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3 DOS IMPULSOS CULTURAIS A PARTIR DA VIRADA DO SÉCULO

3.6 KRESNIK: TEATRO COREOGRÁFICO EM BUSCA DE TEXTO

Nos anos 1980, surgiu na Alemanha um descontentamento diante de textos teatrais e poéticos e a vontade de realizar imagens em movimento que enriquecessem a dança. O aparecimento de bons coreógrafos satisfez a necessidade de cumprir uma renovação na dança. Logo, aqueles profissionais que realmente tinham algo a oferecer foram estimulados e muitos deles produziram obras-primas. Conforme Eva-Eslisabeth Fischer (1990, p. 51),

[...] faz mais de meio século que Kurt Jooss – sem consequências para outros coreógrafos – criou a Mesa Verde. Entretanto, no final dos anos 1960, o jovem coreógrafo Johann Kresnik foi contagiado pela revolta estudantil e politizou a dança na República Federal da Alemanha, mas permaneceu até hoje como único defensor do seu radicalismo124.

122 Tradução nossa. 123 Tradução nossa. 124 Tradução nossa.

No início dos anos 1970, a dança, pela primeira vez, tentava manter o passo com a atualidade política. Após a restauração nos anos 50, começava-se a refletir sobre a história da Alemanha, depois da ―hora zero‖. Kresnik, nascido em 1939, encontrou o impulso para a sua criatividade na história da sua própria família. O drama de família se repete, de forma variada, em quase todas as suas peças, de uma maneira obsessiva. Mesmo assim, Kresnik progrediu. Através dos anos, ele passou do seu Agit-Prop de consciente agressividade a uma visão mais diferenciada, concentrando-se em biografias. Mas demorou até 1980 para que ele ousasse tematizar seu trauma, o de uma nação inteira. ―Somente em Familiendialog (diálogo de família), ele confrontou-se, de maneira historicamente refletida, com as consequências do Nazismo, descobrindo as suas raízes na mentalidade do súdito na era do Wilhelminismo125‖126 (FISCHER, 1990, p. 51).

A dramaturgista e parceira de Kresnik em diversas produções, Anja von Witzler, faz suas considerações sobre o teatro coreográfico de Johann Kresnik afirmando que se trata de um teatro visual, em que Kresnik escreve suas peças em imagens cênicas. O decorrer da trama, os desenvolvimentos psicológicos, a construção de arcos de tensão, tudo é sujeito a uma distribuição de imagens. ―São átomos dos quais Kresnik compõe o seu teatro coreográfico, e eles resultam na estrutura dramatúrgica das suas peças que seria mais adequadamente descrita em termos de colagem e revista‖127 (ACKERMANN, 1999, p. 12). Kresnik não explica. Ele apresenta imagens que frequentemente são brutais, mas também extremamente sensíveis.

A imprensa e o público na Alemanha costumam caracterizar o trabalho de Kresnik como Berserker des deutschen Tanztheaters (o brutamonte da dança-teatro alemã). Por suas imagens fortes e perturbadoras, o diretor é considerado como extremamente violento, ávido para criar as cenas mais sangrentas possíveis128 (p. 13).

Para Witzler, o coreógrafo não procura a sensação pela sensação. Ele admite que as suas imagens são frequentemente brutais e cruéis, e que ele desafia ao extremo o corpo e a psiquê dos seus atores e dos seus espectadores, mas ele as justifica dizendo que não surgem de um

desejo de chocar. ―A sua meta definitivamente não é um gabinete de terror. Kresnik é

consequente em questionar o estado de ser das suas figuras. Sofrimento, psíquico e físico, não

125

Referência ao Império de Wilhelm der II (Friedrich Wilhelm Vicktor Albert Von Preussen - 1859-1941).

126 Tradução nossa. 127 Tradução nossa. 128 Tradução nossa.

pode ser inocentado, tem de penetrar as imagens.‖129 (ACKERMANN, 1999, p. 14) Através da sua encenação direta e poderosa, ele quer fazer o público compreender, perturbando-o. Assim, ele alcança a participação dos espectadores nas experiências dos personagens.

De acordo com Witzler, é dessa maneira que surgem imagens de corpos brutalmente expostos, distorcidos, torturados, sangue, pus e esperma, pronunciando os ferimentos e as obsessões dos protagonistas de Kresnik. O encontro dos corpos se dá mais frequentemente na luta mais do que no entendimento. ―As figuras de Kresnik não conhecem seguranças. O seu teatro muitas vezes esfarrapa nervos e corpos além dos limites da dor.‖130 (p. 15) Para Kresnik, um trabalho sem comprometimento pessoal, sem posicionamento político é inimaginável. O coreógrafo não está interessado numa descrição equilibrada. Conforme a dramaturgista, ele é incapaz de manter distância de sua peça, dos protagonistas. Ele está mais reagindo aos fenômenos do que os descrevendo: ―O seu principio é a análise e a desmontagem, não a ilustração‖131 (p. 15). Para Kresnik, é impossível uma separação entre o corpo e o ser humano; por isso a consequente recusa de que suas peças sejam sujeitas ao conceito de dança-teatro. A designação teatro coreográfico sinaliza o não interesse num corpo dançante e o interesse num ser humano que atua (p. 16).

O conhecido crítico Michael Merschmeier, da revista Theater Heute, no seu artigo ―Der Gesellschaftstanz‖ (A dança social), refere-se ao lugar do teatro político na sociedade burguesa e à falta de dança nos palcos da dança-teatro. Merschmeier vê o coreógrafo como um sismógrafo, sendo movido por cada movimento social:

A arte de Kresnik, como toda arte, pouco transforma o mundo, mas talvez seduza uma ou outra pessoa a reconhecer que a memória é a única fonte para uma esperança futura. E assim também uma justificativa estupenda para o teatro como um último lugar de uma sociedade genuinamente burguesa. Johann Kresnik tornou-se o pai da nova dança-teatro, cuja mãe conhecemos Pina Bausch. Se o princípio de pesquisa e produção dela é principalmente a introspecção, Kresnik concentra-se mais em expedições no inferno cotidiano e em expressão, explosão. Seja em Kresnik ou em Bausch e todos os seus seguidores falta articidade, falta dança na dança-teatro, essa reclamação

banal já nem um retrógrado balettômano ousa mais pronunciar132

(ACKERMANN, 1999, p. 57). 129 Tradução nossa. 130 Tradução nossa. 131 Tradução nossa. 132 Tradução nossa.

Moritz Rinke, que acompanhou Kresnik no Brasil com a montagem do romance Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, em São Paulo, realizou uma entrevista com Kresnik intitulada

―Wie könnte meine Wut verbraucht sein?‖ (Como minha raiva poderia ser esgotada?).

Numa época em que a sociedade, por uma autodeterminação capitalista, marginaliza suas próprias possibilidades? Talvez a melancolia faça parte de um período meu. A melancolia me motiva a trabalhar com outros conteúdos. Também é bonito não ser sempre o crítico da sociedade. Mesmo assim nunca esqueço no meu trabalho que eu cresci num século que desprezou o ser humano muito. É isso que temos de continuar a exortar [...] Além disso minhas peças sempre são também um anúncio de luta contra o público que infelizmente prefere o trivial, o engraçado, o não político, a moda. Tal público e também tais críticos defecam de maneira irresponsável nos

corações dos teatros133 (ACKERMANN, 1999, p. 65).

Colaborador do Theater Heute, o escritor Klaus Völker, no seu artigo ―Die Kraft der

Verstörung‖ (O poder da perturbação), afirma que Kresnik fez parte da geração de

coreógrafos que iniciou seus trabalhos nos anos 1960 nos tradicionais teatros de três sessões134, porém em termos de estilo e estética desenvolveu uma posição contrária à do teatro municipal. Em vez de elaborarem coreografias para libreto de balé, Johann Kresnik, Pina Bausch, e Gerhard Bohner criaram espaços conceituais expressivos em imagens, fundamentando assim todas as formas de dança-teatro que transcenderam as categorias. Enquanto Pina Bausch não teve problema de designar a realização das suas peças no palco

como ―dança-teatro‖, Kresnik preferiu chamar seu trabalho de ―teatro coreográfico‖, porque,

diferentemente das peças dos expoentes da dança-teatro, suas peças eram e continuam sendo, via de regra, noites temáticas135, eventos criados em colaboração com autores ou baseados em livros, nas transposições coreográficas das quais ele assume o papel de um autor (ACKERMANN, 1999, p. 66).

Segundo Klaus Völker, as encenações de Kresnik em Bremen formulavam conflitos,

agressões, defeitos psíquicos, neuroses da sociedade, que não foram tratados por outros autores de maneira tão crua e sem rodeios, talvez com exceção de Werner Fassbinder, Franz Xaver Kroetz e Peter Handke. O escritor lembra que o fato de Kresnik não ter montado peças desses autores demonstrou o seu desinteresse de sondar coreograficamente peças tão contundentes e ―perfeitas‖. Ele preferiu materiais crus, efeitos gritantes, corpos textuais não

133

Tradução nossa.

134

Referência às sessões matinais, vespertinas e noturnas.

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Noites temáticas, uma referência ao início do trabalho de Kresnik em Colônia, quando ele fazia no teatro sessões em horários especiais, com discussões.

definitivamente estruturados, cenas fragmentadas, que podem ser coladas e integradas em sequências dramáticas dominadas por imagens.

Völker considera que, decisivamente novo ou no mínimo saliente e imponente, o teatro de Kresnik trouxe uma ―carga maciça de erótica desinibidora, de explosão de sentimentos bloqueados, de agressividade física: atos de força e violência transformados em dança refletindo as brutalidades e obscenidades da realidade social‖136 (p. 67). Em Kresnik, as cenas de dança que incorporavam a revolta e a raiva que caracterizavam a revolta juvenil de 1968, sua resistência contra o fedor autoritário e a tolerância repressiva da sociedade, sua luta contra as estruturas de poder burocrático-autoritário e mecanismos da violência estatal que havia se tornado obsoleta. Kresnik articulava as emoções contraditórias do slogan ―destruam o que destrói vocês!‖, completa o autor, e o seu teatro compensava a falta de explosividade no teatro político da época. Völker revela que:

Com imagens consternadoras e temas irritantes ele perturbou o gênero ―balé‖ com suas tendências harmoniosas. Como na sua época Valeska Gert137 com suas danças grotescas e desenvoltas pretendia desmascarar o bom gosto e aproximar-se da verdade humana ou do próprio ser humano, Kresnik com suas peças Mars, Ulrike Meinhof, Frida Kahlo pretendeu perturbar o seu público com verdades impudentes. […] Com peças como Assassino Woyzeck, Macbeth, Ödipus, König Lear e König Ubu, Kresnik de maneira convincente transpôs o violento, o sanguinário, a sensação do homem de ser perdido [...]. A estética do feio que Kresnik desenvolveu e

barateou-se. Peças explicitamente ―políticas‖ como Nietzsche, Ernst Jünger

e especialmente Hotel Lux desapontaram, porque somente formulavam argumentos superficiais, não conseguiram expressar as contradições inerentes a essas pessoas ou estes temas [...]. O argumento político não encontrou uma transposição corporal nos dançarinos que por sua vez se

tornam ―meros‖ atores, agentes de ideias, colocações, opiniões,

preconceitos138 (p. 67).

136

Tradução nossa.

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Valeska Gert (1892-1978), dançarina, atriz de cinema e cabaretista alemã contemporânea de Wigman, que pode ter influenciado Pina Bausch e outros contemporâneos. Os críticos caracterizaram a temática do seu

trabalho como ―Dança Satírica da Época‖. Nas suas coreografias, ela atuava dançando as cenas cotidianas de

Berlim de então, as tragicomédias, os prazeres e os vícios, os sofrimentos e as glórias, as cenas da ―selva da cidade‖ como os tumultos nas ruas e no metrô, as de tráfico de drogas e a prostituição, lembrando as pinturas de crítica social de artistas expressionistas. Gert apresentava nos palcos não somente temas bem diferentes e mais

realistas que Wigman, mas também de forma bem distinta. Por exemplo, ―Wigman dançava a Dança da Morte

de uma maneira mística e patética, enquanto que Gert dançava a morte, falecendo mesmo no palco sem o pathos

nem a dor‖ (KOEGLER, 2004, p. 20-21). O surgimento da dança-teatro contemporânea tem na sua trajetória

algumas controvérsias. Como precursora considera-se menos Mary Wigman e sua Ausdruckstanz, do que sua antagonista Valeska Gert. Conforme o historiador George Jackson, algumas produções nos anos 50 e 60 do Living Theatre de Judith Malina e Julian Beck já eram dança-teatro. Exatamente nessa época Pina Bausch morava em New York e, segundo Jackson, é muito provável que o experimental Living Theatre tenha inspirado Pina Bausch e é evidente que o mesmo foi influenciado por Valeska Gert.

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Ainda é Ackermann (1999) que traz o depoimento do dançarimo Maciej Miedzinski, assistente de direção de Kresnik desde 1990, que comenta sobre o dia a dia de trabalho, considerando a relação de Kresnik com o seu trabalho como Ästhetik der Leidenschaft (estética da paixão):

Hans odeia desonestidade, preguiça, falta de disciplina. Ele é obsessivamente disciplinado, obsessivamente pontual e sempre bem preparado. A musa não beija, tem de trabalhar. Nos ensaios ele precisa de uma certa harmonia, mas também tensão e às vezes essa insegurança absoluta. Aí pode acontecer uma erupção por qualquer ninharia e ele se torna furioso como um leão139 (p. 78).

Miedzinski comenta que os trabalhos surgem numa simbiose com os dançarinos, e que Kresnik os deixa improvisar e depois faz perguntas: ―Por que você fez isso, por que você fez isso assim?‖ E que imediatamente Kresnik ferve de fantasia. Às vezes surge uma cena que talvez uma semana depois seja descartada, porque a peça tomou outro rumo. Para muitos, é uma viagem aventurosa, mas essa espontaneidade não é sem programa. Aos sábados, muitas vezes, o coreógrafo tenta juntar o que foi trabalhado durante a semana para saber por onde começar na semana seguinte e até onde ele pode progredir. Às vezes, surgem durante uma semana três ou quatro cenas. As interligações ainda não existem, mas Kresnik já as tem na cabeça.

Em Ackermann (1999), também se encontra o artigo ―Getanzte Bilder‖ (Imagens dançadas), contendo um importante depoimento de Ulrike Lehmann (curadora e colaboradora na Exposição de Kresnik) intitulado ―Anmerkungen zu Kresniks visueller Ästhetik‖ (Notas sobre a estética visual de Kresnik):

A sua dança-teatro é um espetáculo sem texto que precisa do meio imagem exatamente para poder transmitir mensagens ou colocações sem palavras. Suas coreografias que são mais próximas do teatro e das artes plásticas do que do balé clássico (por isso a sua definição conceitual como teatro coreográfico) são compostas de imagens vivas, em movimento e, portanto efêmeras, com pessoas e elementos cênicos. Exatamente como eles são efêmeros e não verbais, eles criam um nível de percepção que o espectador deve interpretar – análogo ao das obras de artes plásticas que necessitam de um esforço de compreensão do espectador sobre o ato de percepção […]. A linguagem pictorial fantasiosa de Kresnik não se limita somente ao teatro coreográfico [...]. Kresnik trabalha também como um artista plástico. Há

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anos ele esboça e desenha diariamente com traços dinâmicos as ideias que o movem. Frequentemente, estes desenhos estão sendo suportes visuais das suas ideias ou até pré-estudos diretos para certas cenas […]. O que interessa a ele é principalmente projetar o desenho do papel para o palco, suas imagens internas baseadas em seu engajamento social e político. […] O modo de expressão das suas imagens internas e das suas visões evoca um olhar diferente sobre e um novo reconhecimento da realidade histórica existente. Elas elucidam uma emocionalização de acontecimentos reais, [...] a estética de Kresnik é uma expressão da convicção de que a realidade interna é a verdadeira realidade140 (p. 180-181).

O teatro coreográfico de Kresnik, politicamente engajado, não tem mais despertado o interesse dos artistas e do público nos últimos anos. A sua sempre cruel e truculenta estética teatral não encontra o mesmo espaço que encontrava nos anos 1990. Apresento, em seguida, comentários e entrevistas sobre duas experiências de montagem do coreógrafo fora da Alemanha, nas cidades do México e de São Paulo, em 1992.

Johann Kresnik, nas suas excursões para outras culturas, optou por um caminho diferente do de Pina Bausch, talvez menos intercultural e com intercâmbios verticais conceituando suas coreografias a partir de sua leitura. Ele escolheu obras artísticas renomadas com características culturais marcantes, como partida para um confronto e um entendimento. Por exemplo, no México, a obra complexa e a vida sofrida de Frida Kahlo; e, no Brasil, a obra literária Zero: romance pré-histórico, de Ignácio de Loyola Brandão.

Transcrevo parte da entrevista – divulgada em 4 de fevereiro de 1992 no jornal alemão die tageszeitung – com o diretor do Tanztheater Bremen, Johann Kresnik, concedida à jornalista Lore Kleinert durante os ensaios de Frida Kahlo.

L.K: Sylvia Plath, Ulrike Meinhof, Pier Paolo Pasolini e agora a pintora

mexicana Frida Kahlo – para o senhor o que fascina tanto nesses

personagens?

J.K: Essas biografias têm muito a ver com a sociedade, na qual você vive... L.K: Como o senhor se aproximou dessa mulher?

J.K: Através das suas pinturas espetaculares, seus autorretratos como, por exemplo A Coluna quebrada [...] o que passou pela cabeça e pela alma dessa mulher, presa na cama por cinco anos? [...] Essa pintura é naturalmente uma imagem surreal, mas sabendo quantas vezes ela quebrou a vértebra, isso se torna bem concreto. Como posso transformar algo como isso num teatro mudo, sem palavras? Na minha cabeça surgem imagens, imagens vivas a serem traduzidas para o público. Mas isso quer dizer que eu não utilizo as próprias pinturas de Frida Kahlo, eu as transponho para o palco [...]. Eu

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quero transcrever para a minha forma a riqueza das cores das suas pinturas, a tradição mexicana, como o culto à morte [...]. Quanto aos aspectos políticos, como o stalinismo, a visita de Trotzky, o partido comunista, as demonstrações de rua... não considero tão importantes, me interessam mais os sentimentos desta mulher141.

Na segunda parte da entrevista, o coreógrafo Kresnik, nascido na Áustria em 1939, confirma o gosto pelas montanhas e pelo seu teatro coreográfico político. Conforme suas respostas, noto uma inclinação para delegar uma função de correção moral para o teatro de

dança. O teatro como ―instituição moral‖142

, na visão de Frederico Schiller.

L.K: E o seu teatro coreográfico desde o início sempre foi também um protesto político.

J.K: Eu acredito que esses temas devem ser levados ao palco e ferir o público [...]. Temos na Alemanha matérias suficientes a serem vomitadas para a primeira fila do público. Isso não tem nada a ver com experimentação, mas com um pensar e atuar político […]. Nós temos no teatro a obrigação de contar nossa história, de ser uma instância moral […]. No decorrer dos anos me separei do stalinismo e do maoísmo [...]. Minha utopia hoje é a igualdade total de todos os direitos, econômicos, políticos e jurídicos, aí não pode desistir da esperança. […] Todo mundo sempre tem de caminhar novamente […]. Minha posição diante da sociedade é determinada pelo fato de que ela faz quebrar as pessoas. E as figuras que eu escolhi foram todas

personalidades que não podiam levar uma vida ―normal‖ porque eram

empolgadas por suas ideias. De maneira inconsciente, os trabalhos sobre Frida Kahlo tornaram-se uma introdução à história latino-americana, portanto vou fazer no verão uma peça no Brasil sobre o Brasil […]. Me perguntam frequentemente porque eu sou tão furiosamente entregue ao

trabalho – acho que isso tem a ver com minha juventude nas montanhas […].

Minha força, parece, vem de uma forte ligação com a natureza143.

Na mesma época (14/2/1992), no jornal Die Zeit, foi publicada uma matéria de Eckhard Roelke sobre o espetáculo Frida Kahlo, que aqui transcrevi parcialmente:

[…] Johann Kresnik utiliza um símbolo simples para mostrar o físico sem saída da pintora: dois trilhos de trem que atravessam diagonalmente o palco, para puxar a cama da enfermaria ou a serra hiperdimensionada com a qual o médico corta a perna da pintora. Lá nesses trilhos pode-se balançar como

141

Tradução nossa.

142 ―Die Schaubühne als eine moralische Anstalt betrachtet‖ (O teatro considerado como instituição moral),

palestra conferida em 26/6/1784 pelo filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805). Ver mais em Teoria da tragédia, de Schiller, tradução de Anatol Rosenfeld (1964, p. 31).

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uma criança sonhadora, entre eles se pode rastejar ou dar cambalhotas – um símbolo da perna da criança entalada, para o bonde, a alça nas costas, a vértebra, o espartilho. […] Por duas horas este cenário não muda, […] Kresnik não precisa de uma infernália espetacular de técnicas teatrais […]. Frida Kahlo está deitada bem ferida num hospital sonhando com uma sociedade divertida […] ela dança com seu homem Diego […] ela está sendo levada ao palco na sua cama e sempre virada quase caindo […] nos seus pés são afivelados dois fetos sangrando […]. Repetidamente, Kresnik também consegue realizar cenas de uma leveza cômica: Frida Kahlo numa viagem pelos Estados Unidos encontra as estrelas do cinema americano: Valentino, Charlie Chaplin, Frankenstein […]144

.

Roelke (Die Zeit, 1982) comenta ainda que é surpreendente o fato de Kresnik, ao coreografar Frida Kahlo, não se referir aos momentos políticos da pintora:

Ele não mostra a artista identificada com as raízes da cultura pré- colombiana, nem a sua ligação com o partido comunista, […] nem a Frida Kahlo gravemente doente e já marcada pela morte que participa de uma demonstração de rua levantando o punho como guerreira revolucionária […]145

.

Eckhard Roelke relata que o interesse de Kresnik é apresentar somente a ideia de sofrimento. A pintora Frida Khalo, como um indivíduo em sofrimento – uma mulher movida ida e volta entre encantamentos orgásticos e profundas decepções, estarrecida pelo medo. ―A simultaneidade é conseguida fazendo três dançarinas representar Frida Kahlo. […] A ele interessa essa extrema mulher com seu sofrimento incompreensível e sua vontade de viver,