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A autonomia é um dos conceitos abordados por Castoriadis em praticamente todas as suas obras, seja como aspecto principal ou como pano de fundo de muitas de suas reflexões. Suas preocupações com as questões políticas e estruturais da sociedade demandaram destaque às questões da autonomia e do imaginário, sempre ligadas à possibilidade de autotransformação, autogestão e autocriação histórico social da humanidade. O autor em sua obra, “Encruzilhadas do labirinto III: o mundo fragmentado”, destaca que a autonomia já era pensada pelos gregos e é requisito fundamental para o verdadeiro exercício da liberdade pelo homem.

A criação pelos gregos da política e da filosofia é a primeira emergência histórica do projeto de autonomia coletiva e individual. Se quisermos ser livres devemos fazer nosso nomos. Se quisermos ser livres, ninguém deve poder dizer-nos o que devemos pensar (CASTORIADIS, 2006, p. 138).

Talvez a melhor definição talhada pelo autor seja da autonomia como “dar-se a si mesmo suas leis. [...] um tipo de ser que se dá a si mesmo, reflexivamente, suas leis de ser”, um “agir reflexivo de uma razão, que se cria num movimento sem fim, como ao mesmo tempo individual e social” (CASTORIADIS, 2006, p. 140). Sem haver possibilidade de dissociação entre uma autonomia do indivíduo e uma autonomia da instituição social ou mesmo da sociedade em que está inserido.

Silva e Fensterseifer (2006), apoiados em conceitos de Castoriadis, corroboram com a ideia de que não há sociedade democrática sem indivíduos autônomos e não há indivíduos autônomos fora de uma sociedade democrática. Afirmam que “há uma relação dialética entre

o indivíduo (autonomia) e a sociedade (democracia)” (SILVA; FENSTERSEIFER, 2006, p. 4) e que enquanto indivíduos sociais somos uma “totalidade”, conceito abordado pelos autores e também por Castoriadis inúmeras vezes. Para nos constituirmos enquanto seres humanos, necessitamos do social, ao passo que, para exercermos papel na sociedade, necessitamos da autonomia, sem autonomia não temos possibilidade de participação ativa nas transformações sociais e deixamos de exercer qualquer tipo de participação política.

Castoriadis coloca esta possibilidade de autonomia como a possibilidade de um “pensar as próprias ideias”, com compromisso reflexivo, reorganização e reestruturação da história e dos conteúdos que formam o conhecimento que precede cada sujeito e, principalmente, sem a pretensão de criar algo novo, mas de transformar o que por ventura possa vir a prejudicar a sociedade, a relação com o outro e a própria capacidade de entendimento de mundo.

O Eu da autonomia não é Si absoluto, mônada que limpa e lustra sua superfície êxtero-interna a fim de eliminar as impurezas trazidas pelo contato com o outro; é a instância ativa e lúcida que reorganiza constantemente os conteúdos utilizando-se desses mesmos conteúdos, que produz com um material e em função de necessidades e de ideias elas próprias compostas do que ela já encontrou antes e do que ela própria produziu (CASTORIADIS, 1995, p. 128).

Corroborando com esta perspectiva teórica, Valle (2000, p. 36) vem afirmar que a própria filosofia é esse “compromisso com a totalidade do pensável. O que, porém, não quer dizer: com a totalidade daquilo que já foi pensado, mas com a totalidade daquilo que há para

pensar”. Para a autora, sustentada em Castoriadis e outros autores relevantes da filosofia

como Kant, associa filosofia, autonomia e educação, afirmando que a educação é responsável por provocar esse exercício reflexivo, essa “atitude de interrogação”, o entendimento sobre a “responsabilidade consigo mesmo e para com sua espécie” e, principalmente, a consciência de “suas próprias limitações”. Neste aspecto, a filosofia torna-se essencial para a educação como para o exercício da autonomia, é parte constitutiva desse compromisso com a totalidade que constitui o sujeito, o social e permite o exercício do que estamos pensando ser autonomia.

Se a filosofia é essencial para a educação, não é porque ela antecipe todas as respostas que devem ser encontradas, é justamente porque e quando ela se faz compromisso de interrogação permanente, e é desta forma que ela é prática de emancipação, que ela é terreno de luta pela autonomia (VALLE, 2000, p. 36).

No livro, “A instituição imaginária da sociedade”, de 1995, Castoriadis faz uma reflexão específica sobre a constituição do sujeito e a sua relação com a autonomia,

entendendo-a como sua capacidade de estar no intervalo entre o que ele deseja e o que o Outro deseja dele, realizando suas construções e escolhas a partir de um imaginário que é consciente. Para o autor, “A autonomia torna-se então: meu discurso deve tomar o lugar do discurso do Outro, de um discurso estranho que está em mim e me domina: fala por mim. [...] o par parental remete, finalmente, à sociedade inteira e à sua história” (CASTORIADIS, 1995, p. 124).

Ele também destaca a relação entre a autonomia e a formação do imaginário, como o fator que determina o elemento criativo do sujeito. Castoriadis (1982, p. 124-126) afirma que um sujeito autônomo não o que é capaz de imaginar, criar e escolher a partir de ideias soltas, mas “Um sujeito autônomo é aquele que sabe ter boas razões para concluir: isso é bem verdadeiro, e: isso é bem meu desejo”. Não basta pensar a autonomia como um processo de pensar reflexivamente sobre os meus desejos, mas em criar as representações imaginárias individuais que vão estruturar a constituição desse sujeito que é indivíduo e sociedade concomitantemente.

Córdova (2004, p. 16) corrobora com esta definição, a partir das reflexões sobre Castoriadis, ao afirmar que “Conquistar a autonomia passa a requerer, então, um esforço deliberado, reflexivo, no sentido de elucidar esse discurso do Outro, esse discurso estranho que está dentro de cada um e a cada um domina”. O exercício da autonomia e a elaboração do que é “real” e “verdadeiro” para o sujeito perpassa não apenas suas vivências e experiências e a sua reflexividade para com essas lembranças e pensamentos, mas para Castoriadis (1995, p. 129), “A verdade própria de um sujeito é sempre participação a uma verdade que o ultrapassa, que se enraíza finalmente na sociedade e na história, mesmo quando o sujeito realiza sua autonomia”. Este sujeito não é apenas o que acredita ser, mas um emaranhado de outras características que recebe da tradição e da história da sociedade que o constitui.

Nenhuma autonomia individual pode superar as consequências deste estado de coisa, anular os efeitos sobre nossa vida, da estrutura opressiva da sociedade na qual vivemos [...] a ideia de autonomia e a da responsabilidade de cada um por sua vida pode facilmente tornar-se mistificação se as separarmos do contexto social e se as estabelecemos como respostas que se bastam a si mesmas (CASTORIADIS, 1995, p. 131).

Sob esta perspectiva a autonomia nunca é deliberada, se coloca como “livre” até o ponto em que o social impera. Castoriadis (1995, p. 129) retoma esta concepção no livro “A instituição imaginária da sociedade”, refletindo sobre a dimensão social da autonomia e afirma que “A concepção que apresentamos mostra ao mesmo tempo que não podemos

desejar a autonomia sem desejá-la para todos e que sua realização só pode conceber-se plenamente como empreitada coletiva”.

Por este motivo a autonomia nunca esta desassociada às questões políticas e sociais, e têm como principais autores os pensadores políticos e sociais de todos os períodos históricos. Martins (2002) em seus estudos contextualiza as temáticas da autonomia ao longo da história e mesmo trazendo muitos autores de extrema relevância, coloca Castoriadis como um autor de “fundamental importância” acerca das noções de autonomia. Conforme a autora, “Na visão de Castoriadis, a autonomia é um empreendimento da humanidade e um programa de reflexão filosófica sobre o indivíduo há 27 séculos” (MARTINS, 2002, p. 218). E este pensamento é confirmado nas palavras do próprio Castoriadis, em texto escrito em 1982 e com edição em português datada de 1995.

A autonomia seria o domínio do consciente sobre o inconsciente. Sem prejuízo da nova dimensão em profundidade revelada por Freud, este é o programa da reflexão filosófica sobre o indivíduo há vinte e cinco séculos, o pressuposto e ao mesmo tempo o resultado da ética tal como a viram Platão ou os estóicos, Spinoza ou Kant. [...] Se à autonomia, a legislação ou a regulação por si mesmo, opomos a heteronomia, a legislação ou a regulação pelo outro, a autonomia é minha lei, oposta à regulação pelo inconsciente que é uma lei outra, a lei de outro que não eu (CASTORIADIS, 1995, p. 123).

Martins (2002, p. 220) reforça, complementando que “a autonomia será sempre o produto de uma conjuntura histórica”. Certamente é nesta perspectiva que muitos conflitos sociais acabam por se estabelecer, abnegando as origens de cada sujeito e os fatores históricos e sociais que lhe conduzem à tomada de determinada decisão. Ao exercer sua autonomia o sujeito constrói um imaginário sustentado nas figuras e imagens que já presenciou e/ou construiu a partir do discurso de outros sujeitos presentes em sua história. Ao estabelecer essas construções também reflete sobre elas e inclui no seu imaginário as suas vontades e as suas limitações.

As decisões autônomas estão sendo tomadas neste lugar imaginário, onde o sujeito reflete sobre as relações estabelecidas ao longo de sua vida, considera aspectos sociais, valores, crenças, referenciais que o estruturam e a partir desta nova construção imaginária que é capaz de estabelecer, vivencia sua verdadeira autonomia, sem desconsiderar a autonomia de seus pares. “A autonomia, ou a desalienação, requer, portanto, o domínio reflexivo do processo de simbolização por meio do qual o imaginário se presentifica” (CÓRDOVA, 2004, p. 31). Meira (2010, p. 10) contribui com esta questão da alienação afirmando:

A instituição imaginária é central à ontologia do social: autonomia e heteronomia têm fronteira no imaginário radical. O domínio de um imaginário autonomizado em relação ao indivíduo caracteriza a heteronomia: a instituição social aparece “naturalizada” ou investida de uma transcendência mística, ocultando-se sua criação social-histórica. A alienação do imaginário significa a perda da consciência a respeito da atividade instituinte. O imaginário instituído se coloca como origem, explicação e fundamento da instituição social.

Castoriadis (1995, p. 124) complementa afirmando que “O essencial da heteronomia – ou da alienação, no sentido mais amplo do termo – no nível individual, é o domínio por um imaginário autonomizado que se arrojou a função de definir para o sujeito tanto a realidade quanto seu desejo”. Sendo assim, conforme os estudos de Silva (2010), não se estabelece uma autonomia sem uma tomada de consciência sobre a realidade, da qual estamos nos propondo a transformar. Silva (2010) faz uma reflexão sobre a pedagogia humanista que tem definições de autonomia diferentes das apresentadas por Castoriadis, mas que ao mesmo tempo se assemelha ao considerar o conhecimento como condicionante para o exercício da autonomia. Afirma que é “pela educação em que o sujeito aprende a pensar com autonomia e agir no mundo a partir das situações problemas, tendo como referencial suas necessidades e projeto de vida individual e coletiva. Assim, constituindo-se protagonista de um processo histórico” (SILVA, 2010, p. 8).

Valle (2000), em suas reflexões sobre a teoria de Castoriadis e a relação entre filosofia, educação e autonomia, corroborando com o exposto por Kant, levanta a questão da possibilidade de se fazer efetivamente educação, pois sendo a autonomia essa capacidade de reflexão que em última instância é um questionar-se a si mesmo, questionar tudo que compõe a sociedade, toda ciência, toda história, todo imaginário instituído. Ela afirma que não há educação sem a autonomia, sem o pensar, sem a radicalidade do imaginário que se transforma e que nesse movimento também modifica o social, “na ausência da autonomia social e individual, a educação fica reduzida ao que não é: ao espaço de mera aplicação de teorias e de procedimentos pensados a priori, e que jamais são postos em questão” (VALLE, 2000, p. 41). Ela segue definindo o próprio conceito de educação a partir de Castoriadis como poiesis, que seria o próprio exercício de criação, de criar sua própria maneira de compreender a realidade, a partir da exploração dos conteúdos e dos conhecimentos que precedem cada sujeito e que possibilitam o exercício da liberdade de interpretar, de contextualizar, de correlacionar com outros conhecimentos e de criar sua própria interpretação, em um exercício reflexivo e questionador constante.

Eis que permite a Castoriadis dizer que a educação é uma atividade prático-poiética: a educação é poiesis, porque visa a uma finalidade que lhe é exterior, porque deve constituir-se em atividade criadora de algo que não estava lá, inicialmente, e que é precisamente a liberdade – a autonomia humana. Porém, como esta finalidade não está determinada a priori, como ela é um poder poder ser, a poiesis educativa jamais poderia ser assimilada a uma techné. Assim, a educação é práxis, porque, atividade lúcida, deliberada e deliberante, seu objeto, sua finalidade, é o próprio exercício da lucidez e desta deliberação. Na educação, portanto, o fim corresponde à própria atividade que o produz: a autocriação (VALLE, 2000, p. 42).

Torna-se fundamental pensar a autonomia como possível apenas em sociedades que promovam a liberdade de expressão e as relações sociais sustentadas no respeito mútuo e na valorização da história individual. Também torna-se evidente a relação entre a autonomia e a capacidade de criação do sujeito, bem como que a única possibilidade de educação efetiva está nessa capacidade de exercício da autonomia que questiona, radicaliza e reflete sobre o que já existe, criando sua perspectiva particular de interpretar a realidade. Castoriadis detém- se tanto às questões da autonomia por acreditar na construção de uma sociedade livre e igualitária e na importância da democracia para o exercício desta autonomia.

A autonomia é, portanto, o projeto – e agora estamos ao mesmo tempo no plano ontológico e no plano político – que visa, no sentido amplo, ao nascimento do poder instituinte e sua explicitação reflexiva (que sempre só podem ser parciais) (CASTORIADIS, 2006, p. 148).

Não há possibilidade de estabelecermos um ideal de autonomia sem termos presente, as questões políticas, “A política é projeto de autonomia [...] à política concerne tudo o que, na sociedade, é participável e partilhável” (CASTORIADIS, 2006, p. 145). Só há possibilidade de vivermos efetivamente uma sociedade justa e igualitária com o exercício individual e coletivo da autonomia. Tomar a autonomia como práxis, valorizar aspectos históricos individuais para o reconhecimento das escolhas tomadas pelo indivíduo e respeitarmos o espaço do outro, sem prejulgamentos, preconceitos, é o único caminho para o desenvolvimento de uma sociedade igualitária, pensada desde os primórdios da história da filosofia e idealizada por Castoriadis em grande parte ou talvez na totalidade de suas publicações.

2.2 IMAGINÁRIO: IMAGINÁRIO RADICAL (INSTITUINTE) E IMAGINÁRIO