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O sujeito como social-histórico17 é o que diferencia a visão de Castoriadis das teorias tradicionais da psicanálise que por algum motivo abstraem esta questão de seus escritos. É nesse aspecto a maior crítica de Castoriadis a Freud, afirmando inúmeras vezes em suas obras que o chamado “pai da psicanálise” “limita-se” de certa forma ao não mencionar claramente as questões histórias e sociais do sujeito na sua constituição psíquica, mesmo que o faça de forma indireta.

A descoberta e a criação freudianas foram feitas na mais profunda ambiguidade a certos respeitos – e como poderia ter sido de outra forma? Foram também acompanhadas pela ocultação de dois pontos essenciais: a psique como imaginação radical (o que Freud vê e não vê na atividade de fantasmatização) e a dimensão social-histórica, a sociedade como instituinte e não instituída de uma vez por todas. (Problema que, na verdade, não pertence como coisa particular ao campo analítico, mas que a análise encontra inexoravelmente como questão da socialização da psique, da fabricação social do indivíduo que começa com seu nascimento). Apesar disso, Freud está constantemente, embora secretamente, preocupado com os problemas que esses dois pontos fazem surgir (CASTORIADIS, 1997, p. 109).

17“É pois impossível manter uma distinção intrínseca do social e do histórico... O social é isso mesmo,

autoalteração, e nada é senão é isso. O social faz-se e só pode fazer-se como história... O histórico é isso mesmo, autoalteração desse modo específico de ‘coexistência’ que é o social e nada é fora disso” (CASTORIADIS, 1995, p. 252).

A reflexão mais aprofundada do mito Totem e Tabu possibilita perceber justamente este olhar freudiano às questões do social, da instituição de uma sociedade de iguais e até certo ponto as questões políticas implicadas no social. Nesta perspectiva podemos reconhecer que as questões sociais e históricas já estavam permeadas nas discussões psicanalíticas desde a origem desta e que podem e devem ser valorizadas como aspecto fundamental à constituição do sujeito. Não há possibilidade de descolar nenhum indivíduo, tão pouco sujeitos, da sociedade na qual se constituem, ao passo que Castoriadis vem nos mostrar, que estão constituindo esta sociedade ao recriar imaginariamente, simbolicamente e em seguida no campo do “real” este lugar em que vivem.

Esta constituição social é individual, cada sujeito constrói a sua própria representação imaginária da sociedade a partir das relações que estabelece com este social que já vem formado pelos sujeitos que o antecederam e apenas é interpretado e transformado individualmente por este sujeito que a inaugura ao seu ver. Castoriadis (1985, p. 36) vai afirmar que “Há sempre um conjunto fantástico e fantasticamente complexo de coisas existentes e de condições parciais dentro das quais se realiza a criação histórica. [...] o velho

entra no novo com a significação a ele dada pelo novo e não poderia entrar de outra forma”.

O sujeito irá elaborar as representações históricas e sociais a partir de algo já vivenciado no real e no imaginário por ele, construindo algo que é o social, mas um social individualizado e ao mesmo tempo coletivo.

Cada ser “sujeito” terá a sua forma individual e subjetiva de interpretar e se relacionar com o mundo, olhará o social a partir de suas representações e poderá “falar” o social, com as mesmas palavras de outros sujeitos, mesmo assim, terá suas representações particulares e singulares. Marques (1995, p. 40) vai afirmar que a “subjetividade constrói seu núcleo de singularização na intersubjetividade” e a partir daí estabelece todas as possibilidades de interação com o social sem abandonar o individual. Castoriadis (1995, p. 135), por sua vez, entende que:

O social implica alguma coisa que jamais pode ser dada como tal. A dimensão social-histórica, enquanto dimensão do coletivo e do anônimo, instaura para cada um e para todos uma relação simultânea de interioridade e de exterioridade, de participação e de exclusão, a qual não pode ser abolida nem mesmo “dominada” mesmo num sentido pouco definido deste termo.

O social de Castoriadis é ao mesmo tempo individual e coletivo, é uma produção individual de uma interpretação do coletivo, que será visto e interpretado individualmente por todos os sujeitos que convivem nesta determinada sociedade. Outro aspecto relevante da

questão social é que cada social só será entendido e internalizado pelos indivíduos que estiverem imersos neste social. Uma sociedade nunca será arcaica ou autoritária para os sujeitos constituídos por ela e que ao mesmo tempo a constituem, mesmo que essa característica do social impeça que este sujeito efetivamente liberte sua imaginação radical. O social é diferente em cada instituição que o constitui ou em cada instituição constituída por ele. Posso exercer uma liberdade imaginária na instituição “família”, por exemplo, e estar preso a uma instituição limitadora, de extrema crença religiosa em seguida. Depende das categorias que constituem cada uma dessas instituições sociais e as histórias que foram contadas ao longo do seu tempo de existência.

Se o social-histórico é pensável por meio de categorias que valem para os outros entes, ele só pode ser essencialmente homogêneo a estes; seu modo de ser não coloca nenhuma questão particular, mas se deixa reabsorver pelo ser-ente total. Reciprocamente, se ser significa ser determinado, sociedade e história só são na medida em que são determinados, ao mesmo tempo, seu lugar na ordem total de ser (como resultado de causas, meios e fins, ou momento de um processo), sua ordem interna e a relação necessária dos dois; ordens, relações, necessidades que se transacionam sob a forma de categorias, isto é, de determinações de tudo o que pode ser enquanto pode ser (pensado). O melhor que assim se pode obter é a visão hegelo- marxista da sociedade e da história: soma e sequência de ações (conscientes ou não) de uma multiplicidade de sujeitos, determinadas por relações necessárias, e por meio das quais um sistema de ideias se encarna num conjunto de coisas (ou o reflete) (CASTORIADIS, 1995, p. 203).

Absolutamente todas as instituições sociais são criadas a partir da necessidade dos indivíduos que formam esta instituição e são entendidas a partir de quem possui algum tipo de relação com estas. Um grupo de poetas falará e se relacionará a partir dos conhecimentos preestabelecidos sobre poesia e grande parte de seu discurso só será entendível àqueles que compartilham desses conhecimentos. O mesmo se produz em todas as diferentes instituições e também em seus diversos níveis de estruturação.

Assim, como já exposto anteriormente, a música e as artes plásticas são dois grandes exemplos de como as instituições se formam a partir destas combinações limitadas de elementos predeterminados e que invariavelmente são capazes de constituir uma infinidade de outras formas de representação, resultando em diferentes estilos musicais, composições inéditas, mistura de cores e imagens diversas, mas com caráter identificatório às outras já criadas anteriormente. Todo processo de educação e aprendizagem se dá nesta perspectiva social e histórica. Para Marques (1995, p. 15), citando Kant, “homens educam homens em homens”. O mesmo autor segue afirmando que “a aprendizagem não é conformação ao que existe nem pura construção a partir do nada; é reconstrução autotranscendente, em que se

ampliam e se ressignificam os horizontes de sentido desde o significado que o sujeito a si mesmo atribui”.

Não somos humanos, sujeitos e indivíduos, se não pelo fator social e histórico que nos constitui. É a lógica18 que organiza a própria vida. O mais importante legado que herdamos e deixamos é o mundo social e histórico. Sem o mundo social e histórico apenas nasceríamos e morreríamos sem nenhuma representatividade no mundo, sem subjetividade.

Para finalizar as questões que definem a subjetividade para Castoriadis faz-se mister destacar o conceito de que a “subjetividade humana é uma bola pseudofechada, que pode autodilatar-se, pode interagir com outras pseudobolas do mesmo tipo, e pode questionar as condições, ou as leis, da sua clausura” (CASTORIADIS, 2006, p. 237). Assim, a subjetividade não é algo fechado ou definitivo, tal qual seu conceito é algo que sempre se dilata, se transforma, se recria, em e através de suas relações com outras subjetividades. Da mesma forma que não somos humanos sem a relação com outros humanos, também não há subjetividade sem a relação com outras subjetividades. Tudo está em constante transformação, “o tempo não para” (CAZUZA; BRANDÃO, 1987).

É na contemporaneidade que a subjetividade como capacidade de um pensar e agir reflexivo se justifica. E, é nesta que pode ser pensada, pela educação, com a finalidade de possibilitar o real exercício de uma autonomia efetiva e de um imaginário capaz de inovar e transformar o social constantemente, recriar sua história continuamente e criar seu universo de representações para conteúdos, transformando-os em aprendizagens. Às questões pertinentes aos conceitos de autonomia, imaginário e criatividade serão abordados de forma aprofundada nos capítulos que seguem.

18“A lógica-ontologia herdada está solidamente ancorada na própria instituição da vida social-histórica; ela se

enraíza nas necessidades inelimináveis desta instituição, ela é, em certo sentido, elaboração e arborescência dessas necessidades. Seu núcleo é a lógica identitária ou conjuntista, e esta lógica que impera soberanamente e inevitavelmente em duas instituições sem as quais não há vida social; a instituição do legein, componente ineliminável da linguagem e do representar social, a instituição teukhein, componente ineliminável do fazer social” (CASTORIADIS, 1995, p. 210).

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2 AUTONOMIA E IMAGINÁRIO NA EDUCAÇÃO

“Somente pelo mundo é que podemos pensar o mundo” (CASTORIADIS, 1995, p. 128).

Os conceitos de Imaginário e Autonomia são os mais fortemente abordados por Castoriadis em seus estudos, que contemplam questões políticas e econômicas da sociedade, perpassando a filosofia, a psicanálise e a educação. Os comparativos e os exemplos explorados pelo autor demonstram a grandiosidade de sua percepção sobre os conceitos e sua forma particular de defini-los. Os aspectos que serão abordados neste capítulo de estudo vislumbram um aprofundamento teórico conceitual a partir de Castoriadis e de outros autores que convergem com suas definições, referente aos termos autonomia, imaginário e conhecimento, pensados a partir das relações entre o sujeito e o mundo social e histórico.

Como já abordado ao longo do capítulo anterior, o sujeito é constituído pelo processo de relação entre o eu e o outro, sendo o exercício da autonomia a forma encontrada pelo eu de manifestar seus desejos, suas necessidades e suas perspectivas. A relação que cada sujeito estabelece com o mundo, com a sociedade e com a história que o antecede é determinante em seu processo de desenvolvimento humano, em sua forma de se relacionar com o mundo e no exercício de suas escolhas. Neste capítulo será possível perceber um pouco mais os efeitos constitutivos do desenvolvimento dessa autonomia, que não se estabelece de igual forma em todas as situações, em todos os indivíduos, em todas as estruturas de sociedade, e sim, está atrelada às características da sociedade em que o indivíduo está inserido, seu contexto social- histórico e seu imaginário. A saber, é a democracia que possibilita o desenvolvimento de sujeitos autônomos e é a autonomia dos sujeitos que fornece as condições para o exercício da democracia.

Ser autônomo não é ser qualquer coisa ou qualquer um; ainda é ser alguém, alguém definido e, portanto, investir objetos determinados, sua identidade, o que vem com essa identidade: uma forma particular de fazer ser um mundo para si, uma forma particular de interpretar ou dar sentido ao que se apresenta. Essa forma particular é certamente, na óptica da autonomia, sempre suscetível de ser posta em questão – mas posta em questão não para chegar a nada ou a qualquer coisa, mas a uma outra maneira de interpretar ou de dar sentido. E é sem dúvida investir sua identidade na medida em que ela comporta a representação de si como sujeito autônomo (CASTORIADIS, 2007, p. 237).

Ao considerarmos que os sujeitos tornam-se autônomos à medida que as instituições possibilitam a ele esse desenvolvimento e ao exercer sua autonomia passam a ser sujeitos

ativos e participativos na criação e na recriação da história social, a interconexão, a interrelação entre os conceitos de autonomia, de imaginário e de criação, torna-se extremamente pertinente. Castoriadis (2007) apresenta em sua obra “Sujeito e verdade no mundo social-histórico”, e em outras anteriores, o impacto das estruturas sociais totalitárias ao longo da história, exemplificando sociedades que exerceram a dominação de uns para com outros seres humanos, destacando as relações de “exploração colonial, relação de escravidão, de servidão” (CASTORIADIS, 2007, p. 268). O autor destaca que muitas vezes essas situações de dominação não são “evidentes”, mas invariavelmente impossibilita o exercício da autonomia, a participação na construção da sociedade. É possível identificar um número significativo de exemplos citados por ele, demonstrando sua forte indignação e certa repulsa em relação às sociedades totalitárias.

A concepção de autonomia que aqui nos convém é estruturante e transformadora da sociedade, existe, conforme os estudos do autor, desde a antiguidade, desde a origem da filosofia e movimenta a evolução do homem. A perspectiva é que seja possível pensar este conceito de autonomia no contexto educativo atual e as possibilidades do real exercício da autonomia por parte dos envolvidos nos processos educativos.

O exercício desta autonomia está diretamente atrelado ao potencial imaginário do sujeito, que ao possuir subsídios e exercitar livremente suas reflexões de mundo e de si mesmo, constrói representações imaginárias que transformam tanto o próprio sujeito quanto à sociedade em que vive. A essas questões Castoriadis dedica a maior parte de suas produções, afirmando que absolutamente tudo que temos, vemos, conhecemos e consideramos como real, são fruto das representações que construímos imaginariamente. Que as instituições que organizam e regem o funcionamento da sociedade são criações imaginárias dos sujeitos que as constituem e ao participarem ativamente dessas instituições, as transformam, criando e recriando, sempre e constantemente, as formas de estruturá-las.

Os aspectos do imaginário contemplam tanto o conceito de imaginário instituinte ou radical, como o imaginário instituído, analisados por Castoriadis como inter-relacionados e determinantes em toda história da criação da sociedade. Castoriadis (1992) conceitua a sociedade como obra desse imaginário radical e os indivíduos como resultado deste imaginário instituído.

A sociedade é obra do imaginário instituinte... Os dois polos irredutíveis são o imaginário radical instituinte – o campo de criação social-histórico – de um lado, e a psique singular de outro lado. A partir da psique, a sociedade instituída faz a cada vez indivíduos – que, como tais, não podem fazer mais nada a não ser a sociedade que os faz (CASTORIADIS, 1992, p. 123).

Mantendo a fidedignidade ao autor torna-se fundamental retomar as relações entre subjetividade, autonomia e imaginário, já introduzidas no capítulo anterior, mas que demandam maiores reflexões neste momento em que os conceitos de autonomia e de imaginário se tornam mais claros à nossa compreensão. A estas relações será dedicado um subcapítulo, provocativo, sobre como a subjetividade de cada indivíduo, sujeito, é determinante em seu processo de construção do conhecimento, na efetivação do exercício imaginário de representar o social e de transformar o já sabido em algo novo, evoluindo, aperfeiçoando e aprendendo. Dessa forma, é possível também pensar como estes conceitos se relacionam com as questões pertinentes à educação e ao conhecimento.