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3 DOS IMPULSOS CULTURAIS A PARTIR DA VIRADA DO SÉCULO

3.5 BAUSCH: WORK IN PROGRESS E DISTANCIAMENTO/

Pretendo aqui lidar mais diretamente com a forma de trabalhar com o movimento da coreógrafa Pina Bausch, que se tornou a eminente representante da dança-teatro, a partir de

experiência, a disto, imediatamente através da razão.‖ Ver mais em: Friederich Schiller, A Educação Estética do Homem (2002, p. 91, carta XVIII).

112 Tradução nossa. 113 Tradução nossa. 114 Tradução nossa.

1973, com o grupo Dança-Teatro de Wuppertal. No artigo ―A produtividade do inacabado‖, do livro Pina Bausch: Wuppertaler Tanztheater, de Hedwig Müller e Norberto Servos (1979), são analisados os recursos estéticos empregados pela coreógrafa e sua maneira de tratar o realismo no palco, trazendo como característica principal a emancipação da dança através da compreensão de realidade em seu teatro de movimento. Em razão do imenso material teórico, histórico e biográfico já publicado sobre ela, aqui será feita apenas uma abordagem de seus recursos estéticos.

Inicialmente, o termo montagem/colagem foi uma característica determinante de estilo e esteve no centro das atividades artísticas das vanguardas históricas europeias, desde os anos 1910 e 1920, seja como uma revolta estética do dadaísmo, do futurismo ou do surrealismo, seja por motivos políticos, como inclusão direta da arte na vida real, como no caso da vanguarda esquerdista. Conforme Müller e Servos, a mera utilização do princípio montagem/colagem ainda não garante, por si só, uma modalidade inovadora e progressista da arte. Para eles, a categoria montagem encontra-se nos produtos da indústria do lazer, assim como nas reflexões teóricas de arte de Bertolt Brecht, Walter Benjamin e Ernest Bloch.

O processo de montagem/colagem em Bausch é fortemente caracterizado pelo emprego de meios de expressão da dança, pantomima, teatro falado e musicado, distribuídos em diversas categorias que evidenciam nítidas semelhanças ao conceito do teatro de Brecht. Porém, sem a pretensão didática direta, o gesto de apontar, a técnica do estranhamento/distanciamento, assim como o emprego específico do burlesco, estabeleceram- se cada vez mais como recursos determinantes de representação do Wuppertaler Tanztheater. Além disso, os motivos são tirados das experiências do dia a dia, servindo-lhes para a descrição de pessoas como elas realmente são, um recurso empregado por Brecht. Os motivos centrais que se repetem constantemente, de distanciamento, isolamento, luta entre os sexos, e falta de comunicação dos indivíduos num contexto de relações determinado por convenções e rituais, são apresentados ao espectador.

Em Bausch, arte e cotidiano não mais formam um antagonismo direto, uma vez que o repertório dos gestos foi tirado do cotidiano. A base da comunicação são os sinais corporais do cotidiano, que no palco adquirem uma linguagem própria (estranha/distanciada). Com isso, as ações se tornam comparáveis ao mundo de experiências concretas do espectador, causam

estupefação e forçam – por meio do recurso bauschiano da repetição115 – sua decisão a respeito do problema apresentado. Segundo Müller e Servos, a abolição da delimitação formal, como se evidencia na divisão de modalidades, a combinação de elementos do teatro falado e musical, de pantomima e recursos cinematográficos criam o espaço livre e necessário para se conseguir trazer subjetividade à representação. Assim, esta subjetividade atinge todos os envolvidos no processo artístico: primeiramente o autor, cujos próprios temores, desejos e necessidades também entram na peça; como também dançarinos/atores, qu e, devido ao modo coletivo de trabalho de Pina Bausch, são incluídos em maior grau como coautores. Finalmente essa subjetividade também atinge o espectador, convocando-o como participante, por meio da identificação. Müller e Servos advertem que a identificação tanto em Bausch quanto em Brecht não serve à produção de ilusão, e sim a uma participação emocional dos problemas, e não dos personagens. Dessa maneira, o exagero cômico-sério de situações rompe, ―no palco,

os limites do mero domínio de ‗complexos particulares de autores‘, e o meio de representar

amplia a problemática apresentada para o universal; ao mesmo tempo o distanciamento afasta

o espectador, cria reconhecimento‖116

(MÜLLER; SERVOS, 1979, p. 21).

O princípio montagem/colagem tem como pré-requisito o reconhecimento. São adaptações de partes da realidade que resultam num teatro de situações, que se concentra em fatos isolados ou fragmentos. Contra a pretensão da coerência, coloca-se a complexidade dos acontecimentos e a multiplicidade de associações possíveis no palco. Contra a perfeita interpretação de todos os detalhes, acentua-se a abertura da estrutura e a independência de cada cena. O que foi chamado por Brecht, na técnica de representação, a fixação do ―não-

porém‖, ou seja, a inclusão na representação não apenas de uma única maneira de

apresentação, mas também de outras variantes possíveis. Em Bausch, o ―não-porém‖

determina a peça inteira: ―As obras de Bausch são ‗inacabadas‘ num sentido positivo, uma

vez que não são fixas no seu desenrolar. O princípio do work in progress, que compreende a obra num permanente progresso, coloca o caráter de oferta das peças contra a pressão da conclusão (perfeição)‖117 (MÜLLER; SERVOS, 1979, p. 21). Princípio e fim não marcam os limites cronológicos de uma evolução de pessoas. O padrão da dramaturgia convencional de ação é abandonado em favor de uma sequência móvel de números, imagens movimentadas ou sequências cênicas. Os motivos centrais são divididos, parcelados, enfocados sob diferentes

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O conceito de Repetição desenvolvido na estrutura do processo de criação da coreógrafa Pina Bausch foi extensamente analisado por Ciane Fernandes em Pina Bausch e o Wuppertal Dança-Teatro repetição e transformação (2000).

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Tradução nossa.

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aspectos no palco. O processo da adaptação e assimilação dos temas significa uma aproximação de diversas e variadas direções tanto para a encenação quanto para a recepção. O caráter de improvisação e mostragem de exercícios continua intacto desde os primeiros ensaios na sala até a apresentação no palco, como variações para os respectivos e complexos motivos. A representação de problemas não está ligada à psicologia de pessoas, mas é criada de acordo com os princípios de associações livres de imagem e ação, que não estão interligadas obedecendo às leis das causas. Assim, cada vez mais deixa de existir a usual diferenciação de papéis entre atores principais e secundários ou entre solistas e o conjunto, como nas companhias de balé. Ao público não é oferecido nenhum protagonista para identificação. Dominam a valência dos intérpretes e a simultaneidade dos acontecimentos. Em lugar da representação de pessoas, o assunto e sua problematização vão se tornando o centro de interesse. É com o assunto que o espectador está comprometido. É na problematização que o espectador, participando, será incluído (p. 22).

Em Bausch, o prazer apenas passivo já é descartado pela recusa de perfeição técnica, conforme a disposição da experiência em work in progress. Para o lugar da perfeição na dança, de uma estética reduzida à autofinalidade, que tão frequentemente caracterizava a dança, vem uma afirmação realista e a urgência de sua apresentação. A utilização de recursos do teatro dançado para a finalidade de afirmações concretas e atuais visa conscientemente à decisão. Assim, o espectador também é obrigado a procurar seu interesse na peça em outras partes, além das que conhece usualmente. Ele não pode estar ligado ao desenrolar da peça, assim como também já o tempo deixou de existir como grandeza de desenvolvimento contínuo. O efeito de distanciar dos respectivos recursos, entre si, determina a dinâmica

interna dos acontecimentos. ―O interesse resulta por assim dizer por aspectos, por combinação

de cenas e de recursos contrastantes entre si, de uma variedade de curvas de interesse menores, que não se orienta para o clímax libertador‖118 (p. 23).

Müller e Servos revelam com destaque que o conceito de distanciamento é um recurso didático em Brecht e, em Bausch, ao contrário, não tem relação com o ímpeto do didático. O teatro de movimento não utiliza nenhuma fábula como chave central da apresentação, tampouco descreve a evolução de figuras. A meta declarada não é demonstrar a mutabilidade da realidade, e sim a transmissão de experiência; a peça não pretende conferir ao espectador soberania em confronto com a realidade, e sim a inclusão emocional como finalidade. O que conta é a espontaneidade e a fusão de palco e platéia. Um ―teatro de experiência‖ estruturado

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dessa maneira não conta tanto com o reconhecimento racional, conta sim com a imediata estupefação. Pina Bausch seleciona determinadas situações – como a luta entre os sexos – e faz com que estas se agucem cenicamente, expondo-as assim à experiência. Logo, as repetições que para muitos, frequentemente, chegam aos limites do tolerável servem para forçar a discussão:

Aqui a subjetividade ganha importância. O pessimismo de dúvidas e temores subjetivos, rejeitado pela crítica (mesmo nos casos em que se esconde atrás do cômico), torna exequível a urgência da problemática. Modificação é (quando é) motivada por necessidade experiente em lugar de compreensão racional119 (p. 24).

Torna-se evidente que, com isso, o estranhamento/distanciamento ganha outra posição. Se bem que – como no caso de Brecht – também o teatro de experiência ―tira tudo do gesto‖,

a acentuação se desloca: ―O gesto aqui é relacionado com a área das ações do corpo. Ele não

apoia ou contrasta uma afirmação falada, mas ‗fala‘ por si; ele é meio, mas também objeto de

representação‖120

(MÜLLER; SERVOS, 1979, p. 24). Como meio, o gesto aparece, por exemplo, na transformação direta de uma afirmação em sinais do corpo. Exemplo: um homem carrega uma mulher como um lenço em volta do pescoço, para demonstrar que lhe serve apenas de acessório decorativo. O físico é objeto quando é representado em sua limitação, quando toda a área de paixões humanas é demonstrada em seu adestramento, limitação e convenções. Com isso, o teatro dançado recorre a um setor importante de suas próprias possibilidades de representação e de afirmação. O corpo é apresentado – como luta de sexos, o corpo da mulher – como instrumento dirigível. Aquilo que antes existia no palco do balé (por exemplo, num Pas des deux onde o bailarino conduz a bailarina) é apenas delineado de forma crítica e referido como disciplina corporal:

O estranhamento/distanciamento faz com que a natureza interna se torne

evidente – de acordo com o princípio de Brecht. O geral, e comum do gesto

é desligado do seu contexto, é feito algo especial, tornando-se assim experienciável. Só que o objeto é a ―linguagem do corpo‖, a qual, devido à representação distanciada, é reconhecível, porém ao mesmo tempo parece estranho. Assim, o inequívoco, a naturalidade de gestos é anulada, a lógica das convenções é transposta121 (p. 25).

119 Tradução nossa. 120 Tradução nossa. 121 Tradução nossa.

Frequentemente, a evidência através do estranhamento/distanciamento acontece por meio do cômico, para o que, às vezes, são também utilizados recursos cinematográficos. O desenrolar de movimentos aparece ou em câmera-lenta, ou acelerado em slapstick (pastelão). O estranhamento/distanciamento cômico evidencia as pressões cotidianas, porém ocultando as necessidades reais das pessoas. O riso provocado pelo exagero na representação volta ao espectador, quando este reconhece que a realidade do comportamento no palco também é sua. O cômico nunca perde o mero efeito à custa de um personagem, sempre pode subitamente transformar-se em ―trágico‖. Também contrastes são concentrados num ponto: o público e o particular – na realidade, cuidadosamente separados – são reunidos num acontecimento. Por exemplo, um casal está na rampa, sorrindo amigavelmente, enquanto, pelas costas, se maltrata com pequenas maldades, como pisar, beliscar etc. Segundo Müller e Servos, na cena cômico- séria, o ideal (convivência harmoniosa) é desmascarado pela realidade (da guerrinha particular), como também o mundo das mídias de massas. O emprego de processos cinematográficos não é apenas um recurso estético, mas torna-se também conteúdo (p. 26).

Müller e Servos apontaram que, já em 1978, cada vez mais Pina Bausch recorria aos mitos do trivial do cinema hollywoodiano – o que de fato nunca abandonou em seu repertório: revistas em quadrinhos, hits musicais, ou meios semelhantes (opereta, revista), e contrastando-os com imagens da realidade. Principalmente, os esquemas de comportamentos interpessoais e as imagens-guia transmitidas, da beleza, do companheirismo e da felicidade, são reveladas através de estranhamento/distanciamento cômico. São denunciadas abertamente as exigências interiorizadas para a adaptação aos estereótipos dos meios como instrumento de adestramento, até um autoadestramento, que deve ser entendido inteiramente como corporal. Os motivos do gesto de apontar e do treino em convenções são elementos importantes. A lógica do mito, que, por exemplo, fixa a mulher no papel de ―vamp assassino de homens‖ ou

―mocinha ingênua‖, e que a reduz a um valor de mercadoria para o homem, é rompida (p. 26).

Para Müller e Servos, ao lado das inovações formais, porém, encontra-se uma delimitação quanto ao conteúdo. Os assuntos tratados são apresentados como fenômenos, sem indicação de suas causas.

Onde, por um lado, a subjetividade é trazida como qualidade, por outro lado História como grandeza concreta fica de fora. Os fenômenos descrevem o final, não a origem e as correlações. As figuras se encontram pode-se dizer no espaço vazio, desligadas de condições históricas ou sociais concretas. História aparece como metáfora na citação de Hits musicais de uma

determinada época (anos 1920, 30 ou 50) ou vagamente nos figurinos ou nos adereços [...] demonstra-se um estado do ―é assim‖, sem enunciar também suas causas ou em que ele transformou. As peças se passam todas numa sociedade moderna, não descrita em maiores detalhes. Responsáveis pelo adestramento, pela limitação de normas de convívio de pequenos-burgueses, são convenções difundidas pelos meios de comunicação de massa122 (p. 28).

As figuras da dança-teatro de Pina Bausch, por uma procura de sensualidade livre de temores e de convenções, fazem o rompimento. Carinho transforma-se em violência, e assim o cômico mostra seu fundo trágico. Nas convenções, o fracasso parece pré-programado. As relações, como também isoladas tentativas de fuga, seguem o caminho para o impossível. O pessimismo legítimo de temores e dúvidas subjetivos, que entra nas peças, perde terreno porque os esquemas de condutas indicados não são questionados quanto a sua origem e

função: ―Pelo fato de se ter tirado do objeto a sua qualidade histórica, este defende seu caráter

definitivo. Quando figuras – como no teatro dançado de Pina Bausch – agem sob coação,

impelidos por normas interiorizadas, uma saída ou ajuda parecem impossíveis‖123

(MÜLLER; SERVOS, 1979, p. 28)

3.6 KRESNIK: TEATRO COREOGRÁFICO EM BUSCA DE TEXTO POLÍTICO -