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Ela me pegou nos braços e soprou a fumaça de seu cachimbo maravilhoso.

Práticas de cura que só eles sabem como realizar, por que elas vêm do encantamento profundo... e tudo começou como num sonho nos além aos quais seus voos pertencem.

Caminhava dispersando água pelo córrego. Procurava por pedras molhadas, pois tinha a impressão de que mesmo afundada uma pedra ainda permanece seca. Para mim, as pedras possuem algum tipo de película protetora que impedia a água penetrar. Mas não era assim com os meus pés. Toda vez que eu afundava o pé e o levantava para dar o passo, então ele emergia molhado como a folha da bananeira. A água nutria minha imaginação.

Olhei para a vegetação que subia da ribanceira. Muito verdinha, ela escondia borboletas e outros insetos pequeninos. Vi formigas subirem por um tronco deitado sobre o mato. Cada formiguinha levava algo nas costas. Não eram pedras nem grãos de areia. Elas tinham picado uma plantinha maior e levavam as folhinhas para seu formigueiro. Talvez morassem debaixo do tronco. Talvez elas gostassem mesmo é daquele caminho povoado por outras formas de vida, ainda que a árvore tivesse morrido. Alguns seres vivos se doam como alimento e caminho para outras vidas.

Mais adiante, sem se afastar muito da ribanceira, um bosque de bananeiras levantava-se. Grandes cachos de banana desciam delas indo encostar-se ao solo.

Os cachos adormeciam ao abrigo do solo. Alguns ao amadurecerem desabrochavam as bananas que serviam de alimento para pequenos animais e de pouso para borboletas. Por entre as bananeiras, aqui e acolá um coqueiro erguia-se e exibia cachos de côcos graúdos. Eles faziam sombra para as criaturas da terra, as que rastejavam e as que voavam, mas também pendiam em cima das águas, trazendo sombra para os animais e as pedras que habitavam o molhado.

As folhas da terra eram varridas pelo vento. Ele gostava de brincar empurrando as folhas da terra em direção as águas. Fazia parte de seu esporte de menino ver o que a água fazia com as folhas. O engraçado é que ora a água tragava as folhas levando elas para as areias das profundezas, ora as águas rejeitavam as folhas lhes empurrando para as ribanceiras. Esse exercício não terminava nem quando a correnteza mudava nem quando o vento dormia. As folhas mesmo procuravam este caminho assim como eu procurava o meu.

Diziam-me que o córrego tem a cor amarelada. Desacreditei disso. Na verdade, aquela areia que dançava na água do córrego tinha uma cor amarelada.

Se eu pegasse um pouco de água em minhas mãos poderia ter clareza disto. A água deixava que minha visão lhe atravessasse e que pudesse enxergar o outro lado. O mesmo não acontecia com a areia, ela sim era amarelada. Ela coloria a água com sua beleza singular. E as pedras faziam o mesmo

Sentei-me acima de uma ribanceira e me pus a escutar. A areia se debruçava na correnteza, caindo apressadamente por causa do meu peso. Pequenos pássaros se ajuntavam nas palhas dos coqueiros e anunciavam. O vento soprou diferente em ritmo de flores. Não encontrei minha pedra. Mas fui encontrado pela magia. O perfume da memória despertou meu espírito para aquilo que começava.

Não tardou. Também não havia motivos para se prolongar tanto a separação.

Senti a verdade daquele plano. Olhei para o córrego. Ele corria tão manso, sem pressa, quase parando. O sol se esticava nas águas. Quando fitei o centro do córrego, então algo maravilhoso aconteceu. Ao tocar a água, a luz do sol brilhou tão forte que me encandeou. Quando se levantou das águas em direção as nuvens a luz deu forma a uma silhueta. Minha vista escura impedia que eu a visse plenamente. Mas soube que algo se movia do córrego em direção à ribanceira onde estava assentado. Esfreguei os olhos na esperança que eles clareassem outra vez.

Antes que eu terminasse meu movimento, senti a presença assentando-se ao meu lado. Então me virei para ela. Minha vista milagrosamente voltou. Vi aquela velha negra sentada ao meu lado tragando seu cachimbo. Tinha um pano fininho amarrado na cabeça. Acho que ele servia para segurar seus cabelos, mesmo assim alguns fios brancos como as neves corriam em direção a sua testa e suas orelhas. Tinha um rosto envelhecido. Senti que as distâncias lhe corriam e deixavam-no cheio de mistérios.

Ela vestia uma saia colorida. Havia desenhos muito bonitos em sua blusa.

Notei que eles conversavam com o colorido da saia. Se eu pousasse os olhos naqueles panos por muito tempo podia ver as coisas se moverem: na blusa via pássaros voando e em sua saia árvores se balançavam. Também pude ver ninhos nas árvores e imaginei que de noite era possível que os pássaros voassem da blusa e fossem se deitar em sua saia para dormir. Tirei os olhos, pois senti que poderiam passar a vida toda voando naquelas roupas com os pássaros dela.

Mesmo assim não me senti preso.

Tudo nela era maravilhoso. Não parecia uma senhora alta. Na verdade, quando sentada ela era bem baixinha. Tinha lábios grossos. O fumo de seu

cachimbo lhes perfumavam. Seus olhos pareciam duas lindas estrelas negras.

Eram tão magnéticos quanto sua roupa. Olhos que vinham de longe.

Ela não pareceu incomodada com os meus olhares. Deixou que eu lhe olhasse. Mantinha uma face terna como se me quisesse bem. Passados alguns minutos, ela tirou o cachimbo da boca, puxando o ar que navegava pelas águas para seu nariz. Pela primeira vez ouvi sua voz serena e grave:

– Que lindo dia este para se caminhar por dentro das águas!

– É verdade – foi o que lhe respondi.

Então ela estendeu as pernas por sobre a areia, ajeitou a saia e disse assim para mim:

– Deita tua cabeça em meu colo. Quero te contar uma estória.

Achei o pedido estranho, porém senti que jamais poderia desobedecer ao pedido daquela mulher do antigamente. Sua velhice certamente me dizia muito sobre sua experiência e sobre sua sabedoria. Além do mais senti que não poderia dispensar o pedido de uma velha que viajava pela luz do sol. Me aproximei dela, pedindo licença e dizendo que não compreendia, mas estava ali para lhe obedecer. Ela me respondeu:

– Faz bem meu filho. Há muito tempo que espero aqui por você. Este encontro estava gravado desde antes de sua memória começar na terra. Você já estava gravado aqui antes de ir para lá. Este é um mistério que governa a todos nós, pois existimos em outros lugares antes que nosso espírito possa navegar em direção à carne. Mas este é o lugar no qual você foi preparado para nascer. E eu sou aquela quem te preparou e aquela que te cura aqui quando tu estás adoecido do espírito. É por isso que estou aqui.

Ao dizer essas palavras, ela levou novamente o cachimbo à boca. Mas desta vez colocou a base do fumo acesa para dentro da boca – fiquei com medo que ela se queimasse – e deixou o cano para fora. Ela virou o cano na direção de meu vazio esquerdo e soprou com força. A fumaça veio de encontro a mim e senti sua quentura me invadindo. Não me movi. Deixei que ela entrasse e me curasse.

Deixei que a senhora realizasse aquilo que suas palavras haviam anunciado e que me parecia muito bom.

Não demorou muito, ela parou, ajeitou o cachimbo na boca, puxou o fumo com os pulmões e falou por entre a fumaça que escapava pelos lábios:

– Está feito. Você vai ficar bem, mas não te esqueças de aprumar seu caminho quando chegares a terra. Tome cuidado meu filho, pois o mundo é uma ilusão.

Eu olhava atentamente em seus olhos e podia até viajar na profundidade daquela beleza irresistível. Não consegui lhe falar. Mas assenti dizendo que lhe compreendia. Eu que só queria encontrar uma pedra que fosse diferente de todas as outras, terminei me encontrando com uma força de cura que viajava pelo antigamente. Não sei o seu nome e até agora me pergunto de onde ela veio e como é possível viajar através da luz do sol. Senti que em seu colo iria adormecer. Por mais que eu buscasse resistir, não podia evitar que meus olhos fechassem como um pássaro não pode evitar descansar quando chega a hora.

Imaginei que fosse um efeito de sua cura.

Acordei apressado para ver novamente aquela velha misteriosa e lhe falar.

Mas não me encontrava mais em seu colo. Nada desapareceu de mim. Senti a quentura em meu vazio. As palavras se gravaram em minha memória. A estória corria em minhas veias…

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Marcos Nunes Loiola