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CAPÍTULO IV – ASPECTOS IMPORTANTES PARA A INTERPRETAÇÃO DAS

6.3 Caso Semp Toshiba

O caso Semp Toshiba possui especial relevância por três motivos: (i) é a mais

recente decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema da apuração de haveres e seu

critério de avaliação; (ii) é o único neste capítulo que trata de sociedade de responsabilidade

limitada; (iii) discute a vinculação do princípio da autonomia privada e a necessidade ou não

de se submeter à cláusula contratual.

É isso que decorre da análise dos votos conferidos pelos ministros, destacando-se em

especial os critérios para apuração de haveres – se é possível ou não a utilização do método do

fluxo de caixa descontado a valor presente, permitindo-se, assim, que a sociedade não fosse

avaliada como dissolução total, mas sim como dissolução parcial.

Pela importância, confira-se a ementa:

Superior Tribunal de Justiça. Direito Empresarial. Dissolução Parcial de Sociedade por Quotas de Responsabilidade Limitada. 1. Na dissolução parcial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada, o critério previsto no contrato social para a apuração dos haveres do sócio retirante somente prevalecerá se houver consenso entre as partes quanto ao resultado alcançado. 2. Em caso de dissenso, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está consolidada no sentido de que o balanço de determinação é o critério que melhor reflete o valor patrimonial da empresa. 3. O fluxo de caixa descontado, por representar a metodologia que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa, pode ser aplicado juntamente com o balanço de determinação na apuração de haveres do sócio dissidente. (grifo nosso). Recurso Especial nº: 1335619 SP 2011/0266256-3. Relator: Ministra Nancy Andrighi. Data de Julgamento: 03/03/2015 – Terceira Turma. Data de Publicação: DJe 27/03/2015.

À primeira indagação realizada, se os sócios vinculam-se ao combinado no contrato

social, parece que a decisão foi acertada, mas a justificativa, data venia, poderia ter sido

melhor explorada, sob pena de ofensa ao standard de conduta e transparência defendido nesta

tese para os envolvidos com a empresa.

Se as cláusulas do contrato social não vão ser cumpridas, como parece fazer crer a

leitura do acórdão, não haveria motivo, no extremo, para discuti-las e elaborá-las. Cairia por

terra em decorrência desse entendimento o princípio basilar do direito comercial que é a

autonomia privada. Mais: se a sujeição e não submissão às regras contratuais não valem ou

podem ser facilmente alteradas, por que se preocupar com as decisões das maiorias? Haveria,

assim, lesão ao princípio majoritário.

Porém, não é exatamente esse o caso dos autos. A cláusula contratual não era clara

na forma de cálculo dos haveres, deixando a critério do juiz e do perito a melhor forma de

avaliação.

Vale fazer um parêntese: na prática societária, tal ponto é muitas vezes discutido e

posto em acordo de quotistas ou no contrato social para não incentivar o sócio a sair da

sociedade. Já se teve oportunidade de defender essa posição

404

:

Por fim, não poderíamos deixar de ressaltar que a grande discussão, doutrinária e jurisprudencial poderia ser mitigada através de cláusula no contrato social ou acordo de quotistas estabelecendo as regras de cálculo e a data base para cada hipótese de retirada do sócio, prestigiando a autonomia da vontade que levou a constituição da sociedade.

Nesse passo, existindo uma cláusula patológica, que não indique a forma de cálculo

dos haveres, inclusive sua data base de apuração, certo que poderá haver intervenção do juiz

para escolher a mais justa. No caso de sociedades empresárias operantes, parece que a mais

correta é a do fluxo de caixa descontado a valor presente. Já se fosse uma holding patrimonial,

o valor patrimonial com base nos ativos a valor real seria plenamente justo.

Seria essa a interpretação à frente do princípio da segurança negocial no direito

societário, que como já se asseverou, visa à lealdade entre as partes e a sociedade, agindo

todos os envolvidos como o esperado, perseguindo um comportamento correto, evitando-se

ao máximo o vício na manifestação da vontade, sempre resguardado a preservação da

empresa?

Sim, pois é necessário entender que não seguir o combinado no contrato social não

traz segurança ao tráfego comercial, não é o esperado pelas partes e, certamente, traz um vício

no consentimento. Já a empresa nem existiria sem que as partes confiassem reciprocamente

nelas, o que se dizer, exercer uma atividade.

Quanto ao cálculo, é necessário relembrar que os haveres são apurados através do

balanço de determinação, que possui como único objetivo técnico o cálculo do valor devido

ao sócio pela sua saída. Ele pode ser apurado através de balanço patrimonial, que avaliará o

404 BUSHATSKY, Daniel. Apuração de haveres na sociedade limitada. In: MARINONI, Luis Guilherme.

ativo e o passivo a valor real

405

, ou, também, por meio do fluxo de caixa descontado a valor

presente.

Essa última opção somente pode ser levantada na hipótese de se presumir o óbvio: a

sociedade não se extinguirá, pelo contrário, continuará operando normalmente.

Vejam-se os ensinamentos de Coelho

406

:

A apuração de haveres, em outras palavras, é a simulação da dissolução total da sociedade. Por meio de levantamento contábil, que reavalia, a valor de mercado, os bens corpóreos e incorpóreos do patrimônio social, e da consideração do passivo da sociedade, projeta-se quanto seria o acervo remanescente caso a sociedade limitada fosse, naquele momento, dissolvida. Definido o patrimônio líquido da limitada, na data da dissolução parcial, o reembolso será a parcela deste, proporcional à quota do capital social do sócio desligado ou falecido. Se, por exemplo, o retirante tinha 20% do capital da limitada, e apurou-se o patrimônio líquido de R$ 300.000,00, o seu crédito, em reembolso da quota, será de R$ 60.000,00. O pagamento do reembolso deve ser feito em dinheiro no prazo de 90 dias seguintes ao evento que deu ensejo à dissolução parcial, a menos que o contrato social contemple cláusula estipulando outras condições, como prazo inferior, superior ou parcelamento. Sempre que, antes do pagamento, a situação patrimonial da sociedade sofrer oscilação que a impeça de atender ao crédito do antigo sócio, os que nela permaneceram respondem, como obrigados subsidiários, pelo valor a pagar. Isto porque, uma vez desfeito o vínculo societário, o sócio em relação ao qual a sociedade foi dissolvida (ou o sucessor do sócio morto) não pode beneficiar-se dos sucessos posteriores, nem ser prejudicado pelos insucessos. Em contrapartida, os sócios que permanecem são beneficiados pelos progressos da sociedade seguintes à dissolução parcial, e devem garantir o reembolso ao antigo parceiro, na situação inversa. São obrigações implícitas do contrato de formação de sociedade empresária.

Por outro lado,

Marcus Elidius Michelli de

Almeida

407

explica:

Não é possível querer avaliar uma sociedade que está em pleno funcionamento como se estivesse sendo liquidada, pois nos parece óbvio que o valor de uma sociedade, que gera riquezas e está ativa no mercado, é bem diferente daquela que está sendo liquidada, vendendo o seu patrimônio e não o seu negócio.

405 “Já no balanço de determinação, além da atualização dos fatos contábeis verificados entre a data do

encerramento do último exercício e a data do seu levantamento, alteram-se os critérios de avaliação e apropriação dos bens do ativo e passivo, de sorte a contabilizá-los a valor de saída ('valor de mercado').

Em suma, no balanço de determinação, é feita uma simulação da realização de todos os bens do ativo e da satisfação do passivo social, para mensurar quanto seria o acervo líquido da sociedade, caso ela fosse totalmente dissolvida e liquidada naquela data. A simulação da realização do ativo e da satisfação do passivo pressupõe afastar-se o princípio do „custo como base de valor‟, consagrado pelas boas técnicas de contabilidade, e reavaliarem-se os elementos do ativo para os apropriar pelo „valor de saída‟ (valor de mercado). O balanço de

determinação é, bem vistas as coisas, um instrumento contábil desenvolvido exclusivamente para atender à jurisprudência dominante sobre apuração de haveres. Não tem outra serventia senão dar cumprimento às

decisões judiciais que decretam a dissolução parcial de sociedade limitada, em que o contrato social é omisso relativamente ao cálculo do reembolso. A própria expressão - balanço de determinação - é criação da doutrina jurídica, e não da teoria da contabilidade”. (grifo nosso). COELHO, Fábio Ulhoa. O valor patrimonial das quotas da sociedade limitada. In: SANTOS, Theophilo de Azeredo. Novos estudos de direito comercial em

homenagem a Celso Barbi Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 67-68.

406 COELHO, 2014c, p. 505.

Mais uma vez, é necessário saber se o princípio da segurança negocial no direito

societário teria outra solução para o caso. Pensa-se que não.

Em uma rápida análise poderia se sugerir que a sociedade e sua preservação não

estariam protegidas se houvesse um desinvestimento maior por ela, pelo valor apurado através

do fluxo de caixa. Porém, nesse ponto, veja-se o salientado pela Ministra Nancy Andrighi, em

seu voto:

Por outro lado, não se pode esquecer que o cálculo do fluxo de caixa descontado apresenta resultados futuros trazidos a valor presente, mediante aplicação de uma

taxa de desconto que contempla o custo de oportunidade do capital empregado na

remuneração das quotas sociais. Dessarte, sofrendo a mais valia futura redução a um valor presente, com base em um fator de risco, a rigor não se pode falar em participação do sócio dissidente nos lucros futuros da empresa. (grifo da autora).

Outro ponto crucial nessa questão, trazida por Marcus Elidius Micheli de Almeida

408

,

citado no voto do Ministro João Otávio de Noronha, é a justiça que deve existir no pagamento

do sócio retirante:

Quanto ao uso da metodologia do fluxo de caixa descontado, trago a lume as considerações do Professor Marcus Elidius Michelli de Almeida registradas no artigo Sociedade Limitada: causas de dissolução parcial e apuração de haveres, em que o articulista não só defende a utilização do referido método como o mais justo para definir o valor devido ao sócio retirante mas também corrobora o entendimento adotado pela eminente relatora de que tal critério pode perfeitamente se compatibilizar com o levantamento de balanço de determinação. Confira-se: É inegável que a empresa possui um valor de mercado deveras superior ao que consegue obter numa simples análise contábil como se dissolução total fosse. A propósito, é oportuna a manifestação de Rocco, quando menciona que a partir do momento em que a organização dos vários elementos da produção atinge um certo grau de eficiência, o valor do complexo organizado é superior ao da soma dos diferentes elementos que o compõem. A apuração deve ser sempre da forma mais ampla possível, levando em conta o fundo de comércio, os bens corpóreos e incorpóreos, o goodwill da empresa. Justamente por tais motivos é que afirmamos que o critério de avaliação dos haveres deve ser melhor estudado, a fim de não trazer distorções, injustiças e verdadeiro enriquecimento sem causa, para um ou para outro sócio. No nosso entender, é necessário que o aplicador da lei, seja ele juiz, advogado, árbitro ou perito, volte os olhos para outros critérios de avaliação que representem o valor real e justo da sociedade, que muitas vezes pode ser apurado pelo critério de avaliação de empresa com base no fluxo de caixa descontado trazido a valor presente. É cristalino, em toda a literatura contábil e econômica, que o critério de fluxo de caixa descontado é hoje o melhor método para encontrar o valor da empresa, sendo uma tecnologia científica contábil.

Prossegue:

O entendimento de que o fluxo de caixa pode ser utilizado para a apuração dos haveres parece-nos acertado, tendo em vista que esse método aponta o valor do ativo da empresa, que é um dos elementos do balanço de determinação, e tem por finalidade apurar o valor da empresa da forma mais justa possível, conforme bem

aponta Martins: Na elaboração do balanço de determinação, o perito deve buscar um valor econômico justo para a empresa avaliada; em decorrência disto é possível a aplicação do balanço de determinação juntamente com o fluxo de caixa descontado, método amplamente utilizado em negociações de fusão e aquisições, que melhor revela a situação econômica e a capacidade de geração de riqueza de uma empresa. A tarefa mais complexa para o perito avaliador é determinar o valor do goodwill não adquirido, que será evidenciado no balanço de determinação, que pode ser apurado via fluxo de caixa descontado, que apura o valor da empresa de forma global, refletindo o valor dos intangíveis, que contribuíram para a geração de lucros e fluxos de caixa futuros409.

A justiça ao sócio retirante deve também ser sopesada com a vedação pelo

ordenamento jurídico brasileiro do enriquecimento indevido. Não pagar o justo significa o

aumento patrimonial ou da sociedade e, consequentemente, os sócios remanescentes ou dos

sócios retirantes. Também já se teve oportunidade de falar sobre o tema

410

:

Não obstante a posição do STJ quanto ao cálculo dos haveres, para se evitar o enriquecimento indevido do sócio retirante ou dos sócios remanescentes, deve-se chegar ao valor justo das quotas, que somente poderia ser, em nossa opinião, o valor a ser pago em caso de venda da sociedade, até porque a sociedade continuará a existir. Ou seja, não se tomaria somente o valor da sociedade liquidada, perseguindo-se o valor da sociedade em sua possibilidade de sobrevivência, abatido o eventual na operação de retirada do sócio (o que não pode ser confundido com o quantum a pagar na retirada do sócio).

Assim, a preservação da empresa não pode ser a qualquer custo, diminuindo o valor

investido (tempo, capital, expectativas etc.) pelos sócios. Não seria leal, correto e muito

menos a expectativa do sócio retirante, existindo patente ofensa/vício na manifestação da

vontade caso se entenda que a sociedade não deve pagar o valor econômico atribuído à

participação societária ao sócio.

Corrobora esse entendimento, citando a boa-fé objetiva, um dos alicerces do

princípio da segurança negocial, ainda lembrando que o laudo pericial poderia ser contestado

tendo em vista o princípio do contraditório e da ampla defesa, o voto do Ministro Paulo de

Tarso Sanseverino:

Chamou-me especialmente a atenção a nota técnica do Professor Modesto Carvalhosa em que é feita uma análise minuciosa acerca da questão em debate. Embora a análise seja feita na perspectiva ainda do art. 15 do Decreto n. 3.708/19, é examinada a possibilidade de utilização da metodologia do fluxo de caixa descontado, demonstrando estar em consonância não apenas com a nossa jurisprudência, mas também com os princípios da vedação do enriquecimento sem causa e da boa-fé objetiva, devidamente positivados no Código Civil de 2002. Eventuais incertezas, conforme bem ponderado pelo Ministro Villas Bôas Cueva, podem acontecer. Entretanto, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, elas podem ser identificadas e superadas. O importante é que a metodologia do fluxo de

409 ALMEIDA, Marcus Elidius Michelli de, 2012, p. 552. 410 BUSHATSKY, 2014, p. 642.

caixa descontado é a mais justa para aferição do montante efetivo a que tem direito o sócio retirante na dissolução parcial de uma sociedade limitada.

Por fim, com base na preservação da empresa e se não houver disposição contratual

sobre o tema (autonomia privada), não seria leal, correto e muito menos a expectativa dos

sócios remanescentes que a sociedade ficasse totalmente descapitalizada para o adimplemento

dos haveres. Nesse caso, invocando o padrão de conduta esperado às partes, bem como o

interesse primário da sociedade, haveria a possibilidade de realizar um parcelamento razoável

para preservar a empresa.