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A pessoa, já se disse, é o elemento nuclear a ser considerado no exame da nacionalidade. A personalidade é o suporte a que se liga a nacionalidade; esta, portanto, é um atributo daquela. Donde a conclusão, amplamente aceita pela teoria tradicional: se as corporações têm personalidade, a isto se liga sua nacionalidade.

Os termos desta relação, portanto, são claros: nacionalidade e personalidade – aquela é determinada a partir desta, à vista de elementos a esta ligados. Menos evidente é o conteúdo – e não apenas o conteúdo jurídico – de cada um destes termos. E ao se descer à complexidade inevitável de um e outro, para só então examinar aquela relação que os vincula, então esta relação, em si mesma, passa a ter contornos cada vez mais vagos.

Personalidade é o termo que designa a condição de sujeito de direito; neste sentido, pressupõe a ordem jurídica, a que necessariamente é referida. Este, precisamente, é o

enfoque das teorias objetivistas54: supõe-se o direito objetivo como realidade precípua, elementar;

este direito contém regras, que incidem sobre os fatos, dando origem a efeitos jurídicos; tais efeitos são direitos e deveres, pretensões e obrigações, ações e exceções. Neste esquema, a personalidade é mero efeito da incidência da regra de direito sobre um dado fato, que pode ser o nascimento do homem, o registro público da corporação, ou qualquer outro previsto nas normas jurídicas55.

Neste último sentido, personalidade é noção que pressupõe a ordem jurídica; ou seja: não tem existência a priori, mas é resultado da referência de determinada situação factual a comandos jurídicos. Estes comandos têm existência objetiva, enquanto a personalidade, ao contrário, existe como conseqüência lógica daqueles. Mas se pode supor outro sentido ao termo ‘personalidade’; pode-se compreendê-lo como um algo existente em si, vinculado à existência humana. Neste sentido, a personalidade não é uma concessão do direito, mas um atributo do homem, a que o direito pode até ser indiferente, mas que não pode suprimir. Mais ainda: neste sentido, a personalidade de que o homem é dotado difere substancialmente daquela atribuída às corporações; naquele caso, ela é um efeito natural da própria condição humana; neste, é um instrumento jurídico voltado a fins específicos, inevitavelmente ligados ao homem.

Como a noção de personalidade, a de nacionalidade também está envolta em grandes incertezas. A nacionalidade expressa-se, concretamente, no vínculo jurídico entre o estado e a pessoa – vínculo que determina discriminação, justamente porque as repercussões ligadas à nacionalidade decorrem precisamente da distinção entre nacionais e estrangeiros. Tal discriminação, entretanto, é algo em si questionável, na medida em que representa evidente exceção ao princípio da igualdade jurídica entre os homens: se todos são iguais perante a lei, não poderia a lei, em tese, discriminá-los por razões que ela mesma estabelece. Portanto, a nacionalidade supõe valores que a justifiquem; mais do que isso: é, em si mesma, também um valor.

54 Conforme dito na seção 1.2.1.

55 Pontes de Miranda (1983a, p. 354): “Toda personificação, ainda a dos homens, é efeito da incidência de alguma

regra jurídica R que diga ser sujeito de direito, em dadas circunstâncias, alguém. Há o suporte fático (em que estão essas circunstâncias e alguém) e a incidência da regra. A entrada desse ser como sujeito de direito já é efeito; a atribuição de personalidade resulta de se ver, por cima do sistema jurídico de que faz parte a regra jurídica R, que esse ser é pessoa”.

Portanto, aquela relação de se falava, que vincula os termos nacionalidade e personalidade, torna-se problemática. Se esta é o suporte para a atribuição daquela, sob que sentido se deve compreender o termo ‘pessoa’? Por outro lado, se a nacionalidade se expressa, ao mesmo tempo, como vínculo jurídico e como valor, a que elementos se pode recorrer para determiná-la? Note-se bem: se a nacionalidade é vínculo jurídico, e se também é valor, sua atribuição pode ligar-se não apenas a dados normativos, mas também a determinações axiológicas, teleológicas ou mesmo irracionais. Mais ainda: este vínculo retrata a subjetivação do direito objetivo, que assim se remete aos sujeitos cuja existência o explica e delimita. Se a atribuição da nacionalidade tem por referência o sujeito, o fato de que sua existência possa não restringir-se à sua personalidade – ou melhor, o fato de que esta apenas simboliza o vasto universo de eventos que perfazem aquela – torna-se um problema fundamental no exame das formas pelas quais se usa atribuí-la.

Este problema é especialmente relevante quando se cogita a nacionalidade das corporações. Pois, em relação a estas, não apenas a noção de personalidade é incerta, mas sua própria existência é posta em debate. Não que se negue sua existência; apenas se discute se sua existência pode ser, por assim dizer, equivalente à do homem. Há os que afirmam tal equivalência: embora distintos por sua natureza, tanto o homem quanto a corporação teriam suas existências referidas a uma mesma realidade objetiva; tal realidade, segundo a teoria institucionalista, é o meio social; já segundo o positivismo jurídico, é o próprio direito. Mas há os que negam a assimilação da existência da corporação à do homem; negam-se a admitir que aquela possa ter interesses próprios, que não se confundam com os de seus membros; e afirmam, portanto, o caráter instrumental da existência da corporação, que não é senão um meio para alcançar propósitos humanos. Entre estes está Ascarelli.

A existência, como noção juridicamente cogitável, só é irredutível enquanto referir-se ao homem. No universo jurídico, só o homem tem existência inquestionável, insuprimível, apodítica; tudo mais são abstrações que permeiam o convívio humano e que devem ser compreendidas, portanto, em consideração ao homem. Tais afirmações, no que se referem à corporação, são ainda mais evidentes: seu aparecimento está ligado a um contexto histórico específico, no qual ressaltam as razões concretas que determinaram seu aspecto jurídico, marcado pela separação patrimonial e pela possibilidade de pulverizar as formas de investimento; portanto,

estando a existência das corporações ligada a motivos palpáveis e óbvios, seu caráter instrumental ressalta.

E então, considerando que se trata, aqui, da nacionalidade das corporações, convém questionar: pode-se determinar a nacionalidade das corporações sem consideração a seus membros? A primeira resposta, quase intuitiva, é a seguinte: claro, desde o direito estabeleça critérios indiferentes a eles. Mas então se questiona: se a nacionalidade é também um valor56, este

seu aspecto não pode determinar que ela seja atribuída segundo elementos, por assim dizer, à altura da sua importância? Dizendo de outro modo: se a personalidade jurídica das corporações é um mero dado formal, que não reflete todos os aspectos de sua existência e que mascara os verdadeiros interesses que determinam sua atuação, a idéia de nacionalidade não pode desconsiderar sua personalidade, atravessando esta ‘membrana’ que envolve as corporações e atingindo aqueles interesses?

Esta questão perpassa todo este trabalho. A mera possibilidade de uma resposta afirmativa motiva esta abordagem. Tal possibilidade, aliás, não é puramente abstrata; ao contrário, é justamente diante de evidências concretas que será cogitada. Exemplo: porque a atribuição da nacionalidade está ligada a valores, há diversas regras de direito que impõem um reforço aos critérios para a sua definição, a fim de que aqueles valores sejam efetivamente observados; outro exemplo: quando o direito objetivo liga a nacionalidade das corporações apenas a aspectos de sua personalidade jurídica, sem considerar os interesses individuais a que atende, o próprio aplicador do direito, diante das repercussões ligadas à nacionalidade, pode lha atribuir sem considerar sua personalidade, mas sim aqueles interesses. No primeiro exemplo, o próprio direito concebe regras para reforçar, diante de valores específicos, a constatação do caráter nacional de uma dada corporação; no segundo, o aplicador do direito se permite fazer tal constatação, desconsiderando para tanto sua personalidade formal. Tais exemplos não nasceram

56 E é, como visto, necessariamente um valor, pois a razão para que o direito atribua nacionalidade a alguém, ligando

a isto repercussões específicas, necessariamente remonta a um fator alheio ao direito, já que o complexo de normas que determinam aquela atribuição, ainda que trespassem as diversas hierarquias do direito válido, não pode justificar- se por si mesmo, pois não é algo lógica nem juridicamente necessário. Tal necessidade, como se reconheceu, pode estar ligada a razões concretas – em especial de ordem econômica e social; todavia, tais razões não podem ser vistas como premissas lógicas a que se liga a idéia de nacionalidade, pois, se supõem fatores contingentes, não são, também elas, justificáveis a partir de si mesmas. Na verdade, o fato de que haja tais razões concretas é, em si, uma evidência de que existem tais valores – no sentido aqui considerado e já descrito – à base da idéia de nacionalidade.

da pura abstração. São concretos, reais. E são elementos fundamentais no âmbito da pesquisa que deu origem a esta dissertação.

A questão que se põe, fundamentalmente, diz respeito à existência das corporações – e ao fato de que sua existência, em toda a sua expressão, pode ser o alvo dos preceitos ligados à idéia de nacionalidade. Foi ressaltado, aqui, o aspecto instrumental desta existência; contudo, não se desconsidera seu aspecto factual – ou seja: sua realidade social, nas inúmeras formas de sua manifestação concreta. Se é considerado aquele aspecto instrumental, então é inevitável a consideração dos homens por trás da corporação; se é considerado este outro aspecto, é o fenômeno a que corresponde sua existência que é levado em conta. Diante da idéia de nacionalidade, naquele primeiro aspecto ressalta a nacionalidade dos homens considerados e, neste segundo, o espaço em que este fenômeno se projeta e a que, assim, se vincula. Em suma: a idéia de nacionalidade, investindo-se sobre a existência das corporações, pode considerar as pessoas a cujos fins ela atende, ou o lugar a que se vincula – e daí engendrar condicionamentos à sua existência.