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AUTONOMIA OU AUTOSSUFICIÊNCIA? LIMITES NECESSÁRIOS

3. CULTURA E EDUCAÇÃO FAMILIAR

3.3 AUTONOMIA OU AUTOSSUFICIÊNCIA? LIMITES NECESSÁRIOS

O modelo social vigente é fruto de um grito libertário, de um basta a opressão do colonialismo, da aristocracia e da politica escravocrata, de um não incisivo ao autoritarismo de uma ditadura dominante, por um contexto social de respeito as individualidades e de livre expressão. Entretanto, o grito da liberdade também ecoou com um viés de libertinagem em alguns contextos. “Para esses jovens, os que tinham mais de trinta anos, como seus pais e professores, eram de uma geração educada pela disciplina, baseada nos princípios de autoridade, hierarquia e ordem, que redundou, por exemplo, no nazismo” (CARMO, 2010, p. 9) O“não”, que deveria ser dado a dominação e ao autoritarismo, foi dito aos pais e para toda forma de autoridade em todas as esferas.

A moda passou a ditar também as regras comportamentais. A aceitação dos “excluídos”, a nivelação social, o movimento hippie, o topless, o sexo, drogas e rock

and roll, tudo isso se transformou na atitude predominante dos filhos entre os anos

1960 e 1970 oriundos do pós-guerra (PIRES, 2010)

,

sem restrição alguma, sem diálogo, sem participação dos pais, que na verdade submersos no modelo capitalista de trabalho e consumo não teriam mesmo tempo para “opinar”, tão pouco educar efetivamente. Essas mudanças sociais e econômicas das últimas décadas transformaram a estrutura familiar, devido a ausência de pais e mães em casa, as crianças também perderam as referências.

Infelizmente, muitos daquela geração não entenderam que a liberdade pela qual lutavam – ou deveriam lutar - neste período, era a liberdade do respeito ao outro, da abolição do preconceito racial e de gênero no mercado de trabalho vigente. Trocou-se a ditatura autoritária pela ditadura libertina e licenciosa, na concepção de muitos eximindo as atitudes morais. Segundo La Taille (1999), uma atitude moral implica no respeito ao outro, respeito às necessidades e particularidades do outro, respeito aos demais pontos de vista; implica, também, na capacidade de pensar no bem comum. Sendo assim, a construção de limites está diretamente relacionada à capacidade de socialização e convivência bem-sucedidas, do sujeito com o outro, de forma que ele possa reconhecer e considerar os próprios limites e os dos demais.

No auge das transformações sociais, entendeu-se que a principal regra era quebrar as regras, e repudiar toda e qualquer autoridade. O “não” passa a ser interpretado como “traumático”, repressivo e incongruente. Resquícios desta filosofia permissiva, perpassam os dias atuais nos diálogos de pais e educadores e refletem

negativamente nos diversos setores da sociedade, apresentando evidente marca na identidade dos jovens contemporâneos.

Rousseau (1995) elucida a questão da importância dos limites ao propor:

"Sabeis qual o meio mais seguro de tornar vosso filho desgraçado? Acostumá-lo a tudo conseguir; pois crescendo incessantemente seu desejo com a facilidade de satisfazê-los, mais cedo ou mais tarde a impossibilidade de atendê-lo vos forçará à recusa” (ROUSSEAU, 1995, p.71). Neste mesmo sentido Felipe (2004), ressalta o papel da família neste particular indicando:

As famílias, com sua importante função na educação dos filhos, não se sentem em condições de trabalhar limites com os filhos, ou por não saber como orientá-los, ou por não querer educá-los como fora antigamente por seus pais. Muitos acabam permitindo tudo, sem regras ou combinações, deixando as crianças a sua própria vontade [...] afinal, qual é a importância para as crianças de construírem limites?(p. 29)

Respondendo esse questionamento, disposto na citação acima, defende La Taille (1999) que o limite é um termo associado à obediência, ao respeito, à retidão moral e à cidadania. Para ele, a palavra sugere, de um lado, fronteira, delimitação entre territórios; e, de outro, a possibilidade de transpor e ir além. Sendo assim, aprender a receber um não pode ensinar desde a mais tenra idade ao indivíduo que a vida nem sempre lhe dirá um sim, evitando algumas frustrações futuras, e construindo espaço para uma rebeldia benéfica que pode o impulsionar a vencer desafios inerentes a vida, seja ela profissional, educacional ou até em relacionamentos sociais. Como se observa no discurso de C.M.:

Sai de casa com 15 anos, porque minha mãe não aguentava mais a situação, estava indo mal na escola, faltava aulas. Fui morar com meu pai em farroupilha, mas ele nunca criou raízes e cidade nenhuma, teve muitas namoradas depois que largou minha mãe, e ele tinha uma mulher que morava com ele, eles brigavam muito, e ele acabou me levando para Três de Maio novamente, fiquei duas semanas na casa da minha avo e ele voltou para me buscar, fiquei uma semana em farroupilha e novamente ele me levou para três de maio, mas para casa da minha mãe não podia voltar então acabei indo morar com amigos. Nessa fase o contato com as drogas e bebidas se aprofundou muito. Já não ia mais à escola, e ninguém me corrigia, nem dizia que o que eu estava fazendo era errado. Vivia como queria e não dava satisfação para ninguém. Na verdadeeu buscava algo que preenchesse a falta que meus pais faziam na minha vida (C.M.).

Perceber-se aqui como ela manifesta que a carência da autoridade familiar foi determinante em tomar decisões equivocadas na vida, certamente, pelo fato de na

idade em questão, haver pouco senso crítico para avaliar as escolhas realizadas, tais como dos possíveis danos cognitvos/neurológicos advindos do uso prematuro de drogas, tanto lícitas como ilícitas. Neste sentido, o papel dos pais é insubstituível.

Nesta perspectiva, a criança que aprende a receber um não, terá mais facilmente a capacidade de dizer um não às drogas, ao álcool, à desonestidade, à mentira, à falta de respeito, ao sexo prematuro; aos pequenos furtos. De forma geral, saberá dizer não a tudo que tentar substituir os limites construídos pelos pais.

Segundo La Taille (1999), com o declínio da autoridade dos pais, abriu-se o caminho para a suspensão da lei cultural impedindo dois sentimentos fundamentais para a formação do sujeito ético9: vergonha e culpa. Sentimentos imprescindíveis para formação do sujeito moral. Desta forma, na perspectiva do autor, o sujeito sem vergonha, é alguém que ignora e despreza o juízo dos outros, assim como não considera condenável cometer certos atos condenados pela moral vigente. O desrespeito em relação aos pais se reproduz na rede simbólica de sustentação das demais autoridades da sociedade: professor, diretor, reitor, prefeito, governador, presidente. Qualquer autoridade é herdeira da função paterna original. Não se trata de maior indisciplina atual, mas de maiores contradições da sociedade. Sendo assim, os pais exercem grande influência na construção de modelos de relações e comportamentos transferíveis para outros momentos e contextos nas vivencias e interações sociais de seus filhos.

La Taille (1999) afirma ainda, que o atual discurso pedagógico, a respeito da ética tem se desenvolvido, basicamente, sobre a premissa da crise moral, representada pela deturpação dos valores e pela ausência de limites nas relações entre os indivíduos. A ausência dos pais na formação dos filhos, tanto em presença quanto em autoridade, tende a constituir indivíduos licenciosos, pois quando adolescentes se encontram “soltos” na sociedade, há uma perda de referência, um

déficit de valores considerados importantes, há instabilidade na construção de

indivíduos estruturados no caráter.

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É sujeito ético moral somente aquele que sabe o que faz, conhecem as suas causas e os fins de sua ação, o significado de suas intenções e de suas atitudes e a essência dos valores morais

Para Freire (2000), a construção respeitosa da disciplina deve incluir a educação da vontade e esta se torna autêntica em sujeitos que assumem seus limites. Para o autor, a vivência da tensão dialética entre liberdade e autoridade, revela que ambas não são necessariamente antagônicas entre si, pois para a promoção da autonomia, a liberdade deve constituir-se assumindo seus limites criticamente.

L.L.foi redirecionada por sua mãe quanto à postura e padrão de referência, pois seu comportamento licencioso imitava o exemplo paterno negativo. Sua liberdade foi confrontada numa dinâmica construtiva:

No começo, assim que eu lembro, eu pensava que podia ser igual meu pai, pois foi o primeiro exemplo assim que eu tive. Então eu achava que se meu pai podia xingar e brigar eu também podia, agir assim. Mas uma frase que minha mãe me disse que me marcou muito foi: “filha não seja igual ao seu pai.” Hoje eu penso, realmente eu não podia tomar o meu pai como exemplo, pois ele era um exemplo ruim que eu tinha. Então a partir da separação deles, a minha mãe começou a me reeducar, a me por limites, a me por princípios sabe... Se você quer comer algo, se quer pegar algo, peça... Não simplesmente pegue. Se você pegou alguma coisa em algum lugar, depois ponha de volta no lugar... Então ela começou a nos trazer limites sabe, para minha irmã e eu, pois nós éramos quase da mesma idade, pouca diferença, então ela nos educou meio que juntas. Então foram esses exemplos que eu tive de educação. O que eu sou hoje, sobre caráter, responsabilidade, foi a minha mãe que me deu. Foi vendo nela um exemplo e refletindo em mim isso. Hoje eu sei que na minha educação faltou algo, eu sei que a minha educação, os meu limites ainda faltou alguma coisa assim... Faltou... Mas eu não cobro isso da minha mãe, pois eu sei que não foi fácil pra ela. Hoje ela me cobra bastante, por mais que ela não tenha me cobrado antes, eu não lembro de ela ter me cobrado muito, tempos atrás, mas hoje ela me cobra as coisas (L.L.).

L.L. vivenciou momentos de construção dos limites por sua mãe, um confronto de liberdades. Na concepção freireana, o confronto com as demais liberdades e com a autoridade é bom e necessário, seja dos pais, professores, do Estado, pois amadurece a liberdade, descobrindo que a mesma não é absoluta, mas é cerceada por outras liberdades e pela autoridade, e que a autonomia do sujeito não é absoluta ou auto-suficiente. Desta forma, torna-se indispensável que os pais tomem parte nas discussões sobre as decisões dos filhos, não ao ponto de tomá-las por eles, contudo demonstrando que decisão é um processo responsável e que sempre acarreta consequências.

A comunicação só ocorre quando os envolvidos estão abertos a falar e ouvir, abertos a uma inteiração significativa. Sendo assim, a palavra é de fundamental importância para construção da identidade. Sem essa comunicação há uma defasagem na identidade. Entretanto, mesmo com essa consciência da dinâmica comunicativa, o homem ainda se comunica mal e interage superficialmente (VYGOTSKY, 1991; 2001). O indivíduo como ser social, precisa de aceitação do seu entorno, tem a necessidade de pertença a um grupo social que o respalde e o aceite. Sendo assim, por vezes, é mais fácil se deixar levar pela dominação social ou pela licenciosidade como “padrões corretos” do que agir contrariamente ao que é pregado (REGO,1999). Essa superficialidade, esse não comprometimento parece estar introjetado nos valores dos jovens na atualidade, anulando responsabilidades e demonstrando pouco envolvimento com suas crenças e valores éticos.

Sendo assim, tanto pelos dados identificados nos discursos dos entrevistados como nos postulados teóricos observados, pude identificar que a família representa um papel importante no desenvolvimento identitário, social e afetivo do ser humano, bem como na da educação; influencia na criatividade, e no comportamento produtivo desde a infância. Assim sendo, a família, constitui uma influência significativa para o desenvolvimento da personalidade e do caráter do indivíduo. A partir destas constatações, no próximo capítulo, abordo a cultura e educação no espaço escolar, observando as influências dela sobre o sujeito e suas contribuições na construção da identidade dos jovens.