrada”.

Onde está esse tempo? Esse tempo encontrava-se na memória do meu querido avô. Hoje nem o passado e nem o meu avô. O tempo e o meu avô se sucumbiram no próprio tempo.

A beleza dessa realidade é a simplicidade e a humildade de viver a vida, em que a terra voltava para homem, o bem que ele plantava. Uma retribuição generosa e que nos falta em tempos atuais. O mundo cindiu em dois tempos, passado e presente. O futuro surge na imensidão da incerteza, imerso na escuridão do amanhã. O homem voltou ao tempo narcísico, e regredido prioriza a futilidade, se movimenta em prol de si mesmo, e o “ser” , tornou-se “ter”, ou seja, eu tenho, por isso “sou” aquilo que não é real e por isso, não posso existir.

A experiência de vida em sua complexidade, não está podendo ser valorizada pelo homem contemporâneo. O homem de experiência acabou de morrer.

Quantos conhecimentos empíricos! O homem que se formou pela faculdade da vida, e que permanece vivo em nossos sentimentos. Tantos sofrimentos e perdas, o último dos seus. Calos em suas mãos, algumas rugas expressas em sua pele, cabelos grisalhos, que somam a quantidade de anos e a flexibilidade com uso das palavras. Não expressava sua dor, guardava-a só para si. Era um homem de pouca prosa, porém sabia o momento certo de se pronunciar.

Jovem sofreu uma grande perda, encontrou o pai morto no milharal.

Começou a trabalhar muito cedo na plantação de café, depois aprendeu ofício de marcenaria com os irmãos, e até tentou abrir um negócio em família, uma funerária, por ter a arte de fazer caixões, mas por uma ordem maior da cidade, teve que fechar o negócio. Um dia, a fazenda precisava de um maquinista para beneficiar toda a produção de café, pois o senhor que trabalhava na máquina estava de partida e meu avô foi convidado a aprender em apenas três dias a nova função. Em suas palavras, a função exigia minuciosidade no manejo com os grãos e uma afinada audição para o acompanhamento do desempenho da máquina e do beneficiamento do café. O processo de beneficiamento é deixar o grão do café pronto, ensacado para a venda. Assim permaneceu nessa função por mais de 20 anos, mesmo depois de aposentado.

Em sua fase de namoro, flertou com uma japonesa. Sua intenção era boa, desejava casar-se, mas foi orientado pela namorada que o pai não aceitaria o casamento e que o mataria, se assim o fizesse. O meu avô como homem de paz, resolveu não provocar sua própria morte e desistiu desse casamento. Ademais, casou-se e teve um casal de filhos, Arlindo e Tercília, criando-os após a separação. Viveu somente para a família.

O meu avô, como filho de imigrantes não conseguiu estudar na infância, muito mais tarde, quase próximo de sua aposentadoria, pode frequentar a alfabetização, conhecido como Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização), que o possibilitou a escrita e a leitura básica. Com um pouco de sotaque italiano, fazia suas anotações em pedacinhos de papéis, como as datas das visitas de pessoas conhecidas e de parentes, mercado, igreja, telefones, recados, etc..., apesar da lucidez, era uma forma de memória externa, como o reservatório de informações que poderia acessá-lo, similar ao nosso pré-consciente. Essa é uma pequena homenagem que dedico ao meu querido avô, que faleceu em plena pandemia do coronavírus, em 01 de maio de 2020.

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Clarice de Assis Rosa