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2. PRECEITOS LIGADOS À IDÉIA DE NACIONALIDADE

2.5 Regras de reforço

2.5.4 O espaço das regras de reforço

2.5.4.1 Base para a discriminação

Como dito ainda no capítulo anterior, a nacionalidade distingue-se – juridicamente, ao menos – pela discriminação. Antes de tudo, é um traço distintivo que separa os nacionais de todos os demais elementos171 considerados – e liga a isto repercussões jurídicas.

Quando o ‘elemento’ considerado é o homem, tal discriminação é por princípio intolerável – ainda que ela exista e seja, tal existência, um fato da mais alta relevância. Entretanto, nesta dissertação considera-se outro ‘elemento’ – a corporação, pessoa não humana. Convém investigar se isto muda a abordagem da questão; e, se muda, então examinar a premissa de que a discriminação, se aplicada às corporações, é também excepcional.

A corporação é um centro de imputação normativa172. A ela se agregam

fenômenos da realidade jurídica: ela adquire direitos, ela assume deveres – e é capaz de perseguir aqueles e responder por estes. Se uma corporação estrangeira atua sem qualquer laço formal com

171 Diz-se “elementos” porque, como deve já estar claro, a nacionalidade é um atributo não apenas do homem ou

mesmo de pessoas; é possível cogitar da nacionalidade de embarcações e aeronaves, por exemplo.

172 Como já dito, esta expressão é trazida por Comparato (1983, p. 268) ao abordar a teoria kelseniana sobre a

a autoridade estatal nacional, não pode ser submetida às repercussões previstas na ordem jurídica respectiva. Este alheamento determina sua insujeição à soberania do estado considerado; alheamento que, ao contrário do que ocorre com a pessoa humana, não está ligado à presença. Este é um dado relevantíssimo: a corporação tem, por assim dizer, uma existência ubíqua: ela existe onde estão seus estabelecimentos, onde atuam seus agentes. Uma corporação pode ser alheia a determinada ordem jurídica e, ainda assim, atuar no “espaço” regulado por esta última; ou seja: há ‘presença’ e, ao mesmo tempo, insujeição jurídica. O adjetivo “estrangeira”, aplicado à corporação, designa antes de tudo sua insujeição à soberania nacional; não por acaso, as discriminações ligadas a esta condição são drásticas173: no caso brasileiro, p. ex., a atuação da

sociedade comercial estrangeira é simplesmente vedada, a menos que autorizada, sob condições específicas, pelo poder executivo federal. Portanto, quando se trata das discriminações decorrentes da aplicação dos critérios de nacionalidade, sua existência é não apenas justificável, mas necessária.

Todavia, estas considerações – que fazem sentido ao se considerarem as repercussões ligadas aos critérios de atribuição de nacionalidade às corporações – não se aplicam quando se tem em mente as regras de reforço. Aqui se trata de empresas de ‘bandeira’ nacional – mas que, em razão de certas características, submetem-se a condicionamentos ligados à idéia de nacionalidade. Estas corporações são sujeitas à soberania do estado que edita aquelas regras. Sua discriminação, portanto, não decorre de sua insujeição àquele poder soberano. Todos os comandos jurídicos que este estado dirige à ‘corporação nacional’ necessariamente a atingem, pela simples razão de que sua existência formal pressupõe o reconhecimento por este mesmo estado – e disto, por si só, decorre a possibilidade de lhes impor sanções jurídicas e, assim, submetê-las àqueles comandos.

Por outro lado, estas regras atingem as pessoas a que a atuação da corporação remonta – e, em última instância, os homens a cujos interesses estas pessoas se prestam. Neste caso, se estas regras discriminam as corporações – seja em função das pessoas a

173 No Brasil, regula a matéria o Decreto-lei 2627/40, art. 64: “As sociedades anônimas ou companhias estrangeiras,

qualquer que seja o seu objeto, não podem, sem autorização do Governo Federal, funcionar no país, por si mesmas, ou por filiais, sucursais, agências, ou estabelecimentos que as representem, podendo, todavia, ressalvados os casos expressos em lei, ser acionistas de sociedade anônima brasileira (art. 60)” Em idêntico sentido, referindo às sociedades comerciais em geral, o Código Civil, art. 1.134.

que remontam, seja em função de aspectos de sua existência que mostram sua vinculação ao território – discriminam também os homens a quem elas servem. Nesta hipótese, portanto, a discriminação seria tão intolerável quanto àquela ligada à nacionalidade mesma destes homens; nesta hipótese, portanto, tais regras deveriam ser consideradas ainda mais excepcionais.

Todavia, esta correspondência é ilusória: a discriminação entre homens nacionais e estrangeiros difere substancialmente daquela que decorre da incidência das regras de reforço. Isto porque estas regras – ainda que acabem por discriminar, em última análise, os homens a cujos interesses as corporações atendem – fazem-no em função da corporação e de seu papel como ator social. Como visto anteriormente, tais regras têm por alvo os homens (e a respectiva nacionalidade) por trás da corporação, ou os aspectos de sua existência factual que denotem sua vinculação ao território. Entretanto, o fato de que sejam estes os alvos só se justifica por força de sua relação com a corporação. Como dito, a existência – não apenas formal, mas factual e instrumental – desta última é o suporte de todos os preceitos ligados à idéia de nacionalidade. Portanto, a justificativa para a discriminação que decorre das regras de reforço remonta à própria corporação – ainda que, como dito, os homens a ela ligados sejam o alvo e mesmo o suporte destas regras174.

Assim, a discriminação ligada às regras de reforço justifica-se pela atuação das corporações na realidade175. Logo, distingue-se daquela que separa os homens entre nacionais

e estrangeiros – ainda que, naquele caso, os homens por trás da companhia possam ser o alvo e o suporte destas regras. Esta atuação, portanto, é o dado de que se parte ao considerar a existência – ou melhor, a possibilidade de existir – destas regras.

No caso das corporações, esta atuação é econômica. Disto decorrem dois aspectos a considerar: primeiro, os fins desta atuação; depois, os meios. Quanto aos fins, tudo 174 Esta afirmação não contraria as considerações feitas anteriormente. Como foi dito desde o capítulo anterior, as

corporações têm existência instrumental que remonta, portanto, aos homens a cujos interesses ela se presta. Entretanto, isto não significa que não tenham, também, existência jurídica e factual; e tampouco que não sejam entes cuja atuação, em si mesma, justifica as regras de reforço. Ao contrário: o caráter instrumental da corporação só é relevante na medida em que se verifica sua atuação na realidade, ainda que esta atuação remonte a interesses alheios. Não faz nenhum sentido cogitar dos interesses que explicam a existência de uma corporação cuja atuação é nula. Se estes interesses explicam as regras de reforço, é porque estas pressupõem que a atuação da corporação se conforma a eles.

175 “Não é a forma da sociedade que determina as cautelas da lei. É a natureza dos atos ou operações que ela pretende

realizar, na conformidade do seu objeto, que justifica a necessidade da intervenção do Estado” (MIRANDA VALVERDE, 1953, p. 353).

converge para estas noções: lucro e poder. Quantos aos meios, tudo se dispersa na multiplicidade inumerável das formas que remontam à livre iniciativa econômica, base do estado liberal176.

Diante da atuação das corporações, e diante destes seus aspectos, também o estado age, limita, condiciona – e faz tudo isto considerando os fins e os meios daquela atuação.

Ao considerar esses fins, o estado considera o lucro e, portanto, aqueles que o obtêm. Neste sentido, a noção de lucro, tal como a de corporação, sempre remonta ao homem. E estes homens podem não ser nacionais; e podem, mais ainda, não ter qualquer relação com o estado em cujo território a corporação atua. Isto pode, em determinados casos, ser indiferente a este estado; ainda que os lucros de uma companhia atravessem as fronteiras, os investimentos realizados, os tributos recolhidos, os empregos criados, as interações comerciais praticadas – tudo isto pode trazer benefícios que, por si só, permitem considerar esta atuação como ‘positiva’. Mas o oposto pode ser verdadeiro: a atuação desta companhia, ainda que traga todos aqueles benefícios, pode trazer malefícios supostamente maiores: a extração de recursos não renováveis, a criação de latifúndios, o perigo à soberania nacional e à segurança do povo, a supressão de valores e elementos culturais autóctones, etc. Que todas estas atividades dêem lucro a cidadãos nacionais, esta é questão pertinente aos limites entre atuação pública e privada na esfera econômica; que dêem lucros a estrangeiros, este é uma questão que envolve a idéia de nacionalidade.

Entretanto, mais do que os fins da atuação das corporações, podem-se considerar os meios empregados. Nesta hipótese, pode ocorrer que os resultados de sua atuação remontem à nação, mas os meios empregados não condigam com seus interesses. Uma companhia americana, p. ex., pode criar uma subsidiária na Índia, transferindo para lá suas linhas de produção e gerando emprego, rendas e tributos em prol deste estado e de seus nacionais177.

Neste caso, a legislação americana pode impor condicionamentos à atuação desta subsidiária, 176 Talvez seja acaciano definir o que se entende por estado liberal; talvez seja impossível. De todo modo, considera-

se nesta dissertação que todos os casos aqui apreciados – incluindo o brasileiro – são assimiláveis à tal noção. Mais do que isso: a esta noção ligam-se dois princípios cuja consideração, aqui, é fundamental: a livre iniciativa e a liberdade de associação. Nesta dissertação talvez seja desnecessário definir o que é estado liberal – até porque, como dito, tal definição seria, por si só, um tema mais complexo que este aqui enfrentado. Fundamental é esclarecer que, neste trabalho, a realidade considerada – aquela dos estados americanos e europeus, especialmente – se enquadra nesta noção; e que aqueles princípios lhe são decorrentes.

177O exemplo, obviamente, não é arbitrário. As preocupações nos EUA com os fenômenos conhecidos como “outsourcing” (contratação de empresas estrangeiras prestadoras de mão-de-obra) e “outshoring” (instalação de plantas de empresas americanas no estrangeiro, com vistas à contratação de mão-de-obra mais barata) têm sido marcantes (OUTSOURCING..., 2005).

ainda que esta seja formalmente uma companhia indiana178. Em suma: os fins da atuação da

companhia remontam a nacionais, na forma de lucros e poder; mas, ainda assim, os meios empregados não condizem com os interesses da nação179.

As regras de reforço, portanto, preenchem o espaço aberto pela reação estatal à atuação das companhias – cujos resultados e meios podem não condizer com os interesses nacionais. Este espaço, por sua vez, corresponde a uma parcela de um universo maior, a que se costuma designar de “ambiente regulatório”. O estado regula a atuação das corporações; e é aí, justamente, que se inserem as regras de reforço.