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Castoriadis é totalmente objetivo ao afirmar que a estrutura psicanalítica Freudiana que afirma a existência do consciente, do inconsciente11 e das instâncias psíquicas são parte constituinte do sujeito. Não chega, em nenhum momento, nas obras estudadas, a contradizer qualquer aspecto psicanalítico defendido por Freud e outros importantes psicanalistas freudianos. Apenas afirma que há uma lacuna no conceito de sujeito, que deve ser preenchida pelo aspecto social e histórico.

As questões da subjetividade e da linguagem estão carregadas de significantes criados pelo social12, este que foi construído ao longo de toda história da humanidade e vai sendo recriado a cada novo sujeito que passa a integrar esta sociedade. Podemos pensar no exemplo da música, uma forma de expressão que resulta de, e, em uma série de significados. Há na música uma combinação ilimitada de elementos predeterminados pelos conceitos musicais e que invariavelmente são capazes de constituir uma infinidade de outras formas de representação. Estas acabam resultando em outra inumerável quantidade de estilos musicais, com características próprias e utilizando os mesmos elementos, composições inéditas, com caráter identificatório, a outras já criadas e escritas anteriormente.

Cada sociedade, como cada ser ou espécie viva, estabelece (cria) seu próprio

mundo, dentro do qual, naturalmente, ela “se” inclui. [...] é a instituição da sociedade

que determina o que é “real” e o que não é, o que é “significativo” e o que não é (CASTORIADIS, 1985, p. 30).

11“O tipo de pensamento ao qual pertence o pensamento inconsciente, o rockoning, o calcular, o computar, é

conídico. Como conídico, esse tipo de pensamento deve ser cego para seus fundamentos: seus axiomas, suas regras de inferência etc. Ponto muito geral e muito importante: no interior de um sistema conídico, se ele não é essencialmente finito, finitista (se contém a possibilidade de dizer: mais um), pode-se continuar a produzir e a funcionar indefinidamente: por um lado o sistema não se detém. Mas por outro ele é necessariamente cego para suas condições de existência e de funcionamento” (CASTORIADIS, 2007, p. 127).

“Os sistemas conídicos, cujos equivalentes no mundo psíquico ou no mundo social seriam os sistemas heterônomos, para os quais um ponto ou um conjunto de pontos de origem não podem e não devem ser postos em questão. Por exemplo, no caso da sociedade, não podem e não devem ser postas em questão a sua origem ou a razão de ser da instituição” (CASTORIADIS, 2007, p. 128).

12“A mesma operação lógica, repetida um determinado número de vezes, também explicaria a totalidade da

história humana e as diferentes formas de sociedade, que seriam apenas as diferentes combinações possíveis de um número finito dos mesmos elementos discretos. Esta combinatória elementar – que põe em ação as mesmas faculdades intelectuais que as utilizadas na construção de cubos mágicos ou de palavras cruzadas – deve cada vez dar-se como indiscutíveis tanto o conjunto finito de elementos a que se referem suas operações, como as oposições ou diferenças que postula entre eles” (CASTORIADIS, 1995, p. 205-206).

O psiquismo humano de Castoriadis não abandona a concepção freudiana, agrega posições klanianas e de Aulagnier13, e mesmo assim é sua, própria, considerando o social como estruturante, algo (o social) não reconhecido pela psicanálise num primeiro momento. Na concepção de Castoriadis (2006, p. 217), o psiquismo humano inicia como “uma mônada psíquica fechada sobre ela mesma, que estoura durante uma fase triádica, depois atravessa uma fase edipiana, para chegar finalmente, graças aos diversos processos de sublimação, ao indivíduo social”.

Freud dizia que quando uma criança nasce ela é colocada em um “lugar narcísico” dos pais. Ao projetarem um ideal do “seu eu”, os pais constroem um “EU” ideal, no “ideal do eu”, onde está um “eu idealizado”. E a criança está nos primeiros tempos neste contexto de “Filho ideal”, em uma imagem de perfeição que os pais atribuem aos filhos. Tudo isto irá depender do “recorte cultural” desta família. Esta forma de “agir” dos pais fará com que a criança, num primeiro momento, responda sempre ao que os pais esperam dela. Primeiramente ela não vê um sentido, porém, logo passa a corresponder àquilo a que é convocada (à provocação ao riso, a criança sorrirá), ocorrendo então a identificação especular. A partir desta, a criança dá os seus primeiros passos na constituição do eu, da imagem corporal e também da agressividade. Registra-se então, a nível psíquico, imagens sustentadas pelo “grande Outro”, a representação psíquica dos traços de uma imagem, o que é, segundo Lacan, o “imago”.

Como diz Jacques Lacan, “O inconsciente é o discurso do Outro”; é em grande parte, o depósito dos desígnios, dos desejos, dos investimentos, das exigências, das expectativas – significações de que o indivíduo foi o objeto, desde sua concepção, e mesmo antes, por parte dos que o engendraram e criaram (CASTORIADIS, 1995, p. 124).

A partir da palavra materna, a criança irá criar a imagem de um “corpo que lhe pertence” (colocar o dedo do pé na boca), que será organizado pela mãe como linguagem e como parte do corpo da criança. A mãe possui em seu discurso uma totalidade corporal que será emprestada à criança. Gradualmente, esta vai criando “unidades de percepção” que vão construindo nela uma condição mais organizada, um “eu” apenas confundido com o “Outro” e não mais extensão deste.

13“A especificidade do psiquismo humano permanece, por outro lado, na sua dimensão vertical, isto é, na sua estratificação [...] Pode se tratar da primeira ou da segunda tópicas freudianas, ou das ‘posições’ kleinianas, ou

de outras posições – a de Piera Aulagnier, por exemplo, articulando o originário, primário e secundário; ou ainda da concepção que eu mesmo formulei, colocando de início uma mônada psíquica fechada sobre ela mesma [...]” (CASTORIADIS, 2006, p. 217).

A mãe é alguém que fala; [...] é um indivíduo social, e fala a língua de determinada sociedade, portadora das significações imaginárias específicas a essa sociedade. A mãe é a primeira, e importante, representante da sociedade junto ao recém-nascido; e como essa sociedade, qualquer que seja, participa enormemente da história humana, a mãe é junto ao recém-nascido o porta-voz de milhares de gerações passadas. Esse processo de socialização começa no primeiro dia de vida – se não antes – e só termina com a morte, mesmo que pensemos que as etapas decisivas são as primeiras (CASTORIADIS, 2006, p. 220).

Marques (1995, p. 36) apropria-se da psicanálise de Lacan e Jerusalinsky para afirmar que “O sujeito não se faz senão pelo ‘desafio radical da palavra’ (Lacan) condicionada a uma maturação orgânica adequada, a uma permeabilidade biológica ao significante (Cf. Jerusalinsky)”. A linguagem é assim um sistema que preexiste ao nascimento da criança, isto quer dizer que a criança nasce e se encontra com a linguagem feita, e essa linguagem precisa responder a esse sistema que preexiste e se vale de signos. A ideia é que, por um somatório de signos, pode-se compor uma linguagem, quer dizer que por somar signos, chega um momento em que há tal quantidade de signos que é necessário, identificar uma lógica, para ordená-los, sendo esta uma teoria da linguagem.

Assumir uma imagem de sujeito humano se dá a partir de referências que vamos receber de outros seres da mesma espécie. É uma conquista psíquica. A criança no encontro com o desejo familiar, a respeito dela, transforma-se no sujeito idealizado pelo desejo parental. De outro lado, o encontro da criança com a linguagem irá permitir que deixe de ser apenas um corpo no sentido orgânico para ir se tornando um sujeito enquanto psíquico. A questão central da qual Castoriadis se apropria é a formação do sujeito enquanto esta totalidade que abarca toda questão do imaginário, do para si, da linguagem que é social e o primeiro social, a figura materna.

[...] é sobre essas propriedades da imaginação radical que se escora psiquicamente a capacidade linguística do ser humano: esta pressupõe a faculdade do quid pro quo, de ver alguma coisa ali onde há outra. Por exemplo, poder “ver” um cão nos três fonemas, ou nas três letras dessa palavra; mas também não ver sempre a mesma coisa, portanto poder compreender a expressão “que tempo cão!”; e ainda poder ver um cão em dog, quando se conhece inglês (CASTORIADIS, 2006, p. 216).

Essa linguagem também é o que vai determinar a formação da autonomia do sujeito. Castoriadis afirma que só assumirá um papel de autonomia do discurso o sujeito capaz de tomar como seu o discurso do Outro. Neste sujeito é, segundo Castoriadis e Marques, que se apresenta a possibilidade de aprendizagem:

O sujeito da aprendizagem, por isso o entendemos como: a) um corpo capaz de palavra e ação, b) numa estrutura simbólica que o faz sujeito constituído por sua palavra significante de frente ao Outro, c) palavra ao mesmo tempo socializadora/individualizadora e singularizante, d) palavra em que se constitui o “eu” socialmente competente e singularmente autônomo (MARQUES, 1995, p. 35).

A aprendizagem para esses autores está na instância da capacidade individual de transformação, do imaginário e da autonomia. Esta autonomia acaba concretizando-se no espaço em que esta possibilita ao sujeito construir o seu próprio discurso, “Um discurso que é meu é um discurso que negou o discurso do outro; que o negou, não necessariamente em seu conteúdo, mas enquanto discurso do Outro” (CASTORIADIS, 1995, p. 125), um discurso que não está deslocado do discurso do Outro, mas tomando como seu pelo sujeito, a partir de suas próprias interpretações e das referências que construiu consciente e inconscientemente a partir das relações que estabeleceu com o meio social (parental ou não).

A criança transforma o que lhe damos ou o que encontra dando-lhe um sentido – mas não sem relação com o sentido do que já lhe demos. Não há bebê que não distinga entre um olhar carregado de amor e um carregado do ódio. E é também com essa condição que aprendemos a falar, a conhecer: aceitar que a significação de uma palavra é a que os outros ligam a ela (CASTORIADIS, 2006, p. 238).

A linguagem aqui não deve ser pensada apenas como “palavra” e sim como todas as relações comunicativas estabelecidas pelo social ao longo de toda existência da humanidade. Essa relação entre a mãe (representante da história) e o bebê, que estabelece através da linguagem vai formar o sujeito e determinar todos os seus processos de aprendizagem, do nascimento à morte. Quem “ensina”, ensina algo que aprendeu e tomou como seu, sua verdade. Quem “aprende”, toma como seu o que ouviu, sentiu e experienciou, transformando em seu próprio discurso. Esse processo de aquisição do discurso como seu demanda o exercício do imaginário e de um processo forte e constante de autonomização, de recriação do conhecimento que é do social tomado para o individual. Conceitos de Castoriadis que iremos debater no próximo capítulo deste estudo.