• Nenhum resultado encontrado

3 DOS IMPULSOS CULTURAIS A PARTIR DA VIRADA DO SÉCULO

3.7 TANZTHEATER/CHOEREOGRAPHISCHES THEATER: CROCODILO NO

O ano de 1973 marca um cisma da dança pós-guerra na República Federal da Alemanha. Nesse ano, morreram Mary Wigman, a representante e transmissora da Ausdruckstanz, e John Cranko, que determinou novos passos na tradição de balé na Alemanha. Uma nova geração assumiu o cenário. Pina Bausch assumiu o Instituto de Dança de Wuppertal, transformando-o depois em Tanztheater Wuppertal e levando-o à fama mundial. John Neumeier mudou-se como chefe de balé de Frankfurt para Hamburgo, iniciando um trabalho inovador de igual importância (MÜLLER, 2003, p. 177). Em 1976, Márcia Haydée chamou William Forsythe para Stuttgart, onde ele realizou seu trabalho experimental e audacioso a respeito do repertório clássico de movimento, incluindo empréstimos da dança-teatro (p. 183). Antes, Kurt Jooss, na Escola Folkwang, em Essen, já praticava seus experimentos coreográficos até no ensino de improvisação e composição, influenciando dessa forma as suas discípulas Pina Bausch, Reinhild Hoffmann e Susanne Linke. Assim, a Folkwang Hochschule für Tanz (Escola Superior de Dança Folkwang), através dessas três ex-alunas, tornou-se a célula germinal da dança-teatro. Mas, já em 1973, Pina mudou-se com suas dançarinas para o Teatro de Wuppertal, juntamente com o cenógrafo Rolf Borzik. Incluindo a criatividade do seu ensemble, ela criou as características essenciais do seu conceito de revelar no palco os verdadeiros sentimentos escondidos pela fachada social.

Eu gosto de olhar pela lupa, quer dizer/ eu gosto de afastar as aparências, aquilo que se chama etiqueta – os rostos gentis e o riso permanente. Eu gosto somente de ver o que está escondido atrás. Seria importante que nós

150

Tradução nossa.

151

Produções de Kresnik com artistas brasileiros: Wandewut – 1993; Nietszche – 1994; Ernst Junger – 1994; Grundigens / Hansel und Gretel/ Othello – 1995; Goya – 1998. Monica Kodato, Adriana Almeida, Maurício Oliveira, Irineu Marcovecchio, Maurício Ribeiro, que foram bailarinos do Balé da Cidade de São Paulo. Ismael Ivo, Mara Borba e o músico Livio Tratenberg, que trabalharam em Othello (p. 210-212).

entendêssemos e nos fizéssemos entendíveis para os outros152 (MÜLLER, 2003, p. 186).

As obras de Pina Bausch, dos anos 1970 até o início dos anos 1980, foram fortemente caracterizadas pelo tema da violência, não somente física, mas especialmente psíquica, determinando as relações humanas. Pina Bausch revelou os enquadramentos do homem e da mulher em papéis sexuais ou de gênero socialmente determinados. Os seus trabalhos Kontakthof e Café Müller (1978) tornaram-se assinaturas da saudade de homem e de mulher de ser aconchegados um ao outro, esperança frequentemente em vão. Por essa razão, ela foi até celebrada como uma das pioneiras do movimento feminista (p. 187).

Reinhild Hoffmann: Duetos com Objetos

Ao lado de Pina Bausch, Reinhild Hoffmann foi a segunda coreógrafa vinda da Escola Folkwang que contribuiu para formar a feição da nova dança-teatro. Conforme Müller, as suas primeiras coreografias já caracterizavam a sua obra toda, não tematicamente, mas formalmente. Em 1977, ela conseguiu ainda no Folkwang-Tanzstudio, em Essen, o seu primeiro êxito com a composição Solo mit Sofá (Solo com sofá), uma peça com poucas palavras, de John Cage. Esta obra e também as obras solísticas seguintes, em 1980, como Bretter (Tábuas) e Stein (pedra), eram estruturalmente duetos entre a dançarina e objetos (MÜLLER, 2003, p. 188).

Frequentemente, a linguagem escultural de dança de Reinhild Hoffmann foi influenciada pelas artes plásticas na década de 1960, pop art, fluxos e happening, introduzindo ação como evento artístico. Os trabalhos de Reinhild Hoffmann foram também caracterizados por sua preocupação analítica com composições musicais, combinando movimento e objeto com a exigência do seu mestre Kurt Jooss de maior precisão e utilização

exata dos meios de dança: ―Era muito importante para Jooss a consciência: – Por que eu estou

me movimentando? (Jooss). Isso, uma vez esclarecido, a gente se encontra livre de todos os estilos e a gente pode inventar movimentos de maneira própria‖153 (MÜLLER, 2003, p. 189).

152

Tradução nossa.

153

Em 1970, ela entrou como dançarina para o Teatro de Bremen no ensemble de Johann Kresnik, onde adquiriu experiências teatrais na dança. Depois de um ano em Nova York, em 1976, assumiu juntamente com Susanne Linke a direção do Folkwang Tanzstudio. Em 1978, foi convidada, juntamente com Gerhard Bohner, para dirigir o Balé de Bremen, coreografando obras do ensemble.

Nas suas peças, Reinhild Hoffmann mostrava estruturas de relacionamento humano que podiam ser formalmente abstratas, psicológicas ou até arcaicamente mitológicas. As suas peças de grupo, entre 1970 e 1980, sempre focalizaram um tema central, apresentando-o em diferentes variantes. Assim, por exemplo, sua peça Callas, com fragmentos biográficos desta estrela de ópera, a imagem de uma diva assassinando homens, o culto à estrela, a formação e o treinamento rigorosos, imagens de sentimentos humanos como a saudade de uma mulher solitária, jubilada e aclamada.

Em 1986, Reinhild Hoffmann se mudou de modo surpreendente para Bochum, estabelecendo seu ensemble de dança num teatro municipal até então dedicado exclusivamente ao teatro falado. Nessa época, suas peças ganharam um clima mais teatral, tematizando a paisagem industrial da região do Ruhr. Ela até descobriu uma fábrica de aço desativada como espaço de apresentação. Nessa época, também, Susanne Linke, a terceira mais importante coreógrafa da Folkwang, havia estreado sua peça de homens Ruhr Ort154 – tratando tematicamente também da mesma região (MÜLLER, 2003, p. 191).

Linke – Banho de Emoção

Susanne Linke, ou Susa, como é chamada carinhosamente no meio artístico, tornou-se a coreógrafa de uma dança-teatro determinada essencialmente pela emoção. Para aperfeiçoar sua capacidade técnica, depois da formação com Mary Wigman, ela volta a estudar dança na Escola Folkwang, participando, de 1970 a 1973, do grupo da escola sob a direção de Pina Bausch. Quando Pina Bausch se muda para Wuppertal, Susanne Linke e Reinhild Hoffmann assumem conjuntamente o Folkwang Tanzstudio, em 1975. Paralelamente aos trabalhos do ensemble, ela cria uma série de peças solísticas, fundamentando seu renome como coreógrafa. Depois de Wandlung (Transformação, 1978), uma homenagem a Mary Wigman, ela assume

154

Conhecida como Rhur Gebiet, região industrial, às margens do Rio Rhur, que vem se destacando nos últimos trinta anos por uma série de iniciativas de novas ocupações territoriais urbanas em fábricas desativadas como projetos artístico-culturais, principalmente na área de dança.

sozinha a direção do grupo, permanecendo dez anos na Folkwang. Surgem o solo ontológico Im Bade wannen (Banhando na banheira) – que até os dias de hoje é convidado para se apresentar no mundo inteiro – e o solo também muito reconhecido Flut (Maré), onde um enorme pano branco sobe e desce dialogando com a dançarina. Estes dois solos representam as peças mais destacadas do seu repertório.

Entre as coreografias em grupo para o Folkwang Tanzstudio, conta-se com Wir Können nicht nur Schwäne sein (Nós não podemos ser cisnes) (1982) e principalmente Frauenballet (Balé de mulheres) (1981) como seus maiores sucessos. Nesta última, a própria Susanne Linke comenta com humor e muito espírito crítico nos movimentos sobre a relação entre os sexos. Nas suas coreografias, Susanne Linke sempre ficou ligada a uma expressividade intensamente corporal. Em 1985, ela baseou sua peça solística Schritte (Passos) em sua autobiografia, dos seus primeiros passos e tentativas até sua emancipação como mulher adulta. Em 1987, dedicou-se a seu grande ídolo, Dore Hoyer – que completava 20 anos de morta –, reconstruindo detalhadamente a coreografia Zyklus Affectos Humanos, de Dore Hoyer, complementada com um solo próprio intitulado Dolor homenageando-a. No ano seguinte, juntamente com o seu partner de trabalho mais duradouro, o suíço Urs Dietrich, ela retrabalhou esse ciclo com um vocabulário contemporâneo, intitulando-o Hommage a Dore Hoyer – Affecte, que teve uma grande repercussão, fortalecendo inclusive o trabalho do ensemble da Folkwang (MÜLLER, 2003 p. 194).

Cena dos Anos 1990

Esse período começa com a reunificação da Alemanha, que tem como resultado visível em dança, na cidade de Dresden, a ascensão da Escola Palucca, destacando-se pelo excelente nível de ensino e formação coreográfica. A partir dos anos 1990, todo o cenário de dança na Alemanha entra assim em transformação. Com o intercâmbio, retornam as promessas. Os pioneiros, Johann Kresnik, Pina Bausch, Reinhild Hoffmann e Susanne Linke, continuam trabalhando. Com a formação de uma rede internacional, aumentam as chances da dança. No início dos anos 1990, Berlim, após a queda do muro, volta a ser o ponto de encontro. A transferência da capital federal de Bonn para Berlim acelera uma mudança significativa do cenário artístico. Cidades das duas Alemanhas em diferentes regiões despontam com suas revelações. Novos dançarinos e coreógrafos, como Sascha Waltz e Jo Fabian (este da ex-

Alemanha Oriental), entram em cena como grandes revelações da dança, além de figuras como Amanda Miller, Daniel Goldin, Wanda Golonka, VA Wolf, Anna Huber, Thomas

Lehmann e Felix Ruckert da geração mais radical da ―nova dança‖, confrontando o público

com discussões sobre propostas ousadas em espaços inusitados.

Leipzig continua investindo no balé clássico; Frankfurt, em encontros internacionais, na dança clássica e na moderna, com a presença do grupo SOAP e do coreógrafo português Rui Horta no Teatro Mousonturm. Além do SOAP, surge também o Wooster Group e outras companhias alternativas. Stugartt mantém o seu status de balé moderno; Hamburgo, com a Kampnagel Fabrik, sustenta um dos melhores campos de investigação em dança da Europa. Enquanto Wuppertal atravessa o mundo com o trabalho do seu Tanztheater e a genialidade de Pina Bausch, que, da passagem para o século XXI até após sua morte, que ocorreu em junho de 2009, vem sendo consagrada como uma das mais importantes figuras da história da dança em todo o mundo. Graças a Pina Bausch, temos crocodilos no palco convivendo com cisnes. O Frauen Ballet (Balé das Mulheres), de Susanne Linke, na Escola Folkwang, prega que ―não podemos ser cisnes para sempre‖. O cotidiano é absorvido em cena. A realidade sociopolítica do dia a dia, tão apreciada e antecipada por Valeska Gert e Kurt Jooss, não falta nos programas de dança.

Por sua vez, o Renovador do Balé, Jean-George Noverre (1764), a essas alturas, está mais do que satisfeito com os esforços dos alemães e dos exércitos aliados (ingleses e russos) que, na fase de ocupação, triunfaram com o balé clássico na Alemanha. Entretanto, não se pode afirmar a satisfação de Mary Wigman quanto ao fato de haver tanto espaço para o clássico.

A querela clássico versus moderno na dança, nos anos 1990, parece uma longínqua fábula da Bela e da Fera. Na pós-modernidade, com o estímulo e as licenças poéticas do amplo panorama do teatro pós-dramático, esta querela se dilui totalmente. Na retina permanece a imagem da genial montagem fotográfica na capa do livro Krokodill im Schawanensee: Tanz in Deutschland set 1945 (Crocodilo no Lago dos cisnes: dança na Alemanha desde 1945), a imagem de um crocodilo (usada por Pina Bausch em Lenda da Castidade) penetrando no cenário de dançarinas vestidas de tutu interpretando o Lago dos Cisnes.

Aqui tratei do desenvolvimento histórico da dança-teatro e do teatro coreográfico, analisando os caminhos artísticos e a produção de Kresnik, Bausch, Hoffmann e Linke, para

perceber seus motivos e intenções, como criadores, e suas conquistas estéticas. Num primeiro momento, nos anos 1970, são decisivas as afirmações estético-políticas, principalmente de Johann Kresnik, enquanto Pina Bausch e mais tarde Reinhild Hoffmann e Susanne Linke partem para procuras estéticas dos sentidos e da individualidade, através de proposições diferenciadas mais voltadas para a percepção de subjetividades e sentimentos do indivíduo e sua condição na sociedade.

Num segundo momento, cria-se através principalmente da obra de Pina Bausch um território até então inexistente na dança. A proposta de Pina Bausch abandona a ideia de

dança coreografada e luta por sua liberdade criadora, defendendo que ―o que move o

dançarino é mais interessante do que como ele se move‖. A proposta de fazer uma dança viva revelando coisas do mundo interno dos dançarinos se tornou o leitmotiv da dança-teatro. Uma resposta poderosa que atingiu o coração do espectador, que passou a ver a si mesmo em cena através dos temas, das perguntas e impasses colocados por Pina Bausch em seus espetáculos.

Num terceiro momento, além de consolidar a processualidade com metodologia muito própria – work in progress; montagem/colagem; distanciamento e repetição/transformação –, a coreógrafa se dedica com afinco ao intercâmbio intercultural constituindo outro princípio de trabalho que aqui é chamado de nomadismo cultural.

O procedimento de montagem/colagem num processo de work in progress em experiências interdisciplinares e interculturais foi adotado por mim como encenadora na montagem de diversos espetáculos com destaque para as encenações de Dendê e Dengo e Merlin.