• Nenhum resultado encontrado

Castoriadis é indiscutivelmente um pensador político, mas extremamente comprometido com a formação do humano. Esteve, ao longo de toda sua obra, preocupado com as diferentes estruturas sociais e a influência delas na constituição do sujeito e por este motivo construiu conceitos tão significativos para psicanálise, para filosofia e para educação. Nenhum de seus conceitos está desassociado às questões da sociedade e, principalmente, da constituição do sujeito como ser social e histórico. Para ele “O que mantém uma sociedade coesa é naturalmente a sua instituição” (CASTORIADIS, 1985, p. 28). Esta instituição é construída pelo imaginário social, um imaginário que é ao mesmo tempo instituinte e instituído, havendo aspectos que nos são dados pela história e outros que são construídos de forma particular, próprias de cada indivíduo. Para o autor a instituição é criada pelo social a partir da “instituição em seu sentido mais amplo e radical: normas, valores, língua, instrumentos, procedimentos e métodos de lidar com as coisas e fazer as coisas, e, naturalmente, o próprio indivíduo, no tipo e forma geral e particular” (CASTORIADIS, 1985, p. 28). E é desta forma, sustentados no que está instituído pela história e pelo que nos precede que participamos da radicalização, da transformação, do estabelecimento de novas normas, valores, significados, com as formas de nos relacionarmos com as coisas do mundo.

Essa teia de significados é o que eu chamo de magma de significações imaginárias

sociais que são levadas e incorporadas na instituição de dada sociedade e que, por

assim dizer, a animam. Tais significações imaginárias sociais são, por exemplo: espíritos, deuses, Deus; pólis, cidadãos, nação, estado, partido; bens, dinheiro, capital, taxas de juros; tabu, virtude, pecado etc. Mas também homem/mulher/criança (CASTORIADIS, 1985, p. 29).

O magma de significações imaginárias de Castoriadis nos leva à conclusão de que absolutamente tudo que conhecemos é criação do imaginário, perpassando simbioticamente o imaginário radical e o imaginário instituído. Esta percepção aplicada à educação nos proporciona pensar que o aprendizado é a internalização imaginária do que socialmente foi construído pelo imaginário, invariavelmente apresentado através do simbólico.

Castoriadis reconhece as contribuições da filosofia e da psicanálise na construção do conceito de imaginação ao longo de toda história dessas ciências e destina um capítulo inteiro de sua obra “Feito e a ser feito” (1999) para refletir sobre essas contribuições. Inicia o capítulo contextualizando suas referências e destacando a importância de cada uma delas para

seus estudos. Em outro momento reforça a crítica à filosofia, à sociologia e a própria política, quanto ao “esquecimento” bárbaro dos estudos sobre o imaginário social instituinte e assim, justifica, a importância do debate em relação a esta temática e a energia que destina às questões do imaginário radical instituinte.

Córdova (2004) produziu uma trajetória próxima da proposta nesta pesquisa, buscando identificar o papel das diferentes instituições na educação dos sujeitos, utilizando os conceitos de Castoriadis, principalmente ao que tange a questão da autonomia. Castoriadis (1995, p. 159) define instituição como “uma rede simbólica, socialmente sancionada, onde se combinam, em proporções e em relações variáveis, um componente funcional e um componente imaginário”, ao que Córdova (2004, p. 24) vai complementar afirmando que “A dimensão funcional existe sempre, é ineliminável, e a ela cumpre preencher necessidades vitais sem as quais seria impossível a sobrevivência individual e coletiva”. Isso nos proporciona pensar a natureza reguladora que a instituição de uma sociedade pode provocar no indivíduo, associada às questões que possibilitam ou não o exercício da autonomia, debatidas anteriormente. E Córdova (2004, p. 28) ainda vai frisar que:

O imaginário, portanto, no sentido utilizado por Castoriadis, é algo que introduz o novo, constitui o inédito, a gênese ontológica, a verdadeira temporalidade, a posição de novos sistemas de significados e de significantes, presentifica o sentido. E passa a ser o imaginário radical o verdadeiro motor da sociedade e da história.

Essas significações imaginárias que são estabelecidas na e pela sociedade são, para Castoriadis (1985, p. 30), “criação” do imaginário dos indivíduos que compõem esta sociedade e este imaginário social que configura uma sociedade instituída e que temos a responsabilidade e, talvez até, a obrigação de “não transformá-la em outra ‘coisa’, outro ‘sujeito’, outra ‘ideia’”. Absolutamente todas as representações da sociedade são criadas pelo imaginário que vai se instituindo à medida que as pessoas constroem relações e integram suas ideias.

A instituição da sociedade, e as significações imaginárias sociais nela inseridas, se apresentam sempre em duas dimensões indissociáveis: a dimensão identitária- conjuntista (“conjunto-teorética”, “lógica”), e a dimensão estritamente ou propriamente imaginária (CASTORIADIS, 1985, p. 33).

A dimensão identitária-conjuntista19 ou como Castoriadis vai utilizar muitas vezes, a lógica conjuntista-identitária, é correlacionada pelo autor com o termo conídico, que já definimos anteriormente. Estes termos, em geral estão associados às ciências exatas, quando sempre há algo lógico que determina, identifica e dá identidade para um determinado objeto, termo ou conceito. Também pode ser pensado como o conjunto de justificativas e de explicações que correspondem a uma ideia. Sempre há uma resposta para a pergunta, nem que seja “Deus” quis assim. Para o autor este reconhecimento ao conídico e a necessidade de sempre haver uma resposta justificável e pronta, diminui as possibilidades de questionamento, e, consequentemente, de reflexões promotoras de mudanças e de evoluções na sociedade e no próprio indivíduo.

Ao considerar que a instituição da sociedade está atrelada à capacidade imaginária dos indivíduos que forma esta sociedade e, em consequência, o poder inventivo desses indivíduos está atrelado às características instituídas desta sociedade, faz-se mister compreendermos o que, para Castoriadis, é a imaginação. O autor sustenta-se na descoberta da imaginação por Aristóteles, no reconhecimento de Kant acerca do papel criador da imaginação e na impossibilidade da razão fornecer uma representação discursiva das ideias.

Ela será, na maior parte do tempo, simplesmente escotomizada, ou relegada à “psicologia”, ou “interpretada” e “explicada” em seus produtos através das flagrantes superficialidades, como a ideia da “compensação” da necessidade ou do desejo insatisfeito. A imaginação evidentemente não é efeito, mas condição do desejo, como já afirmava Aristóteles: “não existe desejante sem imaginação” (De an., 433 b29) (CASTORIADIS, 1985, p. 67).

A imaginação é, assim, algo que a razão não é capaz de definir exatamente, mas que compõe toda a vida humana e estabelece todas as nossas possibilidades de relação. Cada ser, sujeito, individual, é capaz de olhar-se no espelho e visualizar no real uma imagem, que foi construída imaginariamente por ele e que ao se ver representa o “real”; assim estruturam-se muitas psicopatologias e (assim) originam-se as muitas formas de convívio social. A própria possibilidade de fantasiar relações, imaginar o que o outro está pensando ao meu respeito, construir imaginariamente as expectativas que o outro tem de mim e o que eu tenho a meu respeito ainda estabelecem-se originalmente na imaginação.

19“Para Castoriadis, esta dimensão identitária-conjuntista está na raiz da inércia do instituído. Segundo ele, a

questão da revolução reside exatamente aí, ou seja, no reconhecimento, pela sociedade, da instituição como autocriação; reconhecimento de si própria como autoinstituinte; capacidade de autoinstituir-se explicitamente; superação da autoperpetuação do instituído, retomada e transformação segundo suas próprias exigências e não segundo a inércia do instituído; reconhecimento de si própria como fonte de sua própria alteridade” (CÓRDOVA, 2004, p. 39).

A sociedade é obra do imaginário instituinte. Os indivíduos são feitos, ao mesmo tempo que eles fazem e refazem, pela sociedade cada vez instituída: num sentido, eles são a sociedade. Os dois polos irredutíveis são o imaginário radical instituinte – o campo de criação social-histórico – de um lado, e a psique singular de outro lado. A partir da psique, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos – que, como tais, não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz (CASTORIADIS, 2006, p. 123).

Sustentando-se em Aristóteles, mais precisamente na obra “Da alma III”, Castoriadis (1985, p. 68) vai considerar que existem dois tipos de imaginação. A imaginação primeira, que se caracteriza pela sua “função muito mais radical, que quase só apresenta com a precedente uma relação de homonímia”, utilizando uma mesma palavra ou expressão para representar diferentes significados; e a imaginação segunda como sendo a imaginação de “sentido banal” que está colocada no senso comum. Ainda destaca como aspecto fundamental nas questões da imaginação, que os pensamentos imaginários não o são, jamais, sem a presença de “fantasmas”, e estes fantasmas caracterizam toda a carga social que nos é transmitida pelo discurso no qual estamos inseridos desde o nascimento e que nos colocam na condição de seres humanos.

A imaginação aparece como colocada sob a inteira dependência da sensação, homogênea a ela e causada por ela (as duas determinações sendo, como sabemos, metafisicamente ligadas em Aristóteles). Ela aparece como o duplo redundante; e, tal como é aqui apresentada, parece só possuir uma, e muito estranha, função: multiplicar consideravelmente as possibilidades de erro inerentes à sensação do objeto concomitante e a dos comuns (CASTORIADIS, 1985, p. 79).

Esta imaginação que tudo pode construir, que reside na psique humana e que segundo Meira (2010, p. 5), “se produz como realidade psíquica manifestando-se sob a forma da representação, Castoriadis o designa ‘imaginário radical’”. Córdova (2004, p. 18), em seus estudos sobre Castoriadis, afirma que “A função imaginária é, insiste ele, o que faz de nós homens, pois é o que nos permite nossa função simbólica”. Afirma ele que:

Falar de imaginário radical é falar na capacidade de invenção, tal como dela falamos no campo artístico, referindo-nos à criação de formas/figuras, (no grego eidos/eidé), capacidade que, com este significado, o autor estende a todo o gênero humano, individual ou coletivamente considerado (CÓRDOVA, 2004, p. 27).

[...] O imaginário radical, no plano individual é denominado de imaginação radical, capacidade de por, criar, fazer-se para a psique-soma [...] a imaginação radical não existe no vácuo [...] E o indivíduo, sujeito, se constitui como fluxo representativo que emerge da imaginação radical (CÓRDOVA, 2004, p. 37).

Entretanto, esse imaginário radical não se constitui sem referências, o próprio termo “radical” nos faz pensar que está de certa maneira contestando algo que já o foi apresentado, que já está no imaginário instituído. Para Castoriadis (1995, p. 334), “a imaginação radical se faz existir, faz existir o que não existe em lugar algum fora daí, o que não existe, e que é para nós condição para que o que quer que seja possa existir”. Meira (2010, p. 5) complementa Castoriadis ao afirmar que “O imaginário radical é, portanto, o modo de ser da realidade psíquica, ao mesmo tempo em que é constitutivo do indivíduo social”. Assim é possível perceber que o imaginário radical se forma no exercício de buscar novas formas de interpretar o que já foi apresentado pelo social através da instituição. E mais importante que radicalizar, é efetivamente poder exercer a capacidade de alterar esse imaginário instituído, construindo, criando um novo imaginário instituído e tomado pela instituição como seu. O conhecimento de todos os aspectos do imaginário instituído é o que possibilita o exercício do imaginário radical, as mudanças e as transformações no imaginário instituído. É o imaginário radical que provoca as mudanças, o aprendizado e a própria evolução humana.

Nesta mesma perspectiva e fazendo uma relação do imaginário radical com o potencial criador do sujeito, Losada (2006, p. 32), vai afirmar, também sustentado em Castoriadis, que “O imaginário radical não é especular nem combinatório, é criador. Não reproduz os dados fornecidos pela percepção, nem combina elementos do mundo racional. É criação, gênese ontológica, posição/intuição de uma nova forma de ser”. Nesta relação de criação, que é construída no imaginário dos sujeitos, que se estabelece o imaginário social, o que é instituído e que Silva e Oliveira (2016, p. 56) apresentam como:

Imaginário social é algo que tem o poder de instituir, no, e através do coletivo, significações imaginárias sociais, instituições e símbolos, que, ao mesmo tempo em que criam a sociedade como ela é, por ela são criados como eles são. É o imaginário social que faz existir a sociedade com suas culturas, ritmos, mitos, costumes, normas, instituições, e tudo mais que a sustenta e compõe. Ou seja, vivemos no, e para o, imaginário, não há pensamento que não passe pelas significações, nem leitura de mundo que não parta do universo simbólico instituído.

Castoriadis, em suas últimas reflexões acerca da temática do imaginário, a saber na obra “Sujeito e verdade” (2007), conclui que à imaginação radical cabe todo o poder criador de tudo que pensamos consciente e inconscientemente. Ele não afirma essas questões sozinho, recorre a autores como Kant e Heidegger, afirmando que convergiam com esta ideia de que o imaginário radical não se limita ao “campo da manifestabilidade”, para esses autores, dentro de suas limitações de foco sobre a temática, “A imaginação radical certamente abre esse

campo de manifestabilidade ou horizonte de objetividade” (CASTORIADIS, 2007, p. 484), deixando claro que tudo que pensamos, sendo aplicável ou não, consciente ou inconsciente, tem no imaginário radical sua razão de ser “pensável”.

A estas questões também nos cabe pensar a relação entre o tema do imaginário e as questões da criação humana. Castoriadis apresenta, em sua obra, inúmeras passagens, demonstrando que o imaginário radical necessita de subsídios para exercer seu poder criador, ao sustentar-se na afirmativa do autor:

A imaginação radical é ilimitada, mais exatamente indefinida, e criadora em outro sentido muito mais forte, em outros domínios, notadamente o domínio do social- histórico, onde ela realiza aproximadamente o que Kant chamava de intellectus

archetypus: ela faz ser as coisas ao intuí-las, na representação. Evidentemente, ela

precisa de um mínimo de suporte material. Mas esse mínimo pode ser simplesmente uma palavra. [...] e o necessário para isso não é “fazer existir a coisa na intuição (percepção)”, é encontrar-lhe um suporte simbólico que se torna portador e mediação dessa criação (CASTORIADIS, 2007, p. 488).

O imaginário exerce exatamente esse poder de construir absolutamente tudo que existe, se não a “coisa”, o “significado” que damos a ela. Tanto o imaginário radical, que é estabelecido individualmente pelo sujeito como uma forma de criar sua própria representação (sua maneira particular de ver o mundo, exercitando a autonomia no processo de construção desse imaginário), quanto o imaginário instituído, que é tomado como inalterável e está no domínio do social. Ambos exercem conjuntamente a função de construir todas as representações de mundo, de sociedade e de simbolismo que possa ser compreendido pelo homem. Castoriadis vai afirmar que “O que nos é dado pelo trabalho da imaginação radical do sujeito ou do imaginário instituinte social-histórico tem, com certeza, uma relação com o que é, mas essa relação é objeto de nossa interrogação, e de modo algum um dado” (CASTORIADIS, 2007, p. 488).

Nesta perspectiva, Meira (2010, p. 4), em seu artigo sobre a relação entre o imaginário e as questões da administração, afirma que “Castoriadis propõe a noção de

imaginário para dar conta do que excede a racionalidade e funcionalidade da instituição

social: o componente criativo-imaginativo”, fazendo-nos corroborar com a ideia que os aspectos relacionados à cultura, às instituições que compõem a sociedade e a própria possibilidade de nos estabelecermos como humanos, aliados ao fato de que só há humanidade no ser social, não é nada além de uma construção imaginária que formamos desde o nascimento até o fim da vida. Está devidamente adaptada às necessidades de mudança e transformações de cada período histórico e das novas estruturas imaginativas que vão se

estabelecendo no vínculo com outras culturas, outras estruturas sociais e outras instituições imaginárias instituídas.

A significação imaginária social faz as coisas existirem enquanto tais coisas, apresenta-as como sendo isso que elas são – o isso que sendo introduzido pela significação, que é, indissociavelmente, princípio de existência, princípio de pensamento, princípio de valor e princípio de ação (CASTORIADIS, 1987, p. 375).

A possibilidade de negar o poder determinante na estrutura do humano, exercido concomitantemente pelo imaginário radical e pelo imaginário instituído é abnegar a nossa própria condição enquanto indivíduos, sujeitos sociais e históricos. O exercício autônomo do imaginário radical capaz de exercitar a reflexividade e questionar o imaginário instituído possibilita que sejam lançadas novas ideias para transformar e adaptar o imaginário instituído e construir novas formas de viver em sociedade. Paralelamente, assumir como seu o imaginário instituído provoca nos sujeitos sentimentos de pertença à sociedade em que vive, aceitação de seus pares, exercício de civilidade e empatia, garantindo a possibilidade de sermos indivíduos sociais.

A denegação da dimensão instituinte da sociedade, a recuperação do imaginário instituído, condiz com a criação de indivíduos absolutamente conformes, que vivem e se pensam na repetição (aliás, ainda que possam fazer, fazem muito pouco), cuja imaginação radical é reprimida o mais possível; indivíduos que quase não são verdadeiramente individuados (CASTORIADIS, 2006, p. 139).

A criação desse imaginário é sempre individual, sempre subjetiva e atrelada aos níveis de envolvimento e “dívida” que temos com nosso passado (história) e com os valores sociais que nos constituem. A dificuldade de exercício de um imaginário radical está proporcionalmente relacionada ao poder autoritário de uma sociedade, que ao exercer o poder de forma impositiva impossibilita o exercício da reflexividade, da inventividade, da criação e da transformação do imaginário instituído. Em contrapartida, um imaginário instituído rico de possibilidades, bem estruturado, conhecedor de sua história, proporciona maior exercício da reflexividade, construções imaginárias radicais ricas e repletas de possibilidades de transformar para melhor o imaginário instituído e se transformar concomitantemente. O sujeito, ao pensar novo, pensar diferente, muda a sociedade, transforma outros sujeitos e se transforma nas trocas provocadas pela interação entre o individual e o social.