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CAPÍTULO II – PRINCÍPIOS DO DIREITO SOCIETÁRIO: LIVRE INICIATIVA,

2.3 Autonomia privada

A leitura do princípio da autonomia privada deve ser feita em conjunto com o dever

de diligência do administrador

81

, que reflete, também, em dever de diligência do sócio ou

potencial sócio da empresa.

Quem já é sócio ou pretende entrar em uma sociedade deve sempre estudar seus

aspectos econômicos, patrimoniais e financeiros. Mas não só! Deve, também, entender as

relações societárias dentro da companhia (ex. acordo de acionistas) e como os acionistas

controladores e o conselho de administração (se houver) entendem e vislumbram o caminhar e

o desenvolvimento da sociedade.

Assim, estar ou não dentro do quadro societário da companhia não deve ser uma

decisão irrefletida: é decisão estratégica, que deve ser analisada com o máximo de cuidado, a

partir do exame de todos os documentos pertinentes à sociedade

82

.

Dessa forma, ser ou não acionista, independentemente do tipo societário, é assumir o

risco da atividade empresarial e pelo exercício individual da vontade celebrar negócio

jurídico

83

que faça nascer, modificar e mesmo extinguir sua condição de sócio daquela

sociedade, trazendo validade ao ato.

81 Lei das Sociedades Anônimas: “Art. 153. O administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas

funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios”.

82 Lembrem-se das auditorias legais, contábeis e financeiras que precedem as operações societárias.

83 Nas palavras de Ferrara, negócio jurídico é: “manifestação da vontade dirigida a um fim prático que a ordem

jurídica tutela, tendo em conta a responsabilidade do ou dos sujeitos e a confiança dos demais”. FERRARA, Luigi Cariota. El negocio jurídico. Tradução M. Albaladejo. Madrid: Revista de Derecho Privado, 1956, n. 20. Ainda sobre negócio jurídico, na expressão de Betti: “A manifestação precípua desta autonomia é o negócio jurídico, o qual, precisamente, é concebido como um acto de autonomia privada, a que o direito liga o nascimento, a modificação ou a extinção de relações jurídicas entre particulares”. BETTI, Emilio. Teoria geral

Nesse caminho, Wald

84

explica que:

A autonomia da vontade apresenta-se sob duas formas distintas, na lição dos dogmatistas modernos, podendo revestir o aspecto de liberdade de contratar e da liberdade contratual. Liberdade de contratar é a faculdade de realizar ou não determinado contrato, enquanto a liberdade contratual é a possibilidade de estabelecer o conteúdo do contrato. A primeira se refere à possibilidade de realizar ou não um negócio, enquanto a segunda importa na fixação das modalidades de sua realização. (grifo do autor).

Por sua vez, Pedro A. Batista Martins

85

, coautor da Lei de Arbitragem, na ótica da

arbitragem no direito societário, cuja passagem serve como analogia, pois se refere aos

aspectos subjetivos e objetivos da liberdade contratual, divide-a, respectivamente, em

autonomia da vontade e autonomia privada:

No aspecto subjetivo, a liberdade manifesta-se, no campo do direito privado, no poder da pessoa estabelecer, pelo exercício de sua vontade, o nascimento, a modificação e a extinção de suas relações jurídicas. No aspecto objetivo, significa o poder de criar juridicamente essas relações, estabelecendo-lhe o respectivo conteúdo e disciplina. No aspecto subjetivo, autonomia de vontade, e no aspecto objetivo, como poder jurídico normativo, denomina-se autonomia privada. Instrumento de sua atuação e realização é o negócio jurídico. No que toca à arbitragem, a autonomia privada funciona como poder de afastar a jurisdição estatal e a autonomia da vontade como o poder de estabelecer as condições pelas quais irá se desenvolver o processo arbitral. (grifo nosso).

É exercendo essa livre vontade

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que se atrela o sujeito à sociedade, que o faz

sujeitar-se à decisão majoritária e que permite, se não satisfeito com os rumos sociais, retirar-

se da sociedade quando diante das hipóteses legais da Lei do Anonimato ou do Código Civil

ou ceder sua participação societária.

No âmbito do princípio da segurança negocial no direito societário, cerne deste

trabalho e que será abordado no capítulo III adiante, o aspecto subjetivo (autonomia da

vontade) aparece na conduta leal (sem má-fé) à sociedade empresária, seus acionistas e

colaboradores; e o aspecto objetivo (autonomia privada) no dever de servir à sociedade,

abstendo-se de indicar ou celebrar negócios jurídicos que não atendam ao interesse social,

garantindo-se a preservação da empresa e de sua atividade.

84 WALD, Arnoldo. Direito civil: direito das obrigações e teoria geral dos contratos. 20. ed. São Paulo: Saraiva,

2011. p. 230.

85 MARTINS, Pedro A. Batista. Arbitragem no direito societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 35. 86 José Augusto Fontoura Costa, em análise da arbitragem no caso do contrato de seguro do projeto Jirau,

observa que a legislação e o judiciário inglês privilegiam mais a autonomia da vontade do que o judiciário brasileiro. COSTA, José Augusto Fontoura. A vontade e a forma: a percepção da arbitragem no caso do contrato de seguro do projeto Jirau. Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo: IASP, n. 38, p. 35-60, 2013.

Vale ressaltar que a concepção de que a vontade era única causa dos efeitos jurídicos

remonta à Revolução Francesa e, portanto, às aspirações burguesas. À época e durante a

vigência do antigo Código Civil Brasileiro, o que valia era a autonomia da vontade e o

brocardo jurídico que o contrato faz lei entre as partes. Entretanto, o Estado contemporâneo,

marcado pela intervenção estatal na economia e por uma nova concepção socioeconômica,

atrelado aos princípios de direito (exs. dignidade da pessoal humana, solidariedade e boa-fé)

dão nova feição ao princípio, agora denominado autonomia privada, pois a liberdade

contratual é tolhida pelo e no limite do ordenamento jurídico

87

. São novos valores em voga

88

.

Nesse caminho, Francisco Amaral

89

refere que a autonomia privada

funciona como princípio aberto, no sentido de que não se apresenta como norma de direito, mas como ideia diretriz ou justificadora da configuração e funcionamento do próprio sistema jurídico. A autonomia privada opera na área das escolhas individuais, no espaço concedido pelo Direito para auto-regulação das relações privadas.

Como falado, decorrência natural do princípio da autonomia privada é o aforismo

que o contrato faz lei entre as partes (pacta sunt servanda).

Porém, a interpretação do pacta sunt de servanda foi sendo lentamente alterada, com

mais prestígio aos princípios jurídicos e as cláusulas gerais. Sobre a força do pacta sunt de

servanda, que afastava no estado liberal a força estatal

90

, escrevia Orlando Gomes

91

que: “O

87 Sobre a evolução na interpretação da autonomia privada, adequada se faz a citação de Stiglitz: “As mutações

sociais a seguir ocorridas (industrialismo, massificação, etc.) foram gerando uma resistência da moderna ciência jurídica contra a rigidez iniciada dessa concepção, tal como fora formulada. Fez-se manifesta a injustiça contratual baseada no egoísmo individualista e econômico, que atentava – e ainda atenta – contra interesses essenciais da comunidade. A liberdade era incompleta, irreal e a desigualdade meramente teórica, decorrência da inferioridade econômica de uma das partes da relação obrigacional. A experiência demonstrou que o contrato não é necessariamente justo, que, freqüentemente, consagra o aniquilamento do fraco pelo forte. E se um dos contratantes pode impor a sua vontade ao outro, o contrato expressa apenas a lei do mais forte; alteram-se, por conseguinte, os termos: nessas condições, é a liberdade que escraviza e a lei que liberta”. STIGLITZ, Gabriel. O direito contratual e a projeção jurídica do consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 1, p. 185, dez. 1992.

88 Susete Gomes assinala: “A autonomia privada não prevê uma liberdade absoluta, pois não existe liberdade

contra o sistema do direito. Assim, a ela se impõem as restrições decorrentes do próprio ordenamento jurídico, que tem de ter univocidade, e, por assim ser, a autonomia privada tem de ser exercida dentro dos limites da ordem pública e da observância aos valores e preceitos constitucionais”. GOMES, Susete. Princípios e Cláusulas Gerais e a Autonomia Privada. In: CAHALI, Francisco José. Os princípios e os institutos de direito civil . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015. p. 119.

89 AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 346.

90 Ranieri explica: “Em que pese não ser objeto do presente trabalho a análise da formação do Estado e da

legitimação e validade de seus poderes, necessário destacar, a fim de situar o leitor, a íntima ligação entre a filosofia dos direitos naturais e a teoria do contrato social, de Rousseau, eis que ambas se concentram a concepção individualista da sociedade, que dispensa intermediação entre indivíduo e Estado, garantindo o ideal de liberdade. A passagem do „estado de natureza‟ para o „estado civil‟, no qual há legislação, realização por meio do pacto de consentimento para a preservação da propriedade e da paz, mediante a união de todos, o que garante, assim, que a forma de governo seja decidida pela maioria. O poder do Estado, nesse sentido, se justifica pela

individualismo característico da era liberal refletiu as concepções jurídicas da época. A

liberdade de contratar, assim, se caracterizava em autonomia da vontade, ou seja, o indivíduo

era a fonte das situações jurídicas pelas quais se obrigava”.

Atualmente, o pacta sunt servanda deve ser interpretado pela nova feição da

autonomia da vontade, que é a autonomia privada, levando em consideração a função social

do contrato e, espera-se, a real vontade dos contratantes: que o negócio jurídico celebrado dê

frutos a ambas as partes sem prejuízo a terceiros.

Susete Gomes

92

complementa:

A modificação do princípio da autonomia da vontade pela autonomia privada traz em seu cerne a relativização do princípio da força obrigatória dos contratos como um dos principais aspectos da eficácia interna da função social dos contratos, o que nos dá a nova dimensão em que se encontra a contratação privada. Pois, a partir da criação da norma privada, o contrato passa a ser fonte de relações obrigacionais. Não é obrigação em si, frise-se desde logo, mas é fonte criadora delas.

Por outro ângulo, cumpre lembrar o dirigismo contratual, que pode ser explicado

pela necessária intervenção do Estado no contrato para proteger interesses da coletividade e

econômicos

93

, visando ao desenvolvimento social

94

. Explica Diniz

95

ao cuidar do art. 45, da

Lei de Locação, que serve perfeitamente como analogia:

legalidade, sendo instrumento da luta política da burguesia contra o Estado centralizador. Nos dizeres de Norberto Bobbio: „o Estado liberal se afirma na luta contra o Estado absoluto em defesa do Estado de Direito‟”. RANIERI, Nina Beatriz. Do estado liberal ao estado contemporâneo: notas sobre os processos de exaustão dos modelos políticos e da ordem jurídica. Revista de Direito Constitucional e Internacional , São Paulo: RT, n. 36, p. 136-161, 2001.

91 GOMES, Orlando. Transformações gerais do direito das obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais,

1967. p. 10. Nesse sentido, acentua o autor que: “O individualismo atribuíra à vontade individual a função de causa primeira do Direito, assim público como privado. O comércio jurídico deveria repousar no contrato, entendendo-se, não somente que toda obrigação, implicando restrição à liberdade individual, teria de provir de um ato de vontade do devedor, como também, que os resultados desse ato eram necessariamente justos. Institui- se, em suma, como pedra angular do Direito Privado o dogma da teoria da vontade”.

92 GOMES, Susete, 2015, p. 121.

93 Por outro ângulo e para aprofundar o tema, são as cláusulas nulas nos contratos de locação e a proteção

conferida ao locador e ao locatário pela Lei de Locação. Jaques Bushatsky, em artigo intitulado “Nulidade de Cláusula em Contrato de Locação”, assim conclui sobre o tema: “Na verdade, se proteção há que se outorgar a qualquer contratante, tal se verificará, caso a caso, em respeito ao objetivo legal de atender as atuais necessidades produtivas, tanto das locatárias, para as quais o imóvel consiste significativo elemento do conjunto operacional, quanto para locadores, os quais caracterizam-se como investidores imobiliários e não mais, meros detentores de escrituras - protaindo o confronto, da relação entre propriedade e uso, para a dinâmica entre dois negócios distintos e complementares”. BUSHATSKY, Jaques. Nulidade de cláusula em contrato de locação.

Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 736, fev. 1997.

94 Ainda sobre o tema comenta Wald que “o dirigismo contratual diminuiu e restringiu a autonomia da vontade,

em virtude da elaboração de uma série de normas legislativas, fixando princípios mínimos que os contratos não podem afastar. O contrato passou assim a ter um conteúdo de direito público, uma convenção-lei, definida por Georges Ripert como „um ato legislativo, elaborado por via convencional.‟ A obrigatoriedade dos contratos

A expressão dirigismo contratual é aplicável às medidas restritivas estatais que invocam a supremacia dos interesses coletivos sobre os meros interesses individuais de um contratante, com o escopo de dar execução à política do Estado de coordenar os vários setores da vida econômica. O Estado intervém no contrato, mediante a aplicação de normas de ordem pública, alterando, estabelecendo-lhe condição de execução, ou até mesmo exonerando a parte lesada, conforme as circunstâncias, fundando-se em princípios de boa-fé e de supremacia do interesse coletivo, no amparo do fraco contra o forte, hipótese em que a vontade estatal substitui a vontade dos contratantes, valendo a sentença como se fosse declaração volitiva do interessado.

Nessa ótica, o princípio da autonomia privada possui estreita relação com a livre

iniciativa, pois não basta querer para o particular, deve também a iniciativa servir ao aos

interesses da ordem econômica e da justiça social

96

.

Hoje, e no nosso caso, seja o contrato social, seja o estatuto social, ambos devem ser

respeitados e seu conjunto de regras sempre projetadas com o intuito do desenvolvimento da

sociedade, pois tendo o acionista a possibilidade ou não de fazer parte do quadro societário,

no momento que decide fazer, deverá sujeitar-se ao novo modelo do pacta sunt servanda, às

decisões majoritárias e ao bem da sociedade empresária.

A conduta do acionista e seu voto devem ser muito bem analisados no conjunto

fático da sociedade, sob pena de qualquer decisão ser considerada abuso de poder de controle.

Ou seja, decisões nem sempre são fáceis para a vida societária e, uma vez tomadas, não

podem ser discutidas, caso não seja real que ela vá ao encontro do interesse social

97

.

constitui, por sua vez, uma projeção no tempo da liberdade contratual. As partes são obrigadas a realizar prestações decorrentes do contrato.” WALD, 2011, p. 231.

95 DINIZ, Maria Helena. Lei de locações de imóveis urbanos comentada. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 184. 96 Confira-se a opinião de Roppo96: “O direito, quando exerce um controle dos contratos, cuida (i) da

salvaguarda do interesse público (ou seja, tutela as razões da coletividade contra as dos contraentes), bem como (ii) da garantia da autonomia privada. O ordenamento não ampara as „concretas expectativas de lucro que cada operador coloca na troca contratual‟, porque „um certo grau de risco é indissociável de qualquer contrato, como de qualquer iniciativa econômica‟. Em suma: ao direito compete preservar o mercado (i.e., a fluência das relações econômicas), viabilizando o „jogo‟ mediante um sistema que procura levar ao respeito de suas regras, entre as quais a do „pacta sunt servanda‟. [...] Assegurando o respeito pelas regras de jogo de mercado, o ordenamento garante, sobretudo aos operadores, a abstracta possibilidade de lucro; garante, genericamente, as premissas e as condições formais de obtenção do mesmo. O que vale dizer que o direito tutela o sistema de mercado no seu conjunto, e não os interesses particulares dos simples operadores singulares que agem no mercado. A indiscriminada tutela dos interesses particulares dos simples operadores de mercado e das suas concretas expectativas de lucro implicaria o perigo de prejudicar o sistema de mercado no seu conjunto, e, assim, a possibilidade geral do lucro”. ROPPO, Enzo. O contrato. Tradução Ana Coimbra e M. Januário Gomes. Coimbra: Almedina, 1988. p. 22 ss.; 225.

97 Confira-se decisão do Superior Tribunal de Justiça que prestigiou o acordo celebrado em Assembleia Geral

Ordinária, bem como o princípio da autonomia da vontade: “Superior Tribunal de Justiça. Retirada de Sócio da Sociedade Empresarial. Acordo Realizado em Assembleia Geral Extraordinária. A apuração de haveres – levantamento dos valores referentes à participação do sócio que se retira ou que é excluído da sociedade – se processa da forma prevista no contrato social, uma vez que, nessa seara, prevalece o princípio da força obrigatória dos contratos, cujo fundamento é a autonomia da vontade, desde que observados os limites legais e

Assim, as estipulações feitas em uma sociedade empresária devem ser fielmente

cumpridas, porém sendo calibradas pelo princípio da autonomia privada, reflexo de uma nova

concepção socioeconômica e do atual estágio de desenvolvimentos dos princípios gerais de

direito

98

.