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3.1 CONFIGURAÇÃO DO CRIME

3.1.3 Bem jurídico protegido

O bem jurídico, como ensina Prado (2104, p. 219), é um “ente material ou imaterial extraído do contexto social, de titularidade individual ou metaindividual, considerado como essencial para a coexistência e o desenvolvimento do homem”. É um bem de valor fundamental para a comunidade e que alcança a proteção da norma jurídico-penal.

Nesse sentido, Fukassawa (2015, p. 268) identifica no crime do art. 306 do CTB que “o bem jurídico tutelado pela norma é a incolumidade pública relativa à segurança no trân- sito de veículos”. Para Nucci (2016, p. 902), “o objeto jurídico é a segurança viária”. Marcão (2017, p. 173) descreve o bem jurídico como “a segurança no trânsito, que irá proporcionar a preservação da incolumidade pública”. Por seu turno, Mitidiero (2015, p. 1143) defende que a proteção é conferida à segurança do trânsito, quando a via pública for elementar, ou a segurança “extratrânsito”, quando em local diverso da via pública. Capez (2016, p. 327) igualmente com- preende a segurança viária como bem jurídico protegido, citando dispositivo do código que estabelece o trânsito em condições seguras como um direito de todos.

Vê-se, pois, que há certo consenso na doutrina quanto à identificação da segurança viária ou da segurança do trânsito como objeto jurídico protegido pela norma. Não é diferente na jurisprudência. Já decidiu o Supremo Tribunal Federal:

Com efeito, a objetividade jurídica da mencionada norma transcende a mera proteção da incolumidade pessoal, para alcançar também a tutela da higidez física de tercei- ros e do corpo social como um todo, asseguradas ambas pelo incremento dos ní- veis de segurança nas vias públicas. (BRASIL, 2011b, grifo nosso)

Outrossim, a jurisprudência desta Corte vem afirmando que na embriaguez ao volante, por ser caracterizado como delito de perigo abstrato, para inaugurar-se a ação penal, basta o Parquet comprovar simplesmente que o sujeito dirigia embriagado em via pú- blica, pois não consta mais como elemento do tipo penal a efetiva capacidade lesiva da conduta, que vigorava no texto revogado. Este entendimento decorre da exclusão da elementar: “expondo a dano potencial a incolumidade pública”, levando a concluir que o perigo não é mais concreto, causador de dano imediato a outrem, admitindo-se agora o perigo abstrato ou presumido. Agora, a objetividade jurídica imediata é a segurança viária e, de forma indireta a incolumidade pública. (BRASIL, 2011a, grifo nosso)

A questão que se levanta é se a escolha deste bem jurídico pelo legislador está em consonância com um modelo de direito penal mínimo. Pergunta-se: a opção criminal do legis- lador refletiria uma proteção que recai, como visto, apenas de maneira subsidiária e somente sobre os bens jurídicos mais caros à sociedade?

A limitação do alcance do direito penal também é realizada através da seleção do bem jurídico a ser protegidos. Paschoal (2015, p. 3) ensina que a missão penal de proteger exclusivamente os bens jurídicos mais caros implica numa limitação do seu âmbito de incidên- cia. Como identifica em outra obra:

Em razão do grau de intervenção representada pelo Direito Penal, filósofos e penalis- tas passaram a desenvolver teses e teorias objetivando delimitar as situações em que o Estado poderia utilizar sua arma máxima, concebendo-se que um dos institutos cri- ados para tal fim foi o do bem jurídico penal, que, durante toda a sua história, inde- pendentemente da concepção adotada, cumpriu uma função de garantia para os indi- víduos na medida em que sempre teve em vista a redução do arbítrio ou subjetivismo do legislador (PASCHOAL, 2003, p. 25).

Desta feita, conforme Prado (2014, p. 65), cabe ao legislador eleger como bem ju- rídico penal tão somente aqueles de valor singularmente relevante para a vida social e definir como criminosos os comportamentos considerados altamente reprováveis e danosos. Mas o que baliza o legislador nessa escolha? O que pode e o que não pode, afinal, ser selecionado como objeto da tutela penal do Estado? É a clareza nessa identificação que refreia o ímpeto crimina- lizador do legislador.

Duas principais vertentes são apresentadas por Paschoal na discussão histórica do conteúdo do bem jurídico penal através da obra Constituição, criminalização e direito penal mínimo (2003, p. 25-48): a primeira eminentemente formal e a segunda precipuamente material.

Na ótica formalista, o bem jurídico é simplesmente eleito, criado pelo legislador na medida que considera aquele bem importante para a condição de vida da comunidade. O im- portante não é o valor efetivo do bem protegido em si, mas sim a escolha legislativa, ainda que aleatória. Para a corrente do bem jurídico material, por sua vez, o legislador não cria os bens

jurídicos penais, apenas os identifica no cenário social, protegendo-os mediante a norma incri- minadora. Para essa corrente, “o bem jurídico não é um bem do direito, mas um bem do homem que o direito reconhece e protege” (PASCHOAL, 2015, p. 6).

Paschoal (2003, p. 49) ainda indica que, a partir da concepção de que se deve buscar o bem jurídico penal na sociedade, surgiu a ideia de que somente a Constituição identifica os bens a serem protegidos pelo legislador. Prado (2104, p. 219) segue no mesmo sentido ao esta- belecer que a ordem de valores constitucionalmente relevantes é que constitui o paradigma do legislador penal infraconstitucional. Não cabe ao legislador ordinário criar novos bens jurídicos a serem protegidos, mas identificar aqueles valores já definidos como essenciais na norma fun- dante da sociedade. Sobre isso discorre Greco (2017, p. 36):

Os valores abrigados pela Carta Magna, tais como a liberdade, a segurança, o bem- estar social, a igualdade e a justiça, são de tal grandeza que o Direito Penal não poderá virar-lhes as costas, servindo a Lei Maior de norte ao legislador na seleção dos bens tidos como fundamentais.

Nos mesmos termos leciona Cunha (2015, p. 35):

A seleção dos bens jurídicos a serem tutelados terá como norte a Constituição Federal, Carta que exerce um duplo papel: orienta o legislador, elegendo valores considerados indispensáveis à manutenção da sociedade e, segundo a concepção garantista do Di- reito Penal, impede que esse mesmo legislador, com a suposta finalidade protetiva de bens, proíba ou imponha determinados comportamentos, violando direitos fundamen- tais atribuídos a toda pessoa humana, também consagrados na Bíblia Política do Es- tado.

Portanto, a tarefa de criação de crimes e cominação de penas somente se legitima quando são tutelados valores consagrados na Constituição Federal. Nucci (2017, p. 143-144) ensina que a restrição ou privação, ainda que temporária, dos direitos fundamentais invioláveis assegurados pela Constituição só se torna possível quando houver rigorosa necessidade de im- posição das sanções penais para garantia de dos mesmos bens essenciais ao homem e à socie- dade previstos na Carta Magna.

Feitas essas considerações, voltamos a questão: o bem jurídico escolhido pelo le- gislador para ser protegido no artigo 306 do CTB reflete um bem caro à sociedade, delimitado em valores fundamentais da Constituição Federal?

Capez (2016, p. 327) lembra que o art. 5º, caput, da Constituição Federal assegura a todos os cidadãos o direito à segurança que se reflete na garantia de um trânsito protegido. Marcão (2017, p. 173) segue o mesmo raciocínio ao sugerir que a segurança no trânsito, com consequente preservação da incolumidade pública, é um direito fundamental expressamente

previsto no art. 5º, caput, da Carta Magna. Desta maneira, conclui-se que o bem jurídico prote- gido pelo delito de embriaguez ao volante se alinha com seleção constitucional dos valores dignos da proteção penal, uma vez que se refere a garantia fundamental à segurança pública, quanto ao gênero, e à segurança pública viária, quanto à espécie.