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2 CONCEITOS ENTRECRUZADOS NAS CULTURAS OCIDENTAIS

2.4 HIBRIDAÇÕES E MODERNIDADE

Os termos que antecedem e são equivalentes a hibridação normalmente são usados em referência a processos tradicionais de sobrevivência de costumes e formas de pensamento na pré-modernidade/modernidade; são eles: mestiçagem, sincretismo e crioulização. Em seu livro Culturas híbridas, Nestor Garcia Canclini propõe a construção da noção de hibridação para designar as misturas interculturais discutindo os vínculos e desacordos entre a modernidade e o modernismo. Para o autor, a pós-modernidade não substitui ou encerra a

modernidade, é apenas uma etapa em que se tenta superar tradições estabelecidas. ―A ‗descoleção‘ dos patrimônios étnicos e nacionais, assim como a ‗desterritorialização e a

reconversão‘ de saberes e costumes, foram examinados como recursos para hibridar-se‖ (CANCLINI, 2008, p. XXX).

Com o processo da globalização a partir de 1990, o atrativo do pensamento pós- moderno foi reduzido pelos efeitos da problemática global-local. Examinando processos de internacionalização e transnacionalização, e ocupando-se dos efeitos da globalização no sentido das indústriais culturais e das migrações da América Latina para os Estados Unidos, o autor constata as modalidades clássicas de ―fusão‖, derivadas de migrações e intercâmbios comerciais que resultam na expropriação de bens culturais por empresas turísticas e de comunicação. Sua conclusão, ao estudar movimentos de globalização, é que estes não só integram e geram mestiçagens, mas também estimulam relações diferenciadoras, segrega ndo e produzindo novas desigualdades.

Devido à fluidez das comunicações, existe a facilidade de apropriação de elementos de outras culturas sem absorvê-las plenamente. Nesse sentido, a teoria da hibridação tem de levar

em conta os movimentos que a rejeitam. Existem resistências que não provêm somente dos fundamentalismos que se opõem ao sincretismo religioso e à mestiçagem intercultural, e sim de outras formas de hibridação que produzem insegurança e conspiram contra a estima etnocêntrica das culturas.

Para Canclini, desde os anos 1990, a América Latina tem estado sem projetos nacionais, e vem apresentando perda na economia com a sucessiva queda da moeda em relação ao dólar. Os emblemas nacionais das moedas quase não representam a capacidade administrativa da nação. As tendências de abdicar do público em favor do privado, do nacional em favor do transnacional têm se acentuado desde então. Nos setores culturais, poucas fundações e ações mecênicas por parte de empresários, e em toda parte cada vez maior o fechamento de instituições públicas. O lugar dos atores nacionais vem sendo permanentemente ocupado por empresas transnacionais. Disso decorre uma perda de iniciativa que envolve o crescimento de mercados informais, precarização do trabalho e narcorreorganização de grande parte da

economia, resultando num desequilíbrio dos laços sociais com violência e destruição. ―A

inovação estética tem interessado cada vez menos nos museus, nas editoras e nos cinemas; ela foi deslocada para as tecnologias eletrônicas, para o entretenimento musical e para a moda. Onde havia pintores ou músicos, há designers e discjockeys‖ (CANCLINI, 2008, p. XXXVI).

Refletindo sobre políticas de hibridação, Canclini pontua que as culturas populares estão vivas e que se deve procurá-las em lugares não habituais. Em processos globalizadores, a desvalorização e a revalorização de culturas locais se acentuam e às vezes se alteram em processos de hibridação combinando repertórios multiculturais. O autor destaca a necessidade de ações políticas mais abertas para uma cidadania que abranja múltiplas pertenças, reivindicando a heterogeneidade e a possibilidade de múltiplas hibridações. Torna -se urgente acrescentar como política de hibridação um trabalho especificamente intercultural, de reconhecimento da diversidade e afirmações de solidariedade, considerando também os exílios e as migrações. No poema ―Traduzir-se‖, de Ferreira Gullar, tem-se uma forma de leitura híbrida do mundo:

Uma parte de mim é todo mundo Outra parte é ninguém, fundo sem fundo Uma parte de mim é multidão

Outra parte estranheza e solidão Uma parte de mim pesa, pondera Outra parte delira

Uma parte de mim é permanente Outra parte se sabe de repente Uma parte de mim é só vertigem

Outra parte linguagem

Traduzir uma parte na outra parte Que é uma questão de vida e morte Será arte?

Diante da extensão dos dilemas da globalização, as buscas artísticas são verdadeiras chaves para a equalização das diferenças, e, no campo instável dos conflitos de tradução e traição, a arte consegue ser ao mesmo tempo linguagem e vertigem.

Para acompanhar a teoria de ―hibridação das culturas‖ de Canclini, é necessário em primeiro lugar entender sua pergunta relativa à América Latina: ―Quais são, nos anos 90, as estratégias para entrar na modernidade e sair dela?‖ ( p. 17). Um continente onde as tradições populares ainda vivem e a modernidade ainda não acabou de chegar. Para o autor, um dos problemas é que as filosofias pós-modernas tendem a desacreditar nos movimentos culturais que sonham com o progresso e prometem utopias. Uma das hipóteses de Canclini é a incerteza em relação ao valor e ao sentido da modernidade. Não foi só separar etnias e classes, a modernidade teve também de adotar a mistura do tradicional e do moderno e os cruzamentos socioculturais. Nesta confluência, o autor pontua a necessidade de ciências nômades e de disciplinas que estudem separadamente a história da arte e a literatura que se ocupam do culto; do folclore e da antropologia consagrada ao popular; e dos trabalhos de cultura de massa que o autor chama cultura ―massiva‖ (CANCLINI, 2008, p. 19).

Outra hipótese formulada por Canclini: o trabalho conjunto dessas disciplinas pode favorecer outro modo de concepção da modernização latino-americana, com tentativas de renovação, fazendo com que cada setor elabore a heterogeneidade multitemporal de cada nação. A terceira hipótese é a de que a aproximação transdisciplinar, favorecendo circuitos híbridos, acarreta consequências que extrapolam a investigação cultural. Com estas três questões o autor procura um perfil para a América Latina, reunindo saberes parciais das disciplinas que se ocupam da cultura, elaborando possíveis fracassos e contradições da modernização deste continente com sua mescla de memórias heterogêneas e inovação truncada (p. 20).

Canclini procura conectar uma revisão da teoria da modernidade com as transformações ocorridas na América Latina desde os anos 1980 no que se refere ao entendimento de modernização econômica e política. Ele retrabalha a conceituação de modernidade em várias disciplinas, abordando, de forma multifocal e complementar, as duas opções básicas da modernidade: inovar ou democratizar.

Os movimentos das vanguardas históricas europeias, assunto desta tese, foram ao extremo pela busca da autonomia da arte às vezes se aproximando da modernidade, principalmente no tangente à renovação e à democratização. Os desentendimentos e conflitos com movimentos sociais e políticos, seus fracassos pessoais e coletivos podem eventualmente ser apreciados, como manifestações exasperadas das contradições entre os projetos modernos. As vanguardas são vistas como paradigmas da modernidade e algumas nasceram como tentativas de não serem cultas nem modernas, desfrutando a autonomia da arte e se entusiasmando com o experimental e a liberdade criativa individual.

Com as vanguardas históricas europeias, houve várias tendências estéticas com responsabilidade ética. Além de certo niilismo dadaísta, houve a esperança do surrealismo de unir a revolução artística com a social. A Bauhaus quis aplicar à cultura cotidiana um novo design industrial, passando pela experimentação formal; criou uma comunidade de artífices e anulou a separação arrogante entre artistas e artesãos. Os construtivistas almejaram tudo isso e tiveram mais chances de inserir-se nas transformações na Rússia pós-revolucionária, encarregando-se de reformular o design, de uma forma geral: nos monumentos, nas escolas de arte; na engenharia projetista com projetos úteis ao planejamento socialista; na reintegração da arte na vida com experiências cultas e transformadoras no sentido coletivo.

São conhecidos os diversos e surpreendentes desenlaces das vanguardas. O surrealismo se dispersou com as lutas internas. A Bauhaus foi reprimida pelo nazismo e, antes disso, enfrentou dificuldades estruturais para introduzir sua renovação funcional em meio às especulações imobiliárias da República Socialista de Weimar. O construtivismo foi sufocado pelo stalinismo e substituído pelo realismo socialista em que os pintores se adaptaram ao retratismo das tradições icnográficas oficiais.

As experiências estético-éticas das vanguardas não foram esquecidas e se prolongaram como uma reserva utópica. Nos Estados Unidos dos anos 1960, artistas e intelectuais encontram estímulo para a retomada dos projetos democráticos, renovadores e emancipadores dos modernos do século XX. Na atualidade, a inserção social da arte demonstra a herança dos anos 1920 e 1960 de transformar a partir da avaliação do fracasso das vanguardas históricas europeias. Muitos autores vêm se dedicando ao exame das razões sociais e estéticas decorrentes desta frustração, ou seja ―o declínio do projeto moderno‖ (p. 25).

No teatro, na dança, em happening ou performance de artes plásticas da pós- modernidade, encontra-se acentuadamente marcado o sentido do ―ritual hermético‖. Nestas

expressões artísticas, a comunicação racional é reduzida e existe um rebuscamento de formas não verbais e visuais para expressar o subjetivo e as emoções primárias reprimidas por convenções. Em busca de manifestações originais, muitas vezes, a alusão ao mundo do dia a dia é cortada em prol da originalidade, da magia e de reencontros com o self. A forma cool e autocentrada de arte propõe a reinstalação da experiência estética através do rito como núcleo. Estas são, para Canclini, muitas vezes cerimônias de ensimesmamento com o próprio corpo.

―São ‗ritos sem mitos‘ que não integram uma coletividade e nem a narração autônoma da

história da arte. Não representam nada, salvo o narcisismo orgânico de cada participante‖, pontua o autor, considerando este ponto como uma das crises mais severas do moderno (p. 48).

O co-criador do estilo de dança em grupo Contact Improvisation, Steve Paxton,

declarou: ―Estamos nos dando ao luxo de viver cada momento por sua qualidade única. A

improvisação não é histórica‖ (p. 48). Diante desta afirmativa, Canclini elaborou uma série de questões para debater o seu conceito de ―rito de egresso‖, no qual o valor está na renovação incessante. A exacerbação narcisista gerando descontinuidade foi na verdade uma prática das vanguardas, como uma condição de que para pertencer ao mundo da arte não se pode repetir o que já foi feito: do impressionismo ao surrealismo, iniciar formas de representação não codificadas; da arte fantástica à geométrica, inventar estruturas imprevisíveis; dos collages dada à performance, relacionar imagens ainda inéditas que pertencem a cadeias semânticas diversas. Para o artista moderno, a pior crítica à sua obra era ser considerada uma repetição.

Reunindo essas observações sobre as afinidades da pós-modernidade com as vanguardas históricas, Canclini apresenta seu conceito de rito egresso como ―um sentido de

fuga permanente, para se estar na história da arte é preciso estar saindo constantemente dela‖

(p. 49). Embora renegando a noção de ruptura das vanguardas, os artistas pós-modernos reestabeleceram o caráter insular e autorreferente do mundo da arte, usando o mesmo modo de fragmentação, deslocamento e parodismo com as tradições. A cultura moderna do início do século XX se estabeleceu negando territórios e rompendo com as convenções das tradições. Nesse sentido, o autor registra uma continuidade sociológica entre as vanguardas modernas e a arte pós-moderna.

Estudando as contradições na América Latina, Canclini lança uma questão fundamental:

―Por que nossos países realizam mal e mais tarde o modelo metropolitano de modernização?‖

(p. 70). Os interesses mesquinhos de classes dirigentes na América Latina sempre resistiram à modernização social e as elites oligárquicas se aproveitam do modernismo para dar mais

destaque aos seus privilégios. Imprescindível rever quais as diferenças entre a modernidade europeia e a latino-americana, que foi reprimida, postergada e construída sob uma visão de dependência mecânica em relação às metrópoles, funcionando sob o signo do ―atraso‖, como se diz comumente.

―Importar, traduzir e construir o próprio‖, ainda segundo Canclini, se refere às

contradições latino-americanas. Ele vê o modo de adotar ideias alheias com um sentido impróprio como um fenômeno que está na base de quase toda a literatura e arte da América Latina. Nas artes plásticas, o primeiro momento do modernismo no Brasil, com a Semana de Arte Moderna de 1922 em São Paulo, foi realizado na maior parte por artistas e escritores que regressavam de uma temporada na Europa. Oswald de Andrade teve grande repercussão ao voltar com o manifesto futurista de Marinetti. Juntamente com Mário de Andrade, Anita Malfati voltou fauvista depois de uma temporada em Berlim. Os modernistas beberam em fontes duplas e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo a francesa; de outro, conforme Aracy Amaral, ―um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de

nossas raízes‖ (p. 79). Trata-se de uma referência às investigações de folclore que são

iniciadas nos anos 1920. O cubismo em Di Calvacanti deu-lhe a inspiração para pintar mulatas e Tarsila do Amaral imprimiu uma estética construtiva com atmosfera e cores brasileiras, modificando o que aprendera com Léger.

O autor considera que estes artistas desejaram instaurar uma nova arte para representar o nacional, colocando-a no patamar de desenvolvimento estético moderno. ―Só seremos

modernos se formos nacionais‖ – a preocupação de brasilianidade prevaleceu nas propostas

da Semana de 1922 (CANCLINI, 2008, p. 81).

Por uma Leitura Híbrida do Mundo

Compreender a proposta de Canclini sobre hibridação foi importante por sua aproximação à questão da modernização em países da América Latina, um continente heterogêneo com multiplicidade cultural e um histórico político-social extremamente complexo. Para esta tese interessa, sobretudo, estudar o conceito de hibridismo, que, juntamente com o de interculturalismo e o de sincretismo, completa um dos eixos da tese sobre a modernidade.

Diante da crise da modernidade no Ocidente a partir dos anos 1990, Canclini investiga as relações entre a modernização socioeconômica e o modernismo cultural. A convivência entre as tradições culturais e o modernismo, com especial acento nas vanguardas históricas, e o processo de ruptura são assuntos especialmente pertinentes neste estudo sobre a dança expressionista na Alemanha e no Brasil.

Os projetos democráticos e emancipadores dos modernos, suas experiências estético- éticas e o espírito de ruptura, aliados à sua postura vanguardista na Europa, permaneceram como uma reserva utópica, sendo retomados em outra dimensão nos Estados Unidos da América nos anos 1960.

A cultura moderna se construiu desconhecendo territórios e rompendo com as convenções das tradições. Os artistas pós-modernos, embora abandonando a noção de ruptura das vanguardas, retomam o parodismo com as tradições, a fragmentação, o deslocamento e a autorreferência. O sentido do ―ritual hermético‖, o rebuscamento de formas não verbais e visuais, a expressão do subjetivo e suas emoções são heranças das vanguardas que são revistas na pós-modernidade em propostas de espetáculos de teatro e dança, em happenings ou performances.

Interessaram sobremaneira as considerações do autor sobre a brasilianidade e o projeto nacional embutidos no modernismo no Brasil embora falte da parte do autor considerar que os artistas brasileiros vêem na retomada do termo antropofagia um caminho de reelaboração dos conceitos eurocêntricos. Os artistas brasileiros responsáveis pelo movimento modernista desejaram instaurar uma nova arte para representar o nacional sim, mas tomando a antropofagia como metáfora crítica do processo de formação da cultura brasileira. A reflexão

sobre a antropofagia de outro ângulo, ―Importar, traduzir e construir o próprio‖ – em que

Canclini (p.75) se refere como ‗contradições latino-americanas‘ no modo de adotar ideias alheias com um sentido impróprio de representação nacional desbotam ou até apagam as intenções do movimento brasileiro da antropofagia24.

O autor traz ainda, para ilustrar os assuntos relativos a hibridação e heterogeneidade, o exemplo da cidade fronteiriça mexicana de Tijuana, ampliando as questões de

24

Em 1928, a pintora Tarsila do Amaral presenteou Osvald de Andrade com o quadro Abaporu que significa em tupi antropófago. Em torno desse quadro foi criado por Oswald de Andrade e Raul Bopp, o clube antropofágico com a Revista de Antropofagia onde foi publicado o Manifesto Antropofágico. Como herdeiros da índole

canibal, somos na esfera da cultura capazes ―importar.traduzir e construir o próprio‖ sem submissão a modelos.

O antropófago tribal entende que se alimentar da carne do inimigo faz bem porque ao comê-la adquire o seu poder, suas qualidades e seus conhecimentos.

desterritorialização e reterritorialização, ao apresentar as respostas dadas pelos artistas de fronteira e seus laboratórios híbridos, interculturais elaborando identidades.

Conforme Canclini, o México se separa dos Estados Unidos por uma cerca que poderia ser o principal monumento da cultura na fronteira. Chegando à praia, a linha cai e aparece uma zona de trânsito usada às vezes pelos migrantes clandestinos. É também lá que, aos domingos, as famílias fragmentadas entre os dois lados da fronteira se encontram nos

piqueniques. Onde as fronteiras se movem, ―podem estar rígidas ou caídas, onde os edifícios

são evocados em um lugar diferente do que aquele que representam, todos os dias se renova e amplia a invenção do espetacular da própria cidade. O simulacro passa a ser uma categoria

central da cultura‖ (p. 321).

Os artistas da fronteira cultivam seu laboratório intercultural com produtos híbridos e simulados. Entrevistado pelo rádio, o artista performático e editor da revista bilíngue La Línea Quebrada, Guillermo Gómez-Peña revela:

Repórter: Se ama tanto o nosso país, como o senhor diz, por que vive na Califórnia?

Gómez-Peña: Estou me desmexicando para mexicompreender-me... Repórter: O que o senhor se considera então?

Gómez-Peña: Pós-mexica, pré-chicano, panlatino, transterrado,

arteamericano... depende do dia da semana e o projeto em questão.

Em Tijuana, assim como a revista de Gomez-Peña, existem outras dedicadas à reelaboração das definições de identidade e cultura. ―Na fenda entre dois mundos‖ – vivendo no meio e sendo – ―Os que não fomos porque não mudamos, os que ainda não chegamos ou não sabemos aonde chegar‖, todas as identidades possíveis e disponíveis são assumidas. A visão eufemizada das contradições e o desarraigamento do grupo La Línea Quebrada é questionado por outros artistas e escritores de Tijuana que rejeitam a celebração das migrações causadas pela pobreza do lugar. Canclini registrou um movimento complexo de reterritorialização, um desejo de fixar signos de identificação com rituais que os diferenciam como tijuanenses daqueles que estão só de passagem. Canclini descreve hibridações, e chega a concluir que na atualidade todas as culturas são de fronteira.

Todas as artes se desenvolvem em relação a outras artes: o artesanato migra do campo para a cidade; os filmes, os vídeos e canções que narram acontecimentos de um povo são intercambiados com outros, mas ganham em

comunicação e conhecimento. [...] Quando não conseguimos mudar o governante, nós o satirizamos. Nas danças do Carnaval, no humor jornalístico, nos grafites. Ante a impossibilidade de construir uma ordem diferente, erigimos nos mitos, na literatura e nas histórias em quadrinhos desafios mascarados. A luta entre classes ou entre etnias é, na maior parte dos dias, uma luta metafórica (p. 349).

O autor considera que somente uma perspectiva pluralista que opere com a fragmentação e as combinações múltiplas entre modernidade e pós-modernidade possibilitará a compreensão da conjuntura latino-americana no final do século XX. ―O problema não reside em que não nos tenhamos modernizado, mas na maneira contraditória e desigual como esses componentes se vêm articulando‖ (p. 352).

Em Culturas híbridas, de Canclini, a pós-modernidade tem espaço no seu caráter antievolucionista problematizando vínculos entre o moderno e as tradições. Segundo o autor, os artistas que assumem as novas condições rejeitam o relato histórico guiado por verdade de um grupo ou nação homogênea. A obra fragmentada, inacabada retira ou diminui os gestos sociais produzindo uma contraépica. Não havendo uma ordem coerente e estável, não existe relação de identidade entre grupos. Isto significa a convivência simultânea em vários territórios e multíplices cenários. A história não se dirige a metas programáveis, os textos e as imagens passam a ser collages fragmentadas. Uma mistura irregular de texturas de variadas procedências, que se citam umas às outras disseminadamente.

Para este estudo é importante a compreensão do fenômeno da hibridação como encontro transcultural e atividade transdisciplinar que encontra receptividade no teatro, com vários campos de investigação e aplicação. A hibridação no teatro pode também significar o emprego de diversas linguagens (dança, circo, ópera, pantomima etc.) e de diversos sistemas sígnicos e meios de comunicação (internet, vídeo, filme, fotografia, mundos virtuais, técnicas analógicas e digitais); estéticas e gêneros (literatura, teatro, ensaio) e conjugar diversas culturas, etnias, religiões etc. O estudo a seguir está relacionado com o pós-moderno no teatro e a sua hibridação, e traz a reconhecida contribuição teórica de Hans-Thies Lehmann sobre teatro pós-dramático na Alemanha.