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2 CONCEITOS ENTRECRUZADOS NAS CULTURAS OCIDENTAIS

2.2 INTERCULTURALIDADE COMO FENÔMENO CATALISADOR

Cada cultura se encontra permanentemente num processo aberto a mudanças e renovações, seja entre os multifacetados componentes da cultura própria, isto é, intraculturalmente, seja através de encontros ou fricções com outras culturas, isto é, interculturalmente. Esses processos se desdobram de forma natural e pouco consciente, já no dia a dia da vida cotidiana, entre os estratos culturais das camadas sociais e entre as diversidades regionais. Bem mais evidentes são as fruições interculturais nas áreas das ciências e das artes.

Autores como Homi Bhabha, Stuart Hall e Edouard Glissant, numa visão mais ampla, incluem nas suas considerações também fatores econômicos, políticos e sociais. Componentes políticos entram nesse jogo em torno de conceitos ou preconceitos de nação e de identidade étnica ou religiosa. Além do mais, esses autores, com focos diferenciados, chamam atenção para aspectos de racismo e crioulização, em perspectivas históricas incluindo dois temas dos estudos culturais: o orientalismo e o pós-colonialismo.

Nas suas experiências e nos seus estudos sobre interculturalidade, Johannes Odenthal (2004, p. 145), ex-diretor da Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt) de Berlim, destaca na atualidade duas novas tendências: o crescimento das migrações internacionais e o surgimento de fundamentalismos culturais. Conforme o autor, novos fundamentalismos se instauram no final da Guerra Fria, substituindo o confronto comunismo/capitalismo, formando-se basicamente no mundo árabe, no subcontinente indiano e em partes do mundo cristão. Principalmente estigmatizações do mundo islâmico prejudicam um diálogo cultural mais produtivo durante séculos. Do outro lado, as flutuações migratórias

e as consequentes fusões populacionais levam a relativizações das identidades étnico- culturais, até identidades híbridas, sem negar os conflitos que esses encontros e confrontos às vezes desencadeiam.

Nas suas considerações sobre orientalismo e pós-colonialismo, fenômenos de importância histórica no Ocidente europeu e nos países do terceiro mundo, Odenthal observa atualmente uma aproximação diferenciada a respeito do relacionamento Ocidente-Oriente:

―Foi a publicação revolucionária de Edward W. Said que na década de 80 estabeleceu que o oriente é uma invenção do ocidente, uma projeção da cultura própria à outra‖ (ODENTHAL,

2004, p. 137). De uma maneira altamente complexa, essa determinação alheia do Oriente, principalmente do Oriente Médio, codeterminou uma nova autocompreensão cultural desta região, esclarecendo que cada confronto substancial ou artístico exige uma avaliação das maneiras de percepção desenvolvidas através dos séculos. O autor enfatiza que, além do aspecto da determinação da cultura alheia, é principalmente a assimetria de poder entre o colonialismo europeu e a nova autodeterminação árabe no século XX que atinge imagens culturais sob aspectos políticos. Dessa forma, a percepção da modernidade ocidental que existe na Índia está para o autor interligada com a época colonial britânica e não pode ser decifrada fora de seu contexto político.

Nesta introdução sobre interculturalidade, procurando atender à extensão que o assunto exige, recorre-se à seguinte definição de civilização e cultura:

A humanidade alcançou um nível histórico capacitado tecnicamente, de

organizar um mundo pacífico – um mundo sem exploração, miséria e medo;

se isso for alcançado, a humanidade será uma civilização que se torna cultura [...] Definimos, portanto, ―Cultura‖ como um processo de humanização, caracterizado pelo esforço coletivo, de preservar a vida humana, de pacificar, de consolidar uma organização produtiva da sociedade, de desenvolver as capacidades mentais do ser humano e de reduzir e sublimar agressividade, violência e miséria (MARCUSE, 1968, p. 148-156).

A pacificação da luta existencial e o alcance de um progressivo estágio civilizatório da humanidade têm sido enormemente prejudicados pelas percepções preconceituais e prejudiciais que se tem da cultura alheia, pelas afirmações identitárias e finalmente pela desigualdade de poder. As repetitivas afirmações de identidades pessoais e culturais são, de fato, resíduos do romantismo individualista e nacionalista europeu do século XIX. De um lado, surgiram como afirmações emancipatórias culturais e nacionais na era pós-napoleônica

europeia e, de forma tardia, mas semelhante e de igual importância, no período pós-colonial nos países ex-colônias europeias. De outro lado, transformaram-se sucessivamente em bandeiras das classes e países dominantes por interesses econômico-políticos. Em princípio, são conceitos políticos reacionários em vista das afirmações democráticas nacionais e internacionais, desde o século XIX até os nossos dias, diante dos ideais sócio-humanísticos e universais da Revolução Francesa: ―liberdade, igualdade, fraternidade‖, a base para conceitos inalienáveis dos movimentos socialistas e seu caráter internacionalista. Em nossa era de decadência dos valores éticos e morais burgueses nas sociedades e principalmente nas classes políticas dominantes, novos movimentos internacionalistas e transnacionais assumem e defendem esses valores, como, por exemplo, os movimentos pacifistas e antiglobalistas espalhados no mundo – fatores de maior importância também para novas formas de encontro

e entendimento político e cultural, portanto intercultural, uma vez que ―cultura‖ representa um

essencial fermento e ferramenta política (ODENTHAL, 2004, p. 145-147).

Novos parâmetros, desde o final do século XX, questionam a identidade cultural como uma afirmação fictícia, já que nenhum indivíduo, nenhuma etnia, nenhuma cultura pode reclamar identidades definitivas e definíveis, pois estas estão sujeitas a processos de transformação permanente, expostas a influências e fricções com o ―outro‖, com o ―alheio‖. O etnólogo e filósofo cultural francês Michel Leiris, no seu livro fundamental A cultura própria e a cultura alheia, defende a tese de que um humanismo ativo deve partir de uma liquidação do etnocentrismo, [...] ―etnias com culturas não são realidades rígidas, não existem em isolamento, mas vivem como organismos em movimento; [...] a variedade e multiplicidade de contatos entre culturas como entre indivíduos contribui e inspira uma vida espiritualmente

mais ampla e mais intensa‖ (LEIRIS, 1977, p. 97-100). Qualquer isolamento identitário

levaria infalivelmente a um enfraquecimento e entorpecimento da cultura.

Para se entender a ampla relevância do interculturalismo, a conscientização das premissas apresentadas foi indispensável, tratando-se da variedade de conceitos interculturais que se quer abordar para o entendimento das encenações teatrais que compõem esta tese. Foi importante também perceber que o interculturalismo não é um fenômeno da contemporaneidade, mas que acompanha a história da humanidade gerando mudanças e transformações, às vezes, em decorrência de invenções ou descobertas próprias, outras vezes, como resultado de plágios espontâneos ou impostos, visto que as culturas estão permanentemente em estado movente. Assim as reflexões que seguem procuram entender

criticamente o dinamismo criativo e inspirador que se dá entre culturas e artistas e quais são as variantes de interculturalismo encontradas.

Processos interculturais observam-se em confrontos/encontros reais de manifestações culturais e artísticas, sejam estes individuais ou coletivos, passando por dinâmicas diversas cujos efeitos podem ser múltiplos e bem diferenciados. Inicialmente, pode ser uma mera percepção da diferença cultural, que eventualmente vem despertando a curiosidade de se conhecer mais profundamente a outra cultura, seja ela teatral, musical ou de outras formas artísticas. Especialmente em atos de criação artística, a percepção/compreensão intercultural pode acontecer mais aprofundadamente: além da troca dos conhecimentos entre cultura própria e cultura alheia em suas diferentes formas de manifestação, pode desenvolver-se em vários formas de apropriação, adaptação ou assimilação parcial das propriedades da outra cultura de uma forma analítica e crítica. Desse modo, podem surgir amálgamas artísticos surpreendentes, de caráter inédito. Porém, conforme as observações de Schaffner realizadas durante seu trabalho intercultural em vários países:

[...] esforços de imitação são questionáveis porque eles podem se deixar levar por uma abnegação da própria cultura e assim produzir algo sem originalidade, falso. Mais questionáveis ainda artistas que se servem inescrupulosamente de elementos de outra cultura, sem o mínimo interesse ou esforço de compreender o espírito da outra cultura. O acontecimento intercultural é essencial em seu caráter processual, passando por fases de reflexão, tensão e transgressão que em casos felizes, se materializam em obras artísticas abrindo novos horizontes e perspectivas de criação e, ainda, no seu confronto com o público despertam avaliações que abrem e ampliam a sensibilidade perceptiva crítica do espectador (SCHAFFNER, 2009, p. 15).

Tomando Cultura sob a perspectiva de interculturalidade no fazer teatral, essa experiência vai bem além do intercâmbio, estabelecendo um encontro entre culturas, conforme Pavis11 (1996, p. 1), uma experiência que atua na síntese de tradições heterogêneas e propaga novos gêneros. Nesses processos de cooperação artística, ocorrem frequentemente as seguintes fases: inicialmente um despertar para a cultura do outro, observações, fricções, e depois influências recíprocas, principalmente nas técnicas de interpretação do ator, nos métodos e conceitos de encenação e de adaptações de materiais ―alheios‖, incluindo, também,

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Patrice Pavis, professor da Universidade de Paris 8, vem desde 1983 com sua obra Theatre at the crossroads of culture tratando de questões semióticas da cultura e da arte teatral e ao mesmo tempo catalogou termos para o seu Dictionnaire du théâtre, publicado em 1996.

certas estratégias do teatro ocidental para reconquistar e incorporar valores e tradições perdidos ou suprimidos da cultura própria.

A partir dos anos 1980, surgiram, no contexto da cultura, inclusive do teatro, expressões que diferenciam e caracterizam o interculturalismo. Procurando oferecer clareza terminológica, Pavis (1983) oferece as seguintes definições:

Intercultural não deve ser confundido com internacional, com a internacionalização do intercâmbio através de festivais ou alianças;

Intracultural se refere à pesquisa e redescoberta de formas e elementos esquecidos ou reprimidos dentro tradições próprias;

Transcultural representa a busca de valores e modos de expressão considerados universais na condição humana;

Ultracultural indica um retorno às origens do teatro, a ritos e cerimoniais autênticos, uma reapropriação de linguagens primitivas;

Precultural procura redescobrir tradições ou técnicas preexistentes antes da individualização das culturas orientais e ocidentais;

Pós-cultural em concordância com o chamado pós-modernismo indica a tendência de reciclar fragmentos de diversos contextos culturais, independente dos seus contextos históricos, sociais e políticos;

Metacultural, termo derivado da meta-linguagem científica: uma cultura comentando interpretativamente sobre outra, como na literatura ou nas artes plásticas (PAVIS, 1996, p. 7-8).

Na área de teatro mais especificamente, são apresentadas as seguintes diferenciações:

Teatro intercultural: criando formas híbridas, baseando-se mais ou menos conscientemente na mistura de tradições cênicas oriundo de uma variedade de áreas ou épocas culturais; a hibridação freqüentemente faz desaparecer a distinção das formas originais;

Teatro multicultural: influências de cross-over (cruzamento) entre diferentes grupos étnicos ou lingüísticos em sociedades multiculturais;

Colagem cultural: um teatro ou produção cênica que cita, adapta, reduz, amplia, combina e mistura uma variedade de elementos independente do seu valor ou importância étnico-cultural originais;

Teatro sincrético: uma reinterpretação criativa de material cultural heterogêneo, resultando em novas configurações;

Teatro pós-colonial: assume elementos tradicionais da própria cultura ex- colonial ou neocolonial, reutiliza numa perspectiva indígena, resultando numa mistura de linguagens e dramaturgias e processos de encenação; Teatro do quarto mundo: um teatro de autores e diretores de culturas pré- coloniais, que se tornaram culturas minoritárias ou em culturas colonizadas (ex.aborígenes na Austrália, índios nas Américas) (PAVIS, 1996, p. 9-10).

Esta variedade de categorias não representa uma fixação acadêmica. Para o autor, são opções básicas sobre infinitas formas de amálgamas nos possíveis processos e produções criativas, numa era em que se dispensou a normatização nas artes cênicas. Independente de preconceitos puristas, oferecendo possibilidades inéditas de liberdade criativa, a interculturalidade nas práticas artísticas abriu um espectro rico, ajudando, evitando ou até resistindo a qualquer estandardização.

O teatro intercultural é caracterizado pela re-elaboração de conceitos desenvolvidos, a partir de formas existentes, com a intenção de renovar e revitalizar tradições próprias, eventualmente criando efeitos de distanciamento e estranheza. Às vezes, uma atitude mais formalista se apropria do ―alheio‖ meramente por razões estéticas.

Reflexões sobre o processo de interculturalidade podem ser elucidadas através da metodologia da ampulheta, usada por Pavis na sua teoria de cultura e encenaçã o. Trata-se de um estudo dos filtros entre a cultura própria e a alheia. Os grãos de uma cultura para outra, no movimento da ampulheta, servem para demonstrar a relatividade da noção da própria cultura e suas infinitas camadas sedimentares. Desta maneira, temos em processos interculturais no topo da ampulheta um conjunto ou bola que representa a cultura estrangeira ou cultura -fonte e abaixo outro conjunto ou bola como cultura-alvo. Ambas as culturas, neste caso, estão formatadas em modelizações antropológicas, socioculturais e artísticas, passando por um gargalo de afunilamento, para serem absorvidas a partir do olhar observador da cultura-alvo.

Com efeito, a transferência cultural não apresenta escoamento automático, passivo de uma cultura para outra. Ao contrário é uma atividade comandada muito mais pelo conjunto inferior da cultura-alvo e que consiste em ir procurar ativamente na cultura-fonte, como que por imantação, aquilo de que se necessita para responder às suas necessidades concretas (PAVIS, 2008, p. 3).

O autor ressalta a complexidade do processo de cruzamento entre culturas, sinalizando que qualquer apropriação de outra cultura está sujeita aos imperativos da cultura-alvo, que se apropria conforme seus interesses e pressupostos artísticos. A ampulheta será virada várias vezes, revolvendo a sedimentação, infinitamente.

É na encruzilhada onde os caminhos das tradições e práticas artísticas se cruzam, resultando numa hibridação das culturas. É nesses processos de cruzamento que a antropologia, a sociologia e a etnocenologia, juntamente com as artes espetaculares,

encontram seus caminhos. Caminhadas, por vezes, tortuosas e ambíguas, que permitem que as culturas se interpenetrem, tecendo suas teias.

O teatro no cruzamento de culturas (PAVIS, 2008) é uma obra que versa sobre a prática de entrecruzamentos realizada por criadores ocidentais que deram visibilidade e novos sentidos encenatórios para o teatro. Iniciando com diretores como Meyerhold, Artaud e Brecht, que buscaram inspiração em tradições culturais do Oriente, o teatro tem mais tarde desdobramentos radicais da encenação multicultural por Barba, Brook e Mnouchkine, entre outros. Para Pavis, a encenação intercultural figura como clássica e pós-moderna entre nova e eterna.

Eterna no sentido de que a representação teatral tem misturado, desde e sempre, tradições e estilos os mais diversos, traduzidos de uma língua ou linguagem para outra, percorrendo espaço e tempo em todos os sentidos; nova no sentido de que a encenação ocidental, noção esta recente, pratica tais cruzamentos de representações e tradições de forma consciente, afirmativa e estética, somente a partir das experiências das vanguardas (PAVIS, 2008, p. 6).

Concordando com a potencialidade de troca e encontro de culturas a partir das vanguardas históricas europeias e percebendo a repercussão estética, na dança moderna, em trabalhos como os de Isadora Duncan e Ruth Saint Denis nos EUA, que em suas propostas de inovação redescobrem culturas clássicas para suas coreografias, propõe-se nesta tese uma leitura intercultural da dança alemã do primeiro período no Monte Veritá12. A Ausdruckstanz, ou dança expressionista, exerceu um papel de fundamentação da ciência da expressão cujo norteamento foi a experiência das vanguardas. Em estudos anteriores para a dissertação do mestrado, foi traçado o perfil dos seus criadores – Rudolf Laban, Mary Wigman e Kurt Jooss e outros –, que contribuíram para o seu desenvolvimento, como também do francês François Delsarte com seus estudos antecipatórios, realizados por volta de 1876, conhecidos por Duncan e Laban.

Esta pesquisa busca identificar convívios interculturais na dança ainda no início do século XX, na Alemanha, onde as interligações sociopolíticas e culturais se deram através da troca entre pensadores e artistas de diversas partes da Europa, inicialmente da França. E, mais

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Monte Veritá, localizado em Ascona na Itália, ficou famoso pelas comunidades artísticas e intelectuais que lá se hospedavam no início do século XX. Rudolf Laban ficou conhecido por suas primeiras experiências de dança livre, subjetiva e expressiva, que mais tarde se chamou Ausdruckstanz alemã (German Expr essionist Dance).

decisivamente depois, a partir do encontro e da convivência estética das ideias rebeldes e vanguardistas dos movimentos do expressionismo alemão e do futurismo russo.

A Ausdruckstanz alemã, liderada por Rudolf Laban, se distancia da tradição do balé clássico, gerando uma dança subjetiva, de particular fecundidade expressiva e teórica, que dá início à história da dança moderna mundialmente. Após interrupções durante o nazismo (1933-1945) – assunto que terá a extensão merecida na terceira parte da tese –, a dança na Alemanha passa por várias recepções culturais, principalmente das culturas dos países que ocuparam a Alemanha após a Segunda Guerra Mundial. A ascensão do balé (russo e inglês) e o declínio da Ausdruckstanz, assim como a sua migração para a América Latina, são assuntos que preparam a base para as discussões e análises da dança alemã do final dos anos 1970. Esta, influenciada pelas ideias de vanguardas estadunidenses dos anos 1960, cria na Alemanha ensembles multiculturais que praticam pesquisas coreográficas em várias culturas estrangeiras, liderados por Pina Bausch e Johann Kresnik, e ainda com importantes experiências interculturais das dançarinas e coreógrafas Susanne Linke e Reinhild Hoffmann.

Estes coreógrafos sustentam tendências neoexpressionistas com o surgimento e a consolidação, nos anos 1980, dos conceitos de dança-teatro e de teatro coreográfico. Estas duas tendências estão concentradas no corpus da tese, que procura fortalecer sua base de pesquisa em estudos de caso, entendendo os aspectos formadores das encenações Dendê e Dengo e Merlin ou A Terra Deserta , cujos conceitos criativos perpassam estes estilos, também sob o aspecto de interculturalidade.

Examinando em outros campos a validade dos conceitos de multiculturalidade, interculturalidade e transculturalidade, chama atenção o pensamento do antropólogo Massimo Canevacci sobre o assunto. O autor analisa multiculturalidade e seus subsequentes desdobramentos (inter e transculturalidade) como irradiadores da cultura hegemônica que unifica e dita regras. O debate parte da formação social norte-americana no começo do século XX e o consequente neocolonialismo cultural gerado e imbricado no vínculo interculturalidade-etnicidade.

A formação social norte-americana foi desenvolvida por uma multiplicidade de diferentes culturas, cada uma delas, de uma forma ou outra, envolvida e encerrada em seus próprios recintos culturais e etnocentrismos cultivados, repetindo os estereótipos do país que lhe hospeda.

E no centro desse estranho multiverso irradia-se ―a‖ cultura hegemônica estadunidense através de regras estáveis e unificadas. O multiculturalismo,

assim, torna-se um slogan que atesta o indiscutível controle na valorização de uma mesma cultura – aquela wasp13 – e a marginalização de todas as outras, mais ou menos exotizadas, em mútua competição para serem reconhecidas e convidadas a se sentarem na última fila do teatro social (CANEVACCI, 2009, p. 137).

Tomando como exemplo dois filmes, West Side Story e Blade Runner, o autor faz a leitura da ambiguidade do processo multicultural norte-americano: o primeiro filme transforma o confronto familiar em confronto racial; o segundo, com sua proposta mix e muitiétnica, aparenta uma visão futurista que no fundo legitima uma mesma cultura, a cultura Wasp, com as regras determinadas sempre pelos brancos, na versão humana (o herói), na pós- humana (o clone) e na semidivina (o criador). O arco-histórico cultural norte-americano simboliza o domínio imodificável dessa visão multicultural, colocando o Wasp no centro das atenções e todo o resto na periferia. Para o autor, o conceito multicultural neste caso permanece inalterado. A multiculturalidade sendo de forma endogâmica voltada para um interior de um estado-nação e a interculturalidade vista de forma exogâmica, inclusive se estendendo globalmente a outros horizontes (CANEVACCI, 2009, p. 138).

Segundo Canevacci, o conceito de interculturalidade é uma tentativa de traduzir para outra terminologia, que apoia a comunicação e o entrecruzamento de culturas, a dimensão do atravessamento cultural da comunicação entre pessoas, para trabalharem melhor sob determinadas condições. A interculturalidade pode ser um vetor para gerir e resolver tanto incompreensões linguísticas quanto possíveis vínculos interculturais e étnicos. O autor, neste campo da comunicação entre culturas, tem preferência pela expressão ―sincretismo cultural‖, abrigando conflitos, tensões, diagonalidades e irregularidades e fugindo de um funcionalismo asséptico (CANEVACCI, 2009, p. 139).

O conceito de interculturalidade como exogâmico, estendendo-se para outros confins, coincide com o caminho da antropologia teatral de Eugênio Barba. Para ele, o conceito de teatro é semelhante ao das ―ilhas flutuantes‖, um terreno incerto e inseguro, que pode desaparecer sob os pés. Daí a necessidade de se abandonar a segurança da terra firme e partir para uma existência precária e construir novas ideias na base de troca. Ao perguntar-se sobre o seu primeiro dia de teatro, o autor responde:

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Wasp (White, Anglo-Saxon and Protestant) significa (Branco, Anglo-Saxão e Protestante). Sigla para identificar o tipo predominante nos EUA e seus preconceitos étnicos e religiosos. A cultura Wasp surgiu no