• Nenhum resultado encontrado

3 DOS IMPULSOS CULTURAIS A PARTIR DA VIRADA DO SÉCULO

3.8 NOMADISMO NA DANÇA-TEATRO

Interculturalidade e Nomadismo Cultural

O isolamento da Alemanha durante o nazismo, assim como a repressão às artes revolucionárias das primeiras três décadas do século XX, consideradas como ―degeneradas‖, havia impedido qualquer intercâmbio cultural internacional. Depois da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha acordou num vácuo cultural, nacional e internacional. Os primeiros anos foram caracterizados por uma fome de se re-conectar com o mundo, principalmente com as culturas dos aliados ocupantes: EUA, França, Inglaterra e União Soviética, de modo

especial nas áreas da literatura, das artes plásticas e do cinema. No decorrer dos anos 1950 e início dos anos 1960, iniciava-se uma nova produção artística, reavaliando as tradições alemães no novo contexto relativamente internacional. Parece até sintomático que esse processo se mostre mais evidente na arte não verbal da dança, que de certa forma conseguiu sobreviver ao nazismo e que já antes cultivava amplas conexões interculturais.

A Alemanha, desde os anos 60, destacou-se por um crescente número de festivais culturais internacionais, inclusive nas categorias da dança. Essa política de intercâmbio cultural culminou, nos anos 1990, em promoções como a ―Oficina Europeia de Dança de Munique‖, o ―Dança-Teatro Internacional de Hannover‖ ou o ―Festival de Dança Internacional do Estado de Nordrhein-Westfalia‖. Estas iniciativas resultaram em redes internacionais com várias culturas de dança:

A dança na Alemanha tornou-se internacional não somente por inúmeros artistas que aqui encontraram oportunidades de trabalho ou foram convidados para realizar coproduções, mas também por coreógrafos alemães que ganharam múltiplas experiências no exterior e mantiveram um intercâmbio internacional155 (MÜLLER, 20003, p. 272).

Nesse contexto, vale diferenciar distintamente duas tendências dominantes, uma das quais negativa, pois muitos países começaram a intensificar uma política de exportação cultural, porém às vezes numa mera propaganda dos seus interesses comerciais. Não se nega que também desta forma se estimule um interesse pela outra cultura, mas infelizmente aconteceram apresentações limitadas, efêmeras e isoladas de produtos nacionalisticamente e comercialmente consagrados que contribuíram muito pouco para um entendimento cultural mútuo, e que não representavam a verdadeira cultura viva e atuante dos países de origem. Um encontro intercultural mais aproximado, de fato, somente pode acontecer entre artistas ou grupos de diferentes culturas engajados em projetos comuns, de forma processual, expondo-se a fricções e compreensões criativas. Por isso interessa a outra tendência, positiva, de alguns coreógrafos alemães nas suas excursões internacionais.

Em meados dos anos 1980, de fato, coreógrafos e ensembles alemães intensificaram seu interesse de se inspirar por outras culturas. Principalmente Pina Bausch, que iniciou uma série de coproduções na Itália, em Portugal e em outros países. Curiosamente, até agora, poucos autores tentaram analisar esses processos criativos ou até mesmo revelar os motivos dessas

155

excursões. Analisando os resultados artísticos desses encontros culturais, chegamos a duas possíveis conclusões: desde o início dos seus trabalhos, dos elencos de Pina Bausch sempre participaram dançarinos de diversas culturas, inclusive integrando as suas respectivas personalidades e fundos culturais criativamente nas produções e abrindo desta forma os horizontes cultural-humanos. De outro lado, percebe-se que a principal fonte de criação de Pina Bausch, a relação mulher-homem na sociedade alemã, parece ter chegado a certo esgotamento, estagnação e repetição, talvez portanto sugerindo a busca de novas inspirações em outras culturas. E, de fato, com seus elencos, em todas essas aventuras culturais, foram várias semanas em diferentes cidades ou regiões para perceber e estudar os contextos sociais específicos. Os resultados artísticos, porém, são de certa forma curiosos: parece que não foram estudadas profundamente as outras culturas como tais, limitando-se a pesquisa à observação e percepção superficiais de comportamentos cotidianos e relações humanas

individuais do ―outro povo‖. De uma forma extrema, pode-se dizer que Pina Bausch

continuava a perseguir sua temática dominante, colorindo-a com toques ―exóticos‖, sem chegar a concretizar trabalhos interculturais propriamente ditos. Positivamente, pode-se dizer que desta forma de trabalhar, fora da sua própria cultura, Pina Bausch universalizou sua preocupação temática e artística, sem cair na armadilha de folclorizações. A enorme aceitação desses espetáculos aplaudidos nas suas turnês internacionais poderia provar esse caráter universal.

Ave de Arribação: Pina Bausch

Com depoimentos e considerações de dois escritores e críticos que acompanharam de perto o trabalho de Pina Bausch e o Tanztheater Wuppertal durante três décadas, inicio a discussão sobre o nomadismo no trabalho de Pina Bausch.

As minhas primeiras conferências, ilustradas por gravações em vídeo, no início dos anos oitenta resultaram ainda em horas e horas de discussões e perguntas agressivas: Será que isso é dança? Será que o senhor considera isso como arte? A pergunta mais colocada por não alemães foi: Será que o trabalho de Pina Bausch (ainda) é dança? E se não for: Em qual gaveta caberia e como poderia ser designado? Mas a segunda pergunta mais frequente aconteceu […] num simpósio em Nova Delhi em 1994 sobre dança indiana e dança alemã, onde foi colocada a pergunta em que medida a obra de Pina Bausch é realmente alemã [...] Pina Bausch [...] preferiu ser compreendida como uma artista internacional mais do que alemã. ―Se eu fosse um pássaro?‖, perguntou ela retoricamente aos presentes, ―os senhores

gostariam de me designar como um pássaro alemão?‖. Obviamente não houve resposta. Mas ficou claro o que ela se considera: Uma ave de

arribação que tem casa no mundo inteiro156 (SCHMIDT, 2002, p. 220-223).

Trinta anos depois do livro ―Pina Bausch: Wuppertaler Tanztheater‖, Norbert Servos publica ―Pina Bausch: Tanztheater‖ (2008) e na apresentação faz as seguintes ponderações:

O modelo de Wuppertal criou um teatro do mundo muito rico em formas e cores, ambientes e imagens, motion em movimento, um teatro do mundo onde se fala sobre os sentimentos elementares, esperanças e saudades, medos e aflições [...] Com todo direito Pina Bausch sempre insistiu que a respeito do seu trabalho não pode tratar de opinar sobre coreografia. Seu teatro de dança não é uma técnica, mas incorpora uma atitude em relação ao mundo que consegue observar as pessoas e seu comportamento com uma honestidade e precisão incorruptíveis e sem julgamento. Em Bausch as pessoas são mostradas como elas são e não como deveriam ser [...] O seu Work in Progress que passa de peça em peça se compreende como um incansável teste de sorte entre tentativas e erros que nem no fracasso perde seu humor157 (SERVOS, 2008, p. 7-11).

Interessa, neste estudo, averiguar o modelo Wuppertal como um ―teatro do mundo‖

conduzido por Pina Bausch, como também as experiências interculturais de outros coreógrafos alemães, considerando o conceito do nomadismo158. Curiosamente, testemunhei uma das primeiras excursões do Tanztheater Wuppertal ao Sudeste Asiático. Foi em janeiro/fevereiro de 1979, em Calcutá, quando morava e trabalhava nessa cidade, e o grupo se apresentou com a Sagração da Primavera . No mesmo ano, em estágio em Wuppertal a convite de Pina Bausch, assistindo aos ensaios da peça 1980, pude perceber que depois da referida turnê havia o desejo da coreógrafa de realizar experiências fora de Wuppertal. Para Pina Bausch, só Wuppertal não era suficiente, e o desejo de perambular entre os mundos, a fascinação pelo outro e a vontade de transitar por novas identidades já estavam internalizados. Foi isso que lhe conferiu um diferencial – sua visão ampla do mundo – e a consequente consistência conceitual e estilística como uma criadora pós-moderna. A antecipação dos

eventos, a descoberta da ―diagonalidade do ser humano‖ em cada peça e a convivência com

156 Tradução nossa. 157 Tradução nossa. 158

Trata-se de formas de existência não sedentária caracterizadas por transgressões e delimitações internas ou intelectuais. Refere-se a sujeitos que inicialmente não têm uma localização definida, que vivem em perambulações, viagens, fugas, emigrações, migrações. Tais movimentações de busca levam a novas autodefinições, misturando, amalgamando, hibridizando velho e novo, próprio e alheio. Ver mais em: Nomadische Existenz Vagabondage und Boheme in Literatur und Kultur des 20. Jahrhunderts, Org. Walter Fähnders (2007, p. 8).

pessoas numa existência sem raízes, típicas da pós-modernidade, forjaram o modelo Wuppertal como um teatro de mundo, tornando-o nos últimos vinte anos um vagante entre culturas.

Pode-se dizer também que a sensação de estar entre Wuppertal e o mundo, ou seja, entre uma cidade do interior de um complexo industrial europeu de céu cinzento e a perspectiva de conhecer e trabalhar em cidades e culturas diferentes com projetos instigantes, levou Bausch e

seus dançarinos migrantes do mundo a uma prática de ―existência sem pátria‖, de forma tão

intensa, que lhe assegurou um princípio estético. A Heimatlosigkeit (existência sem pátria) passou a ser uma forma de criar do grupo internacional de Wuppertal. A pulsão para ciclos nômades de Bausch foi incondicionalmente acatada por Arno Wüstenhöfer159, que deixou as

portas da Operahaus de Wuppertal abertas para o seu retorno dos voos ―errantes‖.

O sociólogo Michel Maffesoli (2001) afirma que a errância e o nomadismo, sob diversas variações, se torna na pós-modernidade um fato cada vez mais evidente. Como uma

―metafísica sociológica‖, as vagabundagens pós-modernas são ideias de adotar a errância

como um modus operandi: ―Trata-se de uma tendência geral de uma época que, por uma volta cíclica dos valores esquecidos, se liga a uma contemplação daquilo que é‖ (MAFFESOLI, 2001, p. 28). A pós-modernidade está, conforme o autor, se constituindo em torno da ideia do

enraizamento dinâmico, partindo de uma vagabundagem existencial desenvolvida pela ―sede do infinito‖, que se desenrola a partir do oco e do desejo do outro lugar. Nomadismo e

errância são partes centrais da obra de Maffesoli160, que, partindo de uma posição

fenomenológica, constrói com base no que ele chama de ―lógica contraditorial‖ um discurso

sobre a dialética em que os opostos permanecem em contínua tensão, sem síntese, na qual a ideia de progresso apreciada pela maioria dos pensadores dos séculos XVIII e XIX não existe (MAFFESOLI, 2001, p. 92). Para esse autor, o par antinômico nomadismo-sedentarismo se

expressa e constitui um ―dado mundano‖, ganhando a forma de uma espécie de enraizamento

dinâmico. Esses polos ambivalentes se tornaram, na pós-modernidade, ―um vai e vem das

peças que dão equilíbrio às máquinas, aquele pólo que se descuidou retoma a importância‖

(MAFFESOLI, 2001, p. 103). O nomadismo como uma forma arcaica é retomado conceitualmente na pós-modernidade. Segundo Maffesoli, o homem pós-moderno estaria

impregnado de errância, de um lado místico de ―religação‖.

159

Arno Wüstenhöfer, diretor da casa de Ópera de Wuppertal que convidou Pina Bausch em 1972 para Wuppertal e que a apoiou durante muitos anos, incentivando a concretização do que hoje se conhece do trabalho de Bausch e do seu ensemble.

160

Sobre o nomadismo: vagabundagens pós-modernas. Originalmente publicado em francês em 1997. No Brasil, em 2001 pela Record.

A errância, finalmente, é apenas um modus operandi que permite abordar o pluralismo estrutural dado pela pluralidade de facetas do ―eu‖ e do conjunto social. E também um modo de vivê-lo. Em seu sentido mais estrito é um êxtase que permite escapar simultaneamente ao fechamento de um tempo individual, ao princípio de identidade e à obrigação de uma residência social e profissional (p. 113).

O nomadismo e a errância se relacionam com a pluralidade de valores e a pluralidade de papéis numa nova dimensão da vida que levaria ao encantamento pessoal e re-encantamento do mundo. O habitante das megalópoles seria, de certa forma, um novo tipo de nômade, um

errante que muda de aparência e de papéis na ―vasta teatralidade social‖ – a procura de uma

dimensão qualitativa da existência. O que o move é o desejo de evasão: ―É uma espécie de pulsão‖ (p. 225-227). Com variadas modulações, Maffesoli vê a errância como um dos polos fundadores da estrutura social.

Todos Querem Pina

Sobre as montagens/colagens ―nômades‖ de Pina Bausch, aquelas que iniciam através de contatos e coproduções no estrangeiro, Jochen Schmidt escreveu ―Alle wollen Pina‖ (Todos querem Pina) com observações e registros valiosos. Ele esclarece que, em meados dos anos 1980, alguns teatros, cidades e até regiões não se contentaram mais em receber o Tanztheater Wuppertal só como visita, e queriam peças próprias criadas para eles com coparticipação nos custos de produção.

Teatros ou instituições de diversas cidades convidavam a coreógrafa e o grupo para várias semanas de residência, ainda sem honorários, para uma pesquisa inicial. Depois dessa primeira fase, a obra era desenvolvida e estreada em Wuppertal. A primeira peça a ser produzida desta forma foi Viktor, em maio de 1986. Os títulos das peças do grupo de teatro de Pina Bausch muitas vezes não têm muita significação. É revelado que ―Viktor é uma criança suja brincando numa mina de carvão [...] nós o encontramos numa mina de carvão ou em uma vala de mortos em massa [...]‖161 (SCHMIDT, 2002, p. 146).

161

O autor explica que a coreógrafa, como sempre, monta a sua peça de elementos díspares que mutuamente se completam, iluminam, transformam e questionam. Muitos desses elementos tratam de um profundo medo diante de uma possível catástrofe mundial, falam de morte e mutilação, de sofrimentos e torturas, pressões e saudades. As pessoas fogem do seu medo em atos insensatos e promiscuidade arbitrária. As surpreendentes mudanças de cena, frequentemente, quebram o conteúdo de maneira irônica para evitar uma interpretação simplória (p. 147).

A cidade de origem de Viktor, Roma, é percebida principalmente como lugar de uma vida intensa. Roma é perceptível, também, pela música italiana, principalmente, como lugar de que se fala. O grande leitmotiv do espetáculo é o fumar: como tique-nervoso e vício ao mesmo tempo. O espetáculo Viktor apresenta como as pessoas se destroem a si mesmas, enquadradas em pressões sociais, passando adiante o seu sofrimento e torturando o seu próximo. Às vezes, elas podem executar atos artísticos com defeitos físicos e celebrar atos sem sentido (p. 148).

Em maio de 1989, Pina Bausch e seu ensemble passaram seis semanas na Sicília para preparar, juntamente com o Teatro Biondo Stabile di Palermo, a peça Palermo Palermo. A peça começa com uma cena grandiosamente teatral – o desmoronamento de um muro de tijolos, que se transformam em perigosos obstáculos. Schmidt lembra que no mesmo ano aconteceu a queda do muro de Berlim e que haveria uma ligação entre os dois muros, mas Bausch negou tal interpretação. Para o autor, Palermo Palermo é uma continuação das peças sombrias e pessimistas de Pina Bausch. O nome Palermo representa menos a cidade siciliana do que algo abstrato, o estado desastroso do mundo. Num meio ambiente extremamente triste, pessoas deformadas tentam se afirmar obstinadamente através de movimentos nervosos, e surpreendentemente elas se apoiam mutuamente: ―Nunca antes numa peça de Bausch houve

tantas ações que o indivíduo só pudesse realizar com a ajuda de outros‖162

(p. 150). Antes de irromper o violento barulho da queda do muro, a peça começa com longas fases de silêncio, com melodias tristes de jazz e música renascentista, interrompidas por intervenções verbais como, por exemplo, um conto de um suicida, uma recitação de poemas, narrativas diversas e fragmentos de textos.

Observei no vídeo da apresentação de Palermo Palermo, no teatro Biondo, filmada em 17 de dezembro de 1989, algumas características dos espetáculos de Pina Bausch, como a utilização de animais (vivos ou confeccionados), e a constante utilização dos elementais:

162

água, terra, fogo e ar. Em Palermo Palermo, a presença do animal é marcada pela entrada rápida de um cachorro magro que come um prato de comida. O elemento terra nesse espetáculo é por várias vezes utilizado. Em uma das cenas iniciais, a dançarina italiana Beatrice Libonati toma um banho de terra, que ela traz num saco e joga sobre si. Depois ela contracena com dançarinos e, num determinado momento, a terra se transforma em barro molhado, que eles jogam no rosto dela. Na segunda parte do espetáculo, há um momento em que cai uma chuva de barro vermelho. Em Palermo Pa lermo, diferentemente do que ocorre em Vicktor, Pina Bausch encontra várias formas de fazer referências à Itália. Não só na música gravada, alta e quase sempre lenta, mas na entrada triunfal de seis pianos e respectivos pianistas, que tocam a Nona Sinfonia de Beethoven, escutada por uma mulher sozinha no palco. Também o figurino dá pistas, com mulheres trajadas de preto com pano na cabeça. A antológica cena do spaguetti, realizada pela dançarina espanhola Nazaré Panadero, marca o espírito italiano do espetáculo. Ela tira de uma sacola plástica um pacote de spaguetti e, a cada vez que mostra uma unidade, ela diz em alemão “Das ist mein sapaguetti” (Isto é o meu

espaguete), acentuando ―meu‖ e arrancando risos da plateia. Os conhecidos banhos ou

brincadeiras com o elemento água, uma recorrência em Bausch, também estão presentes nessa peça, uma das mais interculturais do repertório.

A peça seguinte em coprodução conta com a parceria de Madri e seu Festival de Outono. É a Tanzabend II (Noite de dança II), que só cinco anos depois ganhou este título, quando estreou em Wuppertal. O palco – por um pequeno milagre teatral do cenógrafo Peter Pabst – é transformado em uma área de neve com duas toneladas de cal, ganhando outras feições em projeções fotográficas: um deserto de areia, uma estrada no campo ou um jardim florido. A paisagem de neve é o espaço teatral perfeito para que aqueles sentimentos estarrecidos, quase congelados, cuidadosamente, se espalhem. Enquanto nas peças anteriores a coreógrafa trabalha sobre o que as pessoas mutuamente se afligem, essa nova peça trata do desencontro de pessoas solitárias na massa, tentando superar a solidão. A primeira metade da peça é dominada por mulheres se arrastando pela neve ou simplesmente deitadas de costas, esgotadas e desesperadas. Os homens são, principalmente, forças assistenciais conduzindo as mulheres a certas posições e a fazer certas coisas. Mas nenhum relacionamento homem- mulher é caracterizado por afeto ou amor. Cafajestes apresentam suas propriedades, senhorias levam seus cachorrinhos pelas ruas. Finalmente as mulheres se encontram deitadas nos braços dos homens, porém sempre virando as costas para eles que com suas mãos não pegam as mulheres, mas a si mesmos. O relacionamento do indivíduo consigo mesmo é o único

relacionamento que funciona no espetáculo. Também as muitas tentativas dos números de dança têm esse caráter egocêntrico. São todos solos onde os corpos se entortam e enrijecem, e se dança principalmente com os braços. Da cor da metrópole espanhola só sobraram alguns rudimentos, algumas brincadeiras verbais, algumas historinhas. Mesmo a música, dominada por sombrios sons espanhóis, é internacional, entre ritmos africanos, pop songs americanas e sons árabes (SCHMIDT, 2002, p. 151-153).

A próxima peça é Ein Trauerspiel163 (Um triste jogo) – uma tragédia encomendada pelo Festival de Viena, estreada em Wuppertal, em 1994. O palco é vazio e deserto, mostrando uma paisagem fora de qualquer realidade. No meio de uma zona de aparente terra firme, em águas profundas, boia um grande pedaço de gelo. Porém, posteriormente, o gelo e a terra a seu redor são cobertos por areia escura de lavra vulcânica. A primeira cena parece africana, com música de cabaças. Um griô feminino – um daqueles cantores que nas culturas da África Ocidental passam os mitos populares e as fábulas de geração em geração – gira em torno do bloco de gelo. No entanto, a peça de Bausch não acontece nos recônditos africanos. Ela descreve nossa época em qualquer lugar como tempos finais: A Terra Deserta é o estágio de indivíduos na sua solidão numa sociedade que se acotovela. Para Schmidt, não se dança mais nas peças de Pina Bausch, e é quase desesperadamente que ela tenta reencontrar a dança, mas ironizando os movimentos de beleza estéril e tradicionais, quase sempre deixando o palco para sequências de um único dançarino.

Passou o tempo quando no palco de Wuppertal uma dezena de dançarinos concorreu para atuações diversas e passou também o tempo que o grande ensemble de dança atravessou o palco em guirlandas ou cortando diagonais. Trauerspiel é uma peça de reminiscências e de despedidas. Repetidamente alguém cai de cara na terra preta, às vezes como um pássaro marítimo

enfrentando a morte, empesteando as suas asas de petróleo164 (SCHMIDT,

2002, p. 154-155).

Nessa peça, a água tem um grande papel, ainda que um pouco vago – como fonte de