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Epílogo

O delegado Martinez já havia aprendido na prática que as pessoas mentem, as evidências não. E as evidências levavam a crer que Lara Lins havia evaporado dentro de casa. Esta teoria deixava-o completamente perdido na investigação, pois ninguém some, isto é uma impossibilidade molecular.

Em dezoito anos de profissão já havia visto muitos casos de desaparecimento. Mas esse desafiava seus instintos. Depois de quase dois meses de investigação, não tinha nenhuma pista a seguir, nenhum suspeito a apontar. A polícia encontrara a porta trancada com a chave do lado de dentro. Nenhum item faltando, nada revirado. A desaparecida não tinha levado documentos, celular, nem dinheiro ou cartões do banco. Estava mais uma vez, no apartamento, em busca de algum detalhe que poderia ter escapado. Passeia os olhos pela sala e lembra-se do lap top encontrado sobre a mesa e da esperança frustrada quando a perícia não indicou nada de relevante além de uma pasta com alguns de seus livros. Sentia-se impotente diante de tantos porquês sem resposta. A polícia é a última voz da vítima. Quanto o delegado desejava falar por ela!

Para Lara, nada em sua vida tinha mais força e significado do que escrever.

Além de ser sua profissão, era uma necessidade diária. Considerava-se uma pessoa de sorte com a carreira em ascensão e por conseguir sobreviver daquilo que mais amava fazer. Sabia que no Brasil isso era um luxo imenso.

Vinha se especializando nos últimos anos em romances policiais, gênero que lhe atraía muito desde a adolescência onde devorava os livros de Agatha Christie. Naquela época, ensaiava alguma coisa, pequenos contos que nunca mostrava a ninguém. Guardava-os no fundo da gaveta e deixava-os a espera juntamente com o sonho de um dia tornar-se uma escritora. Mas jamais imaginou que seria famosa.

No momento estava com um livro na reta final e dedicava-se quase que o tempo todo na sua criação. Às vezes adentrava madrugadas escrevendo, tão envolta ficava na história que criava.

Agora que se aproximava do fim, sentia-se amargurada como em todas as outras vezes ao saber que não teria mais a companhia daqueles personagens.

Depois de tanto tempo de convivência com uma obra, um vazio incômodo a invadia, apesar da satisfação e realização que lhe proporcionava. Eram sensações conflitantes que não sabia como explicar. A volta à realidade e o rompimento da ligação criador/criatura eram delicados de administrar. Mesmo após dois anos de terapia ainda lidava com dificuldade com este momento. Era como uma mãe relutante em se desgarrar do filho.

O ato de escrever é solitário. Um escritor precisa se retirar do convívio e estar consigo mesmo e suas ideias criativas. Para Lara, essa solidão eram

lhe diziam exagerar nesse isolamento. Talvez fosse uma fuga ou uma busca incessante de si mesma. O fato é que convivia muito bem com sua solitude. Mas não achava prudente revelar que preferia estar em seu mundo imaginativo do que com seres humanos reais. É que sentia-se mais à vontade, entendia-se melhor.

Depois de trabalhar o dia todo, aquela noite pretendia descansar. O epílogo do livro estava lhe consumindo, tanto que já havia escrito e deletado três vezes.

Não encontrava o final ideal, parecia sempre faltar-lhe alguma coisa, um detalhe que não conseguia captar. Adiava o fim da história supondo que o idealizado ainda não era o perfeito.

Foi para a cama cedo e logo adormeceu pesadamente. Tinha esperanças de, na manhã seguinte, com a mente descansada, encontrar o tão intrincado final. Naquela madrugada aconteceu-lhe algo diferente. Acordou, sem motivo aparente, e logo percebeu uma luz fraca azulada vinda da sala. Com o coração na garganta, pernas trêmulas, levantou-se o mais silenciosamente possível e tateando rente a parede esgueirou- se até a porta do corredor, dali tentaria ver o que ocorria. Prendendo a respiração, vê, por uma pequena fresta, uma pessoa, de costas, sentada à mesa e debruçada sobre o computador. Sente um arrepio instantâneo percorrer- lhe a espinha. Assim que começa a se movimentar, ouve:

— Lara, você está aí?

Paralisada, grudada na parede do corredor sem conseguir se mexer, não entende o absurdo que está acontecendo. A voz novamente se manifesta.

— Não tenha medo. Sou eu. Venha até aqui. Olhe, estou acendendo as luzes.

Lentamente consegue dar alguns passos e retorna aonde estava, próxima à porta do corredor. Na sala iluminada, sente um sobressalto maior quando o vê.

Ele a incentiva, aproximando- se com um sorriso, estendendo-lhe a mão.

— Pode vir, não tenha medo.

Lara toma um olhar duvidoso, não sabe se pode confiar. Ainda assustada, pega em sua mão e deixa-se levar até o sofá. Sentados lado a lado, pensa que pode estar presa em algum tipo de sonho. Pergunta-se qual o motivo dele estar ali. Puxa fundo um suspiro e fala:

— Ufa, você me assustou. Como veio parar aqui? — tenta recobrar a calma.

— Desculpe-me se te atrapalhei, não era minha intenção. Se bem que... vai me dizer que não queria? Sonhou com isso — olha para ela com ar malicioso.

Mentalmente ela concorda mas não deixa transparecer. Sabe que deve temê-lo. Ele olha em volta e diz com sarcasmo:

— Bonito aqui. Você vive muito bem. Queria ver como iria se virar lá no lugar em que me colocou.

Ela tenta se explicar, tropeçando nas palavras.

— Procure entender, foi necessário. As coisas tomaram um rumo, um volume que nem sempre tenho controle. Eu precisava colocá-lo ali.

— Não entendo o que diz. Como assim não tem controle? Você é a senhora da situação. Não me venha com essa! — a tensão aumenta em sua voz.

Ela o observa sentindo-se incomodada com sua presença, mas também curiosa.

— Desde o começo isso estava planejado. Não será assim para sempre. As coisas vão melhorar — tenta acalmá-lo.

— Melhorar quando? Como uma vida num sanatório pode melhorar? Nós dois sabemos o quanto cresci, o meu valor.

— Sim, eu sei o quanto cresceu. Confie em mim, — nem ela confia no que está falando, mas precisa freá-lo — por enquanto é lá que você tem que ficar.

Ele balança a cabeça negativamente com insistência.

— Fala isso porque não é você que está lá. Tenho o direito de escolher meu caminho — a indignação é evidente.

— Acalme-se, assim não teremos entendimento — ela interrompe, mas ele ignora.

— Falo do jeito que eu quiser. Agora não estou mais à mercê do seu poder.

Tenho vontade própria — bate no peito estufado. — Quero ver você conseguir me dominar de novo — levanta-se num pulo.

Ela olha para o alto e o vê grande, não em tamanho, mas em grandiosidade de ser. Admira a complexidade de sua personalidade e coragem. Mas também o vê pequeno e indefeso. Reconhece que ele tinha tomado dimensões que não havia percebido e que não era mais de domínio seu. Precisa agir rápido.

— Onde quer ficar? Fale-me do seu desejo.

Sem necessidade de pensar, ele responde prontamente:

— Com você.

Imediatamente ela se arrepende da pergunta.

— Aqui? Isso é impossível, sabe disso — o medo volta a lhe apertar o estômago.

— Lógico que não. Vamos comigo. Repito o que já disse, você deseja isto.

A conversa estava tomando um rumo perigoso. A intenção de sua visita começava a se mostrar.

— Nós dois sabemos como você é — ele fala com voz mais mansa, seus rostos quase se tocam. — Eu também te sinto. Estamos ligados, nossos pensamentos se comunicam. Não há como vivermos separados, não adianta mentir. Onde eu estiver, você também estará, quer queira quer não. A prova do que digo é minha presença neste momento. Seu desejo me trouxe aqui. Não me negue.

As suspeitas de Lara confirmam-se.

— Então você veio para isso?

A pergunta não precisa de resposta. Ele apenas sorri calmamente.

Sente-se solitária numa encruzilhada. Duas forças brigam dentro dela. Não consegue resistir ao seu chamado e ao mesmo tempo tem medo. Ameaça fugir, mas é tarde. Suas pernas começam a ficar pesadas, os pés imóveis como atolados na lama. Sente uma vertigem e um frio invadi-la. Abre a boca tentando falar, mas não emite som algum. O pânico a domina por completo. Procura aflita amparo no braço dele mas, estranhamente, parece feito de ar, não mais consegue tocá-lo. Ele dá gargalhadas, divertindo-se com seu medo. Afasta-se andando para trás com ar de triunfo.

— Venha, venha, — estende a mão que ela não consegue pegar — siga-me

Ainda sem mover as pernas vai sendo puxada por uma força imantada, aproximando-se mais e mais dele, perdendo-se de si. Sente seu corpo sendo sugado quando encosta no dele. Ouve-o bem perto.

— Isso, você verá que tinha que ser assim. Nós dois juntos para sempre.

Esse é o nosso destino, nossa vontade — sua voz vai sumindo até ela não conseguir mais ouvi-lo.

Pouco a pouco seu corpo vai se ligando ao dele como duas nuvens que se misturam. Ela não reconhece mais nada, sente-se desfalecer. O corpo dele não mais está ali, eles não estão mais ali. Lara e Vítor fundem-se. Autora e personagem atravessam a linha divisória do real/imaginário. O limite havia sido rompido, não tinha mais volta.

No silêncio da sala, os primeiros raios da manhã ensaiavam penetrar. Sobre a mesa, um computador guardava um livro inacabado. O epílogo jamais seria escrito.

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Lizandra Antunes