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Os termos reflexividade e vontade, elaborados por Castoriadis, como parte constitutiva da totalidade do sujeito, são de suma importância para o entendimento de quem é esse sujeito que imagina e cria seu mundo e na relação com o social provoca as transformações nesse social. Castoriadis é um autor extremamente rico em conceitos, capaz

de estruturar as relações existentes entre os termos e destacar a importância de cada um deles na composição da totalidade que é o sujeito humano, não só na sua individualidade, mas em todos os seus aspectos sociais e históricos. O autor vai afirmar que toda educação perpassa a possibilidade de reflexão, que o humano só o é (ser humano) pela característica reflexiva que compõem sua estrutura de sujeito. Mas não é todo sujeito que exerce essa reflexividade e tão pouco sobre qualquer tipo de circunstância, e nesta perspectiva apresenta o termo “vontade” como a parcela de responsabilidade do indivíduo na sua reflexividade. O social pode possibilitar a reflexividade, mas é o sujeito, o “para si” que exerce a vontade de fazê-lo.

Castoriadis (1999b, p. 45) conceitua a reflexividade como “o saber que sabemos, e interrogar-se sobre tal saber é transformar uma atividade em objeto”, ao passo que a vontade é pensada como “a dimensão reflexiva do que somos como seres imaginantes, isto é, inventores” (CASTORIADIS, 1999b, p. 45). Uma é complementar à outra. Em breves palavras a reflexividade é a vontade de pensar e refletir sobre os nossos conhecimentos e a vontade a energia destinada a este pensar reflexivo.

Faz-se mister destacar que a reflexividade, segundo as próprias palavras de Castoriadis (2006, p. 207), “não se deve confundir com o simples pensamento” e a vontade não pode ser confundida simplesmente com a “capacidade de ação deliberada”. O sujeito pode pensar em absolutamente tudo ao mesmo tempo ou em uma infinidade de estruturas de pensamento, mas fará escolhas, dependendo de sua vontade, sobre o que irá destinar a maior parte de sua energia reflexiva, a que pensamento destinará maior foco. Que temas e decisões irá escolher relacionam-se diretamente a sua capacidade de autogerenciamento, a sua autonomia, ao quanto foi instigado pelo social a evidenciar aspectos relevantes de suas escolhas.

Todo esse processo, de vontade e de reflexividade, é realizado a partir de um universo de conhecimentos prévios que já estão internalizados pelo indivíduo. No entanto, é no coletivo que se constroem essas reflexões e a revalidação dos saberes individuais, além é claro, do aprofundamento da tradição, do conhecimento e da cultura. Castoriadis afirma que somente encontramos esta “capacidade da atividade deliberada (vontade)” e esta “reflexividade”, no momento em que nos dispomos a questionar as instituições14 que nos

14“Tomando-se aqui a palavra instituição em seu sentido mais amplo e radical: normas, valores, língua,

instrumentos, procedimentos e métodos de lidar com as coisas e fazer as coisas, e, naturalmente, o próprio indivíduo, no tipo e forma geral e particular (e suas diferenciações: homem/mulher, por exemplo) que a sociedade considerada lhe conferiu. [...] A instituição produz, de conformidade com suas normas, indivíduos que não somente são capazes de, mas são obrigados a reproduzir a instituição. A ‘lei’ produz os elementos de um modo tal que seu próprio funcionamento incorpora, reproduz e perpetua as ‘leis’. A instituição da sociedade, no

constituem e questionar nosso próprio mundo de representações. E ela não será possível em nenhuma outra sociedade que não a “democrática”.

A história da humanidade, nesta perspectiva, é também a emergência, ao longo de seu curso, da reflexividade crítica e deliberativa, fruto da razão e da vontade humanas. A emergência da reflexividade foi revelando aos homens, no seu representar e no seu fazer sociais, a natureza autocriada da sociedade, permitindo- lhes situarem-se como atores e autores críticos face ao que é, ao que foi e ao que poderia ter sido ou que poderá vir a ser. Não podendo mudar o que foi, é sempre possível mudar a maneira de ver e de avaliar o que foi, e pode-se contribuir para que o que é seja de outra forma (CÓRDOVA, 2004, p. 49-50).

Sempre há possibilidade de encontrar um novo sentido ou uma nova intepretação, que vai se transformando à medida que as marcas do passado nos apresentam mais detalhes de sua história. Jamais nos descolamos das tradições que nos constituem, mas para tal, necessariamente precisamos ser profundamente conhecedores destas. Castoriadis (1995, p. 129) conceitua “A verdade própria do sujeito é sempre participação a uma verdade que o ultrapassa, que se enraíza finalmente na sociedade e na história, mesmo quando o sujeito realiza sua autonomia”.

Em uma reflexão mais ampla é possível pensar que não existe nenhum tipo de linearidade no humano ou em tudo que está associado ao humano. Absolutamente tudo é composto por oscilações, altos e baixos, diferentes andamentos – ritmos e compreensões. Talvez por isso seja tão fundamental conhecer o que nos precedeu. Não com o intuito de encontrar a linearidade, a plena felicidade ou qualquer sonho almejado. Mas com o intuito de optar pelas melhores escolhas, aquelas às quais as consequências vividas por outrem sejam mais amenas. Ter conhecimentos fidedignos sobre a história são importantes para manter a capacidade reflexiva, para “aguentar”, superar e recriar o social.

O termo “vontade”, tanto quanto o termo “sujeito” etc., tem uma reputação muito ruim; ele foi praticamente excluído da filosofia do século XIX. Mas, de fato, ele é ineliminável de qualquer filosofia, de qualquer política, de qualquer ética, e da psicanálise, apesar das aparências (CASTORIADIS, 2007, p. 131).

Nesta perspectiva Castoriadis destaca que ao sujeito é necessária a “vontade”15, associada aos desejos e as pulsões. Todas as pulsões provocam “vontades”, para o bem ou

sentido genérico que estou abordando, é naturalmente constituída de várias instituições particulares, as quais formam um todo coerente e como tal funcionam” (CASTORIADIS, 1985, p. 28-29).

15“A vontade, como a entendo aqui do ponto de vista metapsicológico, é a existência de uma quantidade de

energia livre ou de uma capacidade de mutação importante de energia coordenada à reflexividade” (CASTORIADIS, 2006, p. 233).

para o mal. Associada à capacidade de agir de forma deliberada. Não em uma perspectiva de total liberdade, mas do exercício reflexivo para escolhas autônomas e racionais. Na reflexividade, Castoriadis (2006, p. 224) afirma haver algo mais profundo “a possibilidade de que a própria atividade do ‘sujeito’ torne-se ‘objeto’, a explicitação de si como um objeto não objetivo, ou como objeto simplesmente por posição e não por natureza”.

Quando falamos de subjetividade como origem da reflexão, temos muito mais: a possibilidade da cisão (Hegel) e a oposição interna. Logo, possibilidade também de colocar em questão a si mesmo – recordemos Platão: o diálogo da alma consigo mesma. Para que haja diálogo, é preciso haver dois e nesse diálogo da alma consigo mesma, que é a reflexividade em seu sentido forte, há ainda uma vez a posição de si como objeto não objetivo (CASTORIADIS, 2007, p. 126-127).

Associam-se às questões da reflexividade todo “pensamento consciente” de Freud, toda reflexão do sujeito com ele mesmo e com o social e toda “double bind” ou “dupla obrigação” apresentada por Castoriadis. As dúvidas sobre que atitude tomar, como devemos proceder, ou o “faço ou não faço” do pensamento consciente, só são possível em “indivíduos que questionam a si mesmos”. E, conforme os estudos, a possibilidade de realização da reflexividade se estabelece na atividade deliberada (vontade) e sem a influência de fatores externos que possam prejudicar qualquer tipo de discernimento. A prova disso é:

Ninguém discute com alguém se estiver convencido de que ele acabou de consumir o seu quarto litro de vinho, pois o que ele diz não é produto de sua atividade deliberada de pensar, de sua subjetividade reflexionante, não se faz acompanhar de uma atividade deliberada que se coloca a cada instante, virtualmente, em causa durante o percurso e que pode sustar certas coisas antes de serem ditas, mas um resultado ou coproduto do álcool, de uma certa alteração em seu sistema nervoso e de seu psiquismo induzida pelo álcool. Logo, interrompe-se a discussão. Para discutir, é preciso incluir entre as condições de sentido da discussão a possibilidade de uma atividade deliberada. Isso significa também responsabilidade de cada um pelo que diz. [...] É preciso vontade para pensar ou para refletir (CASTORIADIS, 2007, p. 131).

Ao mesmo tempo em que a dupla obrigação impulsiona o exercício da reflexividade e, por consequência, da imaginação, ela também pode limitar o processo imaginativo impedindo situações novas. A condição para o exercício da reflexividade é a “capacidade de imaginar” e a “vontade” de estabelecer novas conexões de pensamento. É unicamente pelo poder de fantasiar e imaginar que o sujeito se constitui reflexivo, questionador, inventivo e criador da própria realidade. “Sem esta imaginação desregrada eu não poderia refletir, limitar- me-ia a calcular, a raciocinar, fazer reckoning, a computar” (CASTORIADIS, 2007, p. 130).

Esta capacidade deliberada e a habilidade do pensar reflexivo possibilita ao sujeito a reflexão sobre si mesmo e o estabelecimento de sua própria identidade. Consequentemente, a estruturação de si como sujeito autônomo.

Ser sujeito, e ser sujeito autônomo, é ainda ser alguém e não todos, quem quer que seja ou qualquer coisa que seja. É ainda e sobretudo investir objetos determinados e investir a sua identidade – a representação de si mesmo como sujeito autônomo (CASTORIADIS, 2006, p. 238).

Ao que tange as questões da aprendizagem é possível perceber, nas afirmações de Castoriadis, que o sujeito irá aprender na medida em que exerce sua reflexividade e que a vontade lhe seja impulsionadora do processo. Marques (1995) afirma a necessidade da reflexão com os termos “problematização daquilo que se diz ou faz” e assim o desenvolvimento da “competência argumentativa”16 como o telos da aprendizagem. Quão maior seja sua vontade para refletir e argumentar sobre determinado assunto, tão maior será seu aprendizado.

Para Castoriadis essa subjetividade capaz de “refletir e de agir deliberadamente” é, nada mais que, “uma criação relativamente recente, contemporânea e consubstancial da criação das sociedades em que emerge o projeto da autonomia” (CASTORIADIS, 2007, p. 230). O princípio básico para o desenvolvimento de uma autonomia está na vontade e na reflexividade. Estes termos constituem-se como fundamentais na teoria de Castoriadis pela sua relação direta com a construção imaginária da sociedade, a reflexão perpassa o imaginário radical – transformador, e a vontade está associada às características sociais que provocam essa inquietação por parte do sujeito e o colocam na responsabilidade de refletir sobre o social.

Podemos pensar em duas estruturas sociais para exemplificar a importância da reflexividade e da vontade na constituição do humano como sujeito histórico e social. Imaginemos uma sociedade sustentada em ideais religiosos, extremamente rigorosos em relação às questões da sexualidade, da constituição familiar, reguladora de comportamentos e escolhas por parte dos sujeitos. Nesta, as explicações estão sustentadas no poder de uma instância superior, um Deus que tudo vê, tudo controla e sempre “castiga”. A reflexividade está, nesta estrutura social, limitada pela explicação plausível de que tudo é em função de um

16A competência argumentativa constitui-se, assim, no telos da aprendizagem, como ápice da situação ideal da

comunicação racionalmente motivada e da avaliação crítica dela através da busca cooperativa de validação das pretensões de verdade dos enunciados, de retidão das normas de ação e da liberação das condições da expressividade subjetiva (MARQUES, 1995, p. 49).

Deus todo poderoso e a vontade não pode ser nada além do que é permitido pela religião. Os processos de criação das instituições estão sustentados nesse imaginário instituído pelo discurso religioso e não há espaço para a reflexividade fora deste discurso.

A outra estrutura social está sustentada em normas e valores construídos por uma legislação, elaborada por pessoas que vivem neste contexto social e que reconhecem a diversidade que o compõe. Nesta, os indivíduos podem ser estimulados a refletir sobre as instituições e participar ativamente na construção dessas instituições. O que não significa que todos o façam. Mas o estímulo a este tipo de comportamento e o exercício de valorização das contribuições e das reflexões promove a participação coletiva na construção das instituições que compõem esta sociedade. E a cada percepção de que suas reflexões são consideradas pelo social, transformando o imaginário instituído, maior será a vontade de participação neste processo reflexivo. A investigação de como se estrutura esse sujeito como ser social e histórico, as contribuições e as responsabilidades da educação para a formação desta sociedade capaz de provocar a reflexividade são os próximos tópicos debatidos na pesquisa.