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Baixos custos de acesso e baixos riscos

2.3 OS MOTIVOS QUE LEVAM AS PESSOAS A LITIGAR E A LEGISLAÇÃO

2.3.1 Baixos custos de acesso e baixos riscos

O primeiro dos motivos para levar os conflitos ao Poder Judiciário observado na pesquisa são os baixos custos de acesso e os baixos riscos de se buscar a solução dos conflitos judicialmente. Nesse sentido, os Juizados Especiais, com destaque para seus regramentos especiais quanto à necessidade de patrocínio por advogado, e a possibilidade de obtenção de Assistência Judiciária Gratuita funcionam como grandes incentivadores das demandas originadas pelos baixos custos de acesso e baixos riscos relacionados ao Judiciário.

Por outro lado, a oferta de serviços advocatícios e as modalidades de competição realizadas nesse mercado teriam o desiderato de incentivar ainda mais o litígio. É que, nos Juizados Especiais, apenas causas que tenham valor superior a vinte salários mínimos exigem a atuação de advogado no processo e, além disso, o profissional apenas seria obrigatório para recorrer da decisão singular.

Dessa forma, na hipótese de a decisão judicial ser desfavorável, os riscos em geral associados com o uso do Poder Judiciário são extremamente reduzidos, uma vez que, com a Assistência Judiciária Gratuita, os beneficiários desse instituto não serão obrigados a arcar com as custas do processo e o mercado de serviços advocatícios, segundo Santos Filho e Timm (2011, p. 53), tem demonstrado a utilização, em larga medida, do contrato de êxito, pelo qual o cliente apenas assume obrigação pecuniária com o advogado se o julgamento for

favorável, hipótese em que deverá dar parte da quantia recebida com o processo judicial para o advogado e, em regra, apenas quando efetivamente receber o valor da parte ré.

Nesse sentido, sequer existe no caso o risco de o indivíduo precisar realizar um pagamento adiantado para o advogado, que irá patrocinar a causa, de parte do valor que pode vir a receber com a ação judicial, adiantamento que poderia, inclusive, vir a ser superior ao valor recebido ao final, consideradas as incertezas existentes acerca da duração do litígio no Poder Judiciário, o que o incentivaria a fazer um melhor juízo entre o benefício esperado e custo esperado. Esse incentivo, portanto, é anulado pela possibilidade de o indivíduo apenas realizar o pagamento pelos serviços ao receber o proveito da ação judicial.

Portanto, para os litigantes que possuem essa motivação para buscar o Poder Judiciário, a ausência de custos iniciais do litígio, ausência de custas judiciais e a possibilidade de surgimento da obrigação de pagar pelos serviços advocatícios somente em caso de procedência da ação acabam funcionando como incentivo para o incremento da litigiosidade sem que as partes, agindo racionalmente, precisem realizar uma análise de custo e benefício. Nesse sentido, parece oportuna a transcrição de duas das entrevistas obtidas na pesquisa (SANTOS FILHO e TIMM, 2011):

PF15RS: O que que o pessoal pensa assim, como não há um custo inicial, não custa

tentar; vale a tentativa, caso não seja ganho acredito que não vai ser cobrado e sim apenas, mas é o que os advogados comentam, apenas se a causa for ganha paga-se uma parcela do valor (p. 53).

Adv4PA: Eu acho que nessas demandas, principalmente de juizados, acho que é o

mais fácil, o mais barato, é o mais acessível, porque quando são nas outras demandas de maior valor já tem custo, então todo mundo [pensa]: ah, dá pra fazer, sempre que chegam para uma consulta, ah, podem ser no juizado, tem custos? [...] As pessoas que chegam em mim para ajuizar uma ação aí elas querem saber que se não for no juizado elas perdem o interesse, porque elas vão querer pagar custos, pré- pago e tudo o mais. Então eu vejo que isso facilita (p. 55).

A primeira resposta foi dada por uma pessoa física entrevistada no Estado do Rio Grande do Sul e indica como a ausência de um custo inicial pode funcionar como um incentivo para o aumento de litígios, bem como o funcionamento do mercado de serviços advocatícios. Por sua vez, a segunda resposta, obtida de um advogado no Pará, além da ausência de um custo inicial como incentivo, mostra que, quando custos iniciais estão associados à judicialização do conflito, os interessados podem deixar de fazê-lo.

Doutra forma, essa motivação também pode ser aplicada para os réus das ações judiciais na medida em que, respeitadas as especificidades existentes entre os diferentes tipos de litigantes, podem excluir da sua análise custo-benefício os custos relacionados ao processo e, em larga medida, se não totalmente, os custos com advogados, entre outros, o que pode

funcionar como incentivo para que deixem de resolver potenciais conflitos pela barganha privada ou acordos no âmbito do próprio Judiciário.

Nesse sentido, se os custos de deixar o processo judicial ter seu curso normal são inferiores aos custos para negociar com o autor da ação e cumprir a obrigação final resultante, considerando-se, ainda, eventual condenação, é racional para o réu deixar que o processo vá a julgamento ao invés de incorrer em custos para evitar a judicialização do conflito.

Por outro lado, os magistrados entrevistados, de acordo com os pesquisadores, externam uma percepção de que os cidadãos que são incentivados pelos baixos custos para a litigância, usualmente, apresentam demandas com fundamentos. Ainda assim, os entrevistados entendem que deve haver mais critérios para a concessão do benefício da Assistência Judiciária Gratuita.

Quanto à legislação, duas normas atuam como principais incentivadoras do litígio como se viu, ainda que outras possam, de maneira indireta, contribuir para tal, quais sejam, a regra que estabelece a Assistência Judiciária Gratuita – AJG e a lei que criou os Juizados Especiais. Não é possível, entretanto, desconsiderar o papel que o modo utilizado para a implementação dos Juizados Especiais e as próprias decisões judiciais possam ter sobre a estrutura de incentivos.

Dessa forma, a Lei 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, estabeleceu as normas para a concessão da AJG, considerando-se “[...] necessitado, para os fins legais, todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família” (parágrafo único do art. 2º), devendo, para fazer jus ao benefício, apresentar “[...] simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família” (art. 4º), presumindo-se pobre quem o afirmar, salvo prova em contrário, sob pena de pagamento do décuplo das custas devidas (§1º do art. 4º).

O dispositivo que atribui a pena de pagamento do décuplo das custas judiciais em caso de declaração de pobreza que não corresponda à situação econômica do signatário deveria ser suficiente para evitar que houvesse abuso do instituto, no entanto, para que essa ameaça fosse crível a fim de desestimular a conduta, deveriam as decisões judiciais efetivamente condenar aqueles que, após prova, não possuam situação econômica apta a enquadrá-los como hipossuficientes ao pagamento em décuplo das custas.

No entanto, em pesquisa de jurisprudência realizada no sítio eletrônico do Tribunal de Justiça do Distrito Federal pela aplicação do art. 4º, § 1º, da Lei 1.050/1950, nos dois casos encontrados14, apesar de afirmar-se textualmente que o interessado não pode ser considerado juridicamente pobre, não houve condenação ao pagamento em décuplo das custas judiciais. Dessa forma, ainda que a legislação estabeleça punição para o abuso do direito, se a punição não for aplicada pelos órgãos jurisdicionais, é racional que a parte interessada tente obter o benefício da Assistência, o que ilustra como as decisões judiciais podem ser utilizadas para alterar as estruturas de incentivos dos agentes.

Por sua vez, os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, no âmbito estadual, foram criados pela Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, enquanto, no âmbito Federal, foram criados pela Lei 10.259, de 12 de julho de 2001. Considerando-se, entretanto, que a sistemática dos Juizados Federais segue a dos Estaduais, limitar-se-á a tecer considerações sobre a primeira. Assim, a primeira regra que merece consideração neste tópico, é a inscrita no art. 9º da Lei 9.099/1995, que estabelece a dispensabilidade dos advogados nas causas de até vinte salários mínimos.

Essa regra reduz os custos dos agentes interessados em litigar, seja pela desnecessidade de contratação de um advogado com o surgimento da contraprestação associada, seja pela eliminação, em alguns casos, e redução, em outros, dos custos de transação com o advogado a ser contratado. Buscar um advogado se torna mais barato.

É que, em um cenário em que se passa a ser facultativo o uso dos advogados em determinadas demandas, para competir com outros advogados e incentivar os potenciais clientes a utilizarem seus serviços, o profissional precisa de preços mais competitivos ou serviço diferenciado, invertendo a ordem que antes se estabelecia, qual seja, qualquer um que precisasse ou quisesse buscar o Poder Judiciário dependia da prévia contratação de um advogado, que, por sua vez, podia impor preço mais alto, ante à existência de um monopólio do ius postulandi, o que, com os Juizados Especiais, restou mitigado.

Mencione-se, nesse ponto, que outras políticas públicas potencialmente influenciaram o estabelecimento das regras de mercado de oferta de serviços jurídicos atualmente em vigor, com destaque para aquelas que ampliaram, intencionalmente ou não, a quantidade de profissionais disponíveis no mercado, como o aumento das autorizações para abertura de cursos superiores observado nos últimos anos. De acordo com Barros (2012, p. 9), eram 130 cursos de Direito em 1980, passando a 235 em 1995, já em 1999, a seu turno, o número

atingia a quantidade de 362 cursos autorizados pelo Ministério da Educação, mas foi nos anos 2000 que houve a maior expansão. Em 2004, a quantidade de cursos de Direito em funcionamento passou dos 820 e, de acordo com o Portal do Ministério da Educação (BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2012), atualmente, são 1.247 cursos de Direito autorizados a funcionar.

A despeito disso, a Lei 9.099/1995 estabeleceu, em seu art. 41, § 2º, a obrigatoriedade da representação por advogado para a interposição de recursos, o que pode funcionar como um desestímulo às partes para recorrer, uma vez que, diferentemente do que se observou até aqui, acrescenta-se um custo ao processo. No entanto, essa obrigatoriedade tem a função de impor à parte a aferição do benefício esperado com o recurso em relação ao custo de ser patrocinado por um advogado, ainda que vigorem as regras de mercado de oferta desse tipo de serviço antes mencionada.

É que a parte que não tenha sido inicialmente assistida por advogado deverá considerar o benefício esperado do recurso, aumento do valor a ser recebido com a ação ou redução da obrigação determinada pelo juízo singular, em relação ao custo do advogado, tendo em conta, ainda, a probabilidade de reversão da decisão a que se pretende recorrer. Assim, se a probabilidade de reversão for muito baixa ou o ganho decorrente da reforma menor que os custos com o advogado, a parte tenderá a não recorrer.

Outro aspecto previsto nessa Lei também funciona como desestímulo ao recurso e, ao mesmo tempo, incentivo à litigância. Para aqueles que não podem, por qualquer razão, fazer uso da AJG, a norma estabelece que não haverá condenação em primeiro grau do vencido ao pagamento de custas e honorários advocatícios, o que ocorreria apenas em sede recursal e caso o recorrente seja também sucumbente, nos termos do art. 55 da Lei 9.099/1995. Assim, na hipótese de as custas influenciarem a apresentação do litígio ao Judiciário, a parte fica estimulada a apresentá-lo e não recorrer da decisão de primeira instância.

Por fim, registre-se que, ao optar pelo litígio em decorrência dos baixos custos e riscos, não se pode dizer que o agente está agindo irracionalmente, uma vez que a opção apenas espelha a sua estrutura de incentivos, podendo o legislador e o formulador de políticas públicas, caso entendam que essa motivação não é desejável, adotar ações que a inibam.