• Nenhum resultado encontrado

PARTE II CONSTRUÇÕES TEÓRICAS

CAPÍTULO 8 SER PAI NO OLHAR DOS ADOLESCENTES-PAIS EM

8.1.1 Pai é o chefe da família que abastece a dispensa

Depois que vira pai você tem (...) como posso dizer, uma boca pra dá de comer. (Ariel)

Foi unânime entre os adolescentes entrevistados, a visão de que a função de pai está invariavelmente associada ao seu papel de provedor e de chefe da família. Essas concepções, atravessadas por estereótipos de gênero, atribuem à figura masculina poder e direito à dominação da família, marcando a superioridade do sexo masculino em detrimento do feminino. O trabalho aparece sempre como uma obrigação viril através da qual o adolescente-pai se impõe no meio familiar. Ele representa um marcador de masculinidade e, assim como a paternidade, promove o adolescente à condição de adulto. Essa exigência apresenta-se como um paradoxo, se pensarmos que, na maioria das vezes, esses adolescentes são oriundos de famílias nas quais é a mãe, geralmente, a principal provedora da família, quando não é a única. Outra contradição reside no fato de a força do mito do pai provedor colocar-se como um imperativo de produção num momento em que o adolescente ainda não tem condições de exercer esse papel. Essa

exigência pode levar o jovem à inserção no mercado marginal de trabalho, como explicou um dos adolescentes que trabalha com o comércio de DVDs pirata:

(...) É o pai que tem que dar a educação massa pro filho, tem que trazer as coisas pra dentro de casa (...). Tenho medo de faltar alguma coisa pra minha filha, sei lá (...) A gente que mexe com DVD tem a preocupação de perder as nossas mercadorias, que são ‘ilegal’, ‘né’? Os DVDs são piratas. (...) mas se um dia pegar e a gente perder tudo? (Antônio)

As falas de outros adolescentes reforçam a idéia de que o pai deve ser o provedor responsável pela subsistência da família:

(...) O pai tem que dar sustento. (João)

(...) Minha preocupação maior é de não faltar nada pra menina entendeu? Inclusive esses dias minha esposa tava falando: “Você ‘tá’ sem bermuda”! Aí eu falei: amor, e minha filha? Eu visto qualquer coisa, um chinelinho ali, outro aqui, mas e ela? Ela vai ‘cresce’ (...) mas mais pra frente vai ter que comprar mais, vai ter que comprar mais leite Ninho (...) Eu tenho que me preocupar com isso agora. (Romeu)

O mesmo adolescente imputa ao pai, além da função provedora, o papel de chefe responsável pelas decisões famíliares:

(...) o homem tem que ‘tá’ ali pra poder botar comida dentro de casa, botar leite, botar arroz e feijão (...) É ele que abastece a dispensa! (...) O pai é um administrador da família (...) É ele que vai ver quanto é que você vai gastar na compra, o que você vai comprar, é ele que vai ver o que tem que comprar, é ele que vai decidir tudo, praticamente, ‘né’?(Romeu)

A função de chefe da família aparece também atribuída ao pai, no discurso de outros adolescentes:

(...) Ser um pai é ser tipo o chefe da família, ‘né’? No caso só mora, eu, minha mulher e minha filha, no caso eu vou ser o chefe da família, ‘né’? Que eu sou o pai, eu sou o homem (...). Sou o mais importante da família (...) tem que guiar (...). A pessoa que trabalha, tem que estar lá, ‘né’? (Antônio)

Apesar de o papel de provedor da família ser uma função assumidamente masculina e exercer uma atividade remunerada ser uma condição indispensável para o exercício pleno da parentalidade, de maneira geral, como lembram Heilborn e cols. (2002), a inserção do trabalho na trajetória de vida dos adolescentes depende mais da sua condição de classe do que da paternidade. A perspectiva da assunção de uma identidade masculina, associada às necessidades reais de subsistência dos adolescentes de classes populares, termina, segundo os autores, por priorizar a busca do trabalho em detrimento da trajetória escolar, mesmo antes de os jovens se tornarem pais.

Todavia, a associação do papel de pai à função provedora é uma tendência emblemática observada na literatura sobre a parentalidade na adolescência (Almeida & Hardy, 2007; Cabral, 2003; Engle & Leonard (citados por Almeida e Hardy, 2007); Piccinni, 2002; Trindade & Bruns, 1999 e Trindade & Menandro, 2002).

A idéia do pai associada ao seu papel provedor tem, segundo Parseval (1981), matrizes primitivas. No clássico trabalho sobre a paternidade – evolvendo vários tipos de pais ocidentais: “primíperos” (neologismo criado pela autora), pais de muitos filhos, homens estéreis que se tornaram pais por meio de inseminação artificial de suas mulheres, doadores de esperma e homens que não querem ser pais (vasectomizados), a autora associa reflexões etnológicas e psicodinâmicas de inspiração na psicanálise e explica que a concepção do pai como provedor está relacionada à idéia do esperma como vetor da paternidade. As diferentes teorias sobre a paternidade mostram que, de acordo com o continente, as épocas, as culturas e as ideologias, cada sociedade atribui um valor diferente aos vetores biológicos: esperma, sangue, placenta e leite, que estão envolvidos na parentalidade.

Na sociedade ocidental há, segundo a autora, um paroxismo do coito fecundante. Durante a gravidez e o período de amamentação, porém, o pai é excluído e eliminado do contato com o bebê. Crenças do nosso sistema de representação dos papéis dos sexos na procriação têm força preponderante nesse processo. Uma idéia muito difundida embora errônea atribui, por exemplo, às relações sexuais durante a gravidez riscos ao bebê. No que concerne à amamentação, a presença do pai é considerada inútil visto que ele não é um fornecedor de leite e, portanto, está excluído do processo, no qual um vínculo profundo normalmente se estabelece com a mãe.

O mesmo não ocorre em outras culturas. Dentre os inúmeros exemplos apresentados por Parseval (1981), nos quais é atribuído ao pai, através do esperma, a função de nutrição do bebê durante a gravidez da companheira, se encontram os índios txicanos do Mato Grosso do Sul. Segundo essa etnia, o sêmen paterno é o único componente do embrião. Os nativos vêem como prova disso, a existência do cordão umbilical que consideram uma prova concreta do vínculo com a substância do pai. Segundo eles, é necessário praticar cópulas repetidas durante a gravidez para favorecer o crescimento da criança e evitar o aborto espontâneo. A mãe é considerada apenas um “continente para abrigar a criança”. Além do pai principal, há diversos “co-genitores” que contribuem com a doação de esperma para que a criança não corra o risco de se desenvolver inadequadamente.

Entre os índios mojaves, funciona também o sistema de co-genitores. Entretanto, a identidade do pai da criança não é determinada pelo coito fecundante. A identidade do feto pode ser radicalmente modificada, se a mulher tiver relações sexuais repetidas durante os primeiros meses de gravidez, com um homem diferente do que a fecundou. Os mojaves acreditam que quanto mais esperma o pai coloca no embrião, mais ele o forma à sua semelhança. Na prática, o verdadeiro pai é aquele que é reconhecido socialmente por todos, é aquele com quem o filho se parece, o “pai nutriz” (in útero). Devereux (citado por Parseval, 1981), observa que raramente o “impregnador” original reivindica a paternidade de uma criança que ele gerou, pois o verdadeiro pai pertence ao “pai da gravidez”.

Uma civilização africana , os samos do Alto Volta, tem também uma interessante teoria sobre a concepção. Ela atribui ao mesmo tempo um papel à “água do sexo da mãe” (um coágulo que vai formar o corpo, o esqueleto e os órgãos da criança) e à “água do sexo do pai” (o esperma que dentro do corpo da mãe se transformará em sangue para a criança). Nessa cultura, é o futuro pai, contrariamente ao que ocorre nas nossas sociedades, quem vai perceber em primeiro lugar quando uma relação sexual foi seguida de uma fencundação, mediante sintomas físicos como, por exemplo, a fadiga após a concepção, sonolência e dores nos joelhos e cotovelos, próximas a dores reumáticas. Como observa Parseval (1981), essa é uma situação exatamente inversa à que ocorre em nossa cultura, onde os sintomas de reconhecimento da gravidez, como, por exemplo,

enjôos, cansaço, sono exagerado e aumento do volume dos seios são atribuídos à mulher.

Segundo a pesquisadora, o “expectant father” pode conhecer, tocar e nutrir (no sentido psicológico e biológico) seu filho, pelo ato sexual praticado durante a gravidez. Essa participação do pai – que dá ao filho algo dele próprio19 – é muito importante neste momento durante o qual a capacidade de sonhar é factível de mobilização.