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PARTE II CONSTRUÇÕES TEÓRICAS

CAPÍTULO 8 SER PAI NO OLHAR DOS ADOLESCENTES-PAIS EM

8.1.6 Autoridade ausente, escola premente: a escola como substituto do pai enquanto

A instituição escola particular é, para os adolescentes, uma referência de autoridade. Muito mais do que a vocação para ensinar e o meio de obtenção de um diploma, ela representa um substituto para a autoridade paterna - promotora e garantidora de limites e de proteção – a qual eles não se sentem competentes para exercer.

(...) Alunos de escola particular tem mais limites (...). Escola pública, não (...) quando eu estudei no colégio público eu até reprovei de ano e não fazia nada, faltava aula, brigava, fazia um monte de coisa errada (...). Eu fui pra escola particular, ‘viche’, e a minha vida mudou completamente: passei, terminei. O professor de escola particular senta do lado do aluno, explica, se preocupa com ele (...). Eu estou querendo fazer isso [matricular em escola particular] com a minha filha. (Otelo)

Segundo um outro adolescente, a escola particular é também sinônimo de excelência em educação (o rapaz não referencia a qualidade do ensino) e o fato de poder oferecê-la ao filho é uma prova de amor.

(...) [meus pais] não me deixaram faltar nada dentro de casa, me deram do bom e do melhor. Me deram colégio particular enquanto eles puderam pagar. (Romeu)

Os adolescentes diferenciam a escola particular da escola pública que, assim como certos pais, falha no controle e na assistência que deveria proporcionar. A falta de limites encontrada na escola é vivida pelos adolescentes como abandono.

Um dos adolescentes relata que gostaria de ter sido criado com mais rigor, pois quando era criança sentia que a mãe não se importava com ele (sentimento que o acompanha até hoje). Afirma que a ausência de limites e a certeza da impunidade o levaram a cometer erros que poderiam ser evitados.

(...) Eu quero colocar a minha filha na escola particular porque lá os alunos têm muito medo da mãe, sabe?Já aluno de escola pública, não (...). Escola pública o aluno não tá nem aí, sabe? (...) Não é que eu era largado. É que a minha mãe nunca se preocupou muito assim comigo, sabe? Aí eu ia lá e fazia mesmo. Ela não ia ficar sabendo. (Otelo)

De fato, como mostraram Selosse e cols. (Selosse, 1997), o meio escolar, constitui uma situação de referência importante não somente em relação aos critérios de sucesso, mas também por oferecer um quadro relacional privilegiado entre os pares e os adultos e por oferecer elementos de comparação com os comportamentos do meio familiar.

Segundo Batista Neto e Osório (2002), a escola de hoje reflete a dificuldade do governo, da sociedade e da família para assumir um novo regime de convivência, após 20 anos de repressão. Apesar de vivermos num regime democrático desde 1985, ainda não pudemos estabelecer um modelo eficiente de convivência no qual estão inseridos de forma eficaz o respeito às leis, às regras e ao cidadão. Ainda não conseguimos substituir o antigo modelo do regime militar autoritário por um modelo que possibilite, aos que estão no comando (pais, professores e diferentes autoridades), discernir o autoritarismo do princípio de autoridade.

As profundas transformações pelas quais passou a sociedade ocidental tiveram início no século XVIII com a revolução francesa que eliminou, com “a morte do pai”, Luis XVI, a “hierarquia familiar”. Pelo mote “liberdade, igualdade e fraternidade”, o poder foi “repartido entre os irmãos”. As grandes mudanças sociais prosseguiram com a morte do poderoso “pater famílias” protagonizada pelos primeiros movimentos feministas e pela revolução de 1968 (que também teve início na França e inspirou movimentos sociais em todo o mundo). A partir de então, o pai perde o poder civil e simbólico associado ao seu papel biológico e ao seu status cultural.

Concordo com Selosse (1997) quando ele afirma que faltam aos jovens contemporâneos, figuras de referência, de autoridade e de interdições. O enfraquecimento do papel do pai, que alguns caracterizaram como “a morte do pai”, segundo o autor:

permitiu aos psicanalistas lembrar que de uma maneira estrutural o pai convidava à triangulação das relações entre as crianças e os seus genitores e que ele é também o representante da palavra do outro no conjunto dos discursos do sistema familiar. É ele quem faz obstáculo ao desejo de possessão da mãe pela criança. Mas além de seu papel de marido, ele confere à família um lugar no grupo e na organização social. É em torno dessa estruturação fundamental e deste posicionamento que se anunciariam o lugar da regra e o papel do interdito (Selosse, p. 405).

Para o psicosociólogo e educador, o enfraquecimento das referências à imagem do pai e da sua autoridade mudaram as relações dos adultos com as crianças. O novo modelo educativo baseado na crença de que se deve respeitar a iniciativa, a autonomia e a liberdade das crianças, na verdade culminou com um falta de regras num universo onde os jovens estão na impossibilidade de confrontar princípios, regras e representantes dessas interdições.

Fato curioso e não menos importante é a constatação de que os jovens entrevistados nasceram nos anos de 1987, 1988 e 1989, período em que ecoava o Movimento “Diretas Já”, que teve início em 1983 e foi a maior mobilização popular já ocorrida no Brasil, culminando com a volta do poder civil em 1985, com a aprovação da nova Constituição Federal em 1988 e com a realização das eleições diretas para Presidente da República em 1989. A “morte do outro pai”– regime político autoritário – seria mais uma explicação para a falta de pontos de referência dos quais esses adolescentes tanto se ressentem?

Embora a escola seja referenciada como um meio de obter um diploma, qualificação profissional e mobilidade social:

(...) eu ‘tô’ estudando ‘né’, que uma coisa que eu posso colher no futuro é o estudo (...) porque no futuro eu vou precisar do estudo, querendo ou não. (...) E também precisam mais assim de pessoa que tem mais escolaridade, ‘né’? E isso aí ‘tá’ me atrasando demais. (Iago)

(...) Se eu pudesse voltar no tempo eu estudaria bastante (...). ‘Por causa que’ se eu tivesse um estudo hoje, ficaria mais fácil pro meu pai arrumar um emprego pra mim (...) Se eu tivesse pelo menos acabado o segundo grau seria mais fácil pra mim. (Romeu)

para os filhos dos adolescentes, as tarefas que a escola deve exercer, segundo eles, são mais amplas. Além das funções que se espera normalmente que a escola cumpra – como a capacitação do aluno para o desenvolvimento das suas potencialidades, sua qualificação para o mundo do trabalho e para exercício consciente da cidadania – ela deve também substituir o adolescente-pai no exercício da autoridade para o qual ele não se sente competente.

A discussão sobre a questão da autoridade, dos limites e, sobre creditar à escola ou à família a responsabilidade pela formação moral das crianças, encontra respaldo nos trabalhos de um dos maiores especialistas do país em psicologia moral, o francês, radicado no Brasil, La Taille.

O pesquisador propõe (2002) uma tradução técnica da palavra “limite” no campo da psicologia moral, ampliando o seu sentido e analisando-a sob duas dimensões. A primeira dimensão de análise concerne ao sentido de restrição da liberdade que faz parte do universo da moral e a segunda dimensão, ao sentido de superação, de vitória, de esforço e de auto-aperfeiçoamento, que faz parte da ética.

A partir de um diálogo que realiza entre os diferentes autores os quais discutem a questão moral de forma diferente – Durkheim e Freud acreditam que ela é imposta de fora para dentro e atribuem valor positivo à hierarquia entre criança e o adulto, Piaget preconiza que são as relações de cooperação e não de obediência, que legitimam a moral e, assim como Kolberg, entende que a moral não é meramente interiorizada pela criança,

mas depende de uma atividade sui generis de construção, que consiste em erguer-se de níveis inferiores para níveis superiores; LaTaille conclui que há um concenso segundo o qual, o desenvolvimento moral é um processo jamais terminado que implica na superação de limites.

Embora as restrições variem de uma sociedade para outra e de pessoa para pessoa, algumas são comuns a todas as sociedades (como a proibição ao incesto, ao assassinato, à mentira, etc.). Ainda que os limites restritivos: o dever, a disciplina, a obediência, o respeito pela autoridade, tenham estado sempre presentes na educação de crianças e dos jovens desde o princípio da civilização, atualmente a questão da falta de respeito aos limites pelas novas gerações, tanto na escola como na família, ocupa o centro das discussões de especialistas e de leigos no assunto.

Freud (1929/1974) já alertava que o preço que se paga para viver em uma comunidade organizada é um certo mal-estar psicológico decorrente das coerções exercidas pela sociedade e da nostalgia pela liberdade perdida. Segundo o autor, a lei tinha que ser dura o suficiente para ser temida, mas também tinha que estar permeada pelo afeto para ser seguida. O futuro de uma sociedade sem lei e sem pactos sociais, segundo o pai da psicanálise, seria o caos e a violência.

Segundo La Taille (2002), o sintoma contemporâneo dos jovens e das crianças em relação à falta de respeito aos limites podem ser explicadas por questões de ordem social como: a própria falta de limites dos pais e dos educadores, o individualismo, a fragilização das relações sociais, o isolamento, o enfraquecimento da família e o medo de ser autoritário.

Também para Outeiral (2003) e Araújo (2006), a falta de limites é uma das grandes perdas do adolescente. O limite contribui para a organização mental e a criatividade, e a falta dele impede o adolescente de exercitar sua capacidade de pensar, de ser criativo e agir com espontaneidade: “o limite significa a criação de um espaço (e um tempo) protegido dentro do qual o adolescente poderá exercer sua espontaneidade e criatividade sem receio e riscos, tanto para si como para os outros”. (Outeiral, 2003, p. 30).

La Taille lembra que para que os limites restritivos sejam respeitados, eles devem fazer sentido para as crianças e adolescentes. Para o psicólogo, a imoralidade é a falta

de projetos, de desespero existencial ou de mediocridade de sentidos dados à vida. A crise das questões morais e éticas que nos afligem teria relação direta com a violência e o desrespeito. Essa crise, segundo o autor, afeta todas as relações sociais, inclusive as que unem as famílias e as escolas, as quais estão constantemente delegando umas às outras as responsabilidades pela falta de autoridade e de limites dados às crianças e adolescentes. Segundo LaTaille, as duas instituições têm igual importância para a formação ética dos jovens, e um trabalho de cooperação entre as famílias e as escolas é a única maneira de resolver esse impasse.

A relação de autoridade na família ou na sala de aula deve basear-se no sentimento legítimo de que os pais ou professores devem ser reconhecidos como pessoas que detém conhecimentos verdadeiros e necessários ao pleno desenvolvimento das novas gerações. Desta forma, a moral (respeito pelo outro) e os projetos éticos de crescimento pessoal e social representarão valores preciosos. A criança, no início, depende da referência das figuras de autoridade e, quando vai conquistando a autonomia se liberta gradualmente desta referência.

Póvoa (2003) concorda que a habilidade em estabelecer regras e valores para crianças e adolescentes e permitir atos de negociação estão relacionadas à autoridade. Em uma relação que se estabelece com autoridade – em contraposição ao autoritarismo, predomina, segundo a autora, um fluxo de afeto que assegura a proteção.

É por essas figuras de autoridade, referência e proteção, representadas pelos pais ou pela escola, que os jovens entrevistados para esta pesquisa não cessam de clamar. Barus-Michel (1987), salienta que a maior angústia do sujeito consiste na perda de referência. E mais do que a referência paterna, o sujeito deseja o acesso ao sentido. Segundo a autora, para justificar a sua existência e evitar o sofrimento, experimentado na trajetória existencial, o sujeito deseja dar sentido ao que ele é, ao que ele faz, à sua experiência e às suas relações com os outros (Barus-Michel, 2004). Essa existência estaria ligada à possibilidade de pertencer a um grupo, a uma instituição, que organiza as relações do sujeito e estabelece a sua prática. Segundo Barus-Michel, os atores sociais se reconhecem por meio da instituição à qual estão filiados, que lhes proporciona status, define papéis, regras e relações sociais.

A conquista da autonomia – que consiste em ser capaz de atribuir a si próprio as leis ou restrições – que é uma das principais tarefas da adolescência – assim como o acesso à cidadania, encontram-se bloqueados para esses jovens, pois, além de não acreditarem em seu potencial, não dispõem de figuras de referência e de identificação, sentindo-se incapazes de participar da construção e da negociação de regras morais e normas sociais.

Se a família não consegue cumprir essas funções – autoridade, referência, proteção, garantia de pertencimento e de respeito em relação às regras – é compreensível que o apelo seja dirigido à escola (como foi o caso de muitos dos adolescentes desta pesquisa), ao exército (como também apareceu em alguns discursos), ou em uma situação limite, ao tráfico, como, infelizmente, não cessamos de constatar no nosso cotidiano.

CAPÍTULO 9 IMPASSES E POSSIBILIDADES DA PARENTALIDADE DE