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3.2 PENAS COMINADAS

3.2.3 Harmonia com a subsidiariedade?

Deve-se lembrar que a subsidiariedade, como princípio de um modelo de direito penal mínimo, delimita a atuação penal do Estado unicamente quando houver fracasso dos ou- tros ramos do direito. O direito penal entra em cena apenas quando não bastarem as demais sanções do ordenamento para proteção do bem jurídico, quando fracassarem as demais barreiras protetoras, de modo que seja, de fato, medida de ultima ratio.

Ora, se a aplicação das sanções penais no crime de embriaguez ao volante, ao final, se resolve em penas pecuniárias e restritivas de direito semelhantes àquelas previstas no direito administrativo, onde está a subsidiariedade? É preciso reconhecer que, neste caso, o ordena- mento penal não tem sido usado como último recurso para proteção da segurança viária e da incolumidade pública, mas tem concorrido com a norma administrativa. E, como já dito, a um custo muito maior, considerando o alto desembolso do Estado para custear um sistema criminal, envolvendo as horas de trabalho de juízes, defensores públicos, membros do Ministério Público, agentes e delegados de polícia, servidores do judiciário e dos sistemas prisionais, bem como o tempo não utilizado para a repreensão de outros delitos mais graves.

Não há, nesse caso em análise, subsidiariedade. A cominação das penas e seus des- dobramentos, como hoje estão desenhados, demonstram que não falhou o ordenamento admi- nistrativo de modo a ser absolutamente necessário lançar mão dos recursos penais. Ao contrário, tem falhado a norma penal em operar repressiva e preventivamente, uma vez que a situação ou se resolve na extinção da punibilidade, ao cabo da suspensão condicional do processo, ou na aplicação das mesmas penalidades cominadas na infração administrativa de trânsito.

Feitas essas considerações, conclui-se por hora que, a despeito do bem jurídico ser relevante e de haver potencial lesivo na embriaguez ao volante, não há gravidade objetiva sufi- ciente na conduta que justifique a intervenção penal e não há subsidiariedade, considerando as

sanções cominadas que produzem, na prática, a inexistência de pena, pela extinção da punibili- dade, ou a aplicação de medidas substitutivas semelhantes a de outros ramos do ordenamento que também tratam da prevenção-repressão do comportamento. Assim, a existência desta figura típica, tal como atualmente concebida no códice criminal, não é adequada a um modelo de direito penal mínimo, contribuindo, na verdade, para um modelo de direito penal máximo, in- chado, meramente simbólico, caro e ineficiente.

Todavia, não basta fazer o exame da matéria penal. Para um desenlace melhor de- lineado quanto à inobservância da subsidiariedade na infração penal da embriaguez no trânsito é preciso examinar, a seguir, a matéria administrativa, de modo a buscar nas suas estruturas e características as razões que garantem que esse ramo do ordenamento é suficientemente capaz de garantir a proteção da segurança viária e da incolumidade pública.

4 O DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR

Não se objetiva observar com delongas o direito administrativo segundo os diversos critérios-base de definição contidos na doutrina. Basta a compreensão geral segundo a qual é ramo do direito público que regula a atuação do Estado, dos órgãos e agentes públicos, com finalidade de atender à finalidade pública. Nas palavras de Rosa (2018, p. 15) “é o conjunto de normas jurídicas (princípios e regras jurídicas) que regem a atividade administrativa, as entida- des, os órgãos e os agentes públicos, objetivando o perfeito atendimento das necessidades da coletividade e dos fins desejados pelo Estado”.

Para atingir a finalidade pública, o direito administrativo, como conjunto de normas e princípios, confere à Administração de certas características distintas que a colocam numa posição privilegiada, verticalizada em relação aos particulares. Em outras palavras, a Adminis- tração Pública é revestida de peculiaridades que individualizam sua atuação de modo a garantir o alcance dos objetivos públicos. Esse conjunto de traços distintivos é denominado regime ju- rídico-administrativo.

Nesse sentido, o regime jurídico-administrativo é caracterizado pela existência de “prerrogativas” para satisfazer o interesse público, que possui supremacia sobre o interesse pri- vado, e “sujeições” para proteção dos interesses individuais, limitando a atuação do Estado que somente atua para atender ao interesse público e na forma permitida por lei (DI PIETRO, 2019, p. 86; ALEXANDRE; DEUS, 2017, p. 142; ROSA, 2018, p. 20). No contexto desse complexo normativo encontram-se os princípios e poderes da administração, entre os quais o da suprema- cia do interesse público sobre o privado e o poder de polícia.

Segundo a doutrina administrativa tradicional, os interesses públicos têm suprema- cia sobre os interesses individuais. Há superioridade do interesse público primário, no qual se concentra o interesse e necessidades da coletividade, sobre o interesse privado, sempre que houver confronto entre eles. Essa supremacia, como aponta Di Pietro (2019, p. 93), não só inspira o legislador, como também vincula a Administração na aplicação da lei:

Se a lei dá à Administração os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, é porque tem em vista atender ao interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Em consequência, se, ao usar de tais poderes, a autori- dade administrativa objetiva prejudicar um inimigo político, beneficiar um amigo, conseguir vantagens pessoais para si ou para terceiros, estará fazendo prevalecer o interesse individual sobre o interesse público e, em consequência, estará se desviando da finalidade pública prevista na lei. Daí o vício do desvio de poder ou desvio de fi- nalidade, que torna o ato ilegal.

Dessa maneira, como indicam Alexandre e Deus (2017, p. 145) e Rosa (2018, p. 48), há limites a esta supremacia, uma vez que os poderes conferidos para execução da finali- dade pública não são manejáveis ao sabor dos interesses pessoais, sendo devido o respeito às garantias individuais e a obediência aos comandos legais.

Da supremacia do interesse público decorrem as prerrogativas ou poderes conferi- dos ao Poder Público para execução das suas funções com vistas ao alcance do interesse cole- tivo. Rosa (2018, p. 48) anota que pelos poderes administrativos “o Estado-Administração im- põe ao particular a sua vontade, que há de ser adstrita à lei e aos demais princípios e regras jurídicas”. Tais poderes, consideram Alexandre e Deus (2017, p. 145), são necessários à con- secução das finalidades públicas e, por isso, são indisponíveis, consistindo em um poder-dever a ser exercido nos casos, na forma e nos limites estabelecidos em lei. No mesmo sentido aponta Di Pietro (2019, p. 94): “Precisamente por não poder dispor dos interesses públicos cuja guarda lhes é atribuída por lei, os poderes atribuídos à Administração têm o caráter de poder-dever; são poderes que ela não pode deixar de exercer, sob pena de responder pela omissão”.

Alexandre e Deus (2017, p. 217) ainda apontam que entre as prerrogativas ou po- deres que são conferidos à Administração Pública pela supremacia do interesse público está a permissão ao Estado de estabelecer restrições ao exercício de direitos e garantias individuais em benefício da coletividade. Este é o chamado “poder de polícia”. Nos dizeres de Rosa (2017, p. 117) é a “atribuição (ou poder) conferida à Administração de impor limites ao exercício de direitos e de atividades individuais em função do interesse público primário”.

Di Pietro (2019, p. 151) esclarece que a limitação do direito ou garantia individual tem por finalidade garantir a própria liberdade e os direitos essenciais do homem. Citando Bran- dão Cavalcanti, ela diz que “o poder de polícia ‘constitui um meio de assegurar os direitos individuais porventura ameaçados pelo exercício ilimitado, sem disciplina normativa dos direi- tos individuais por parte de todos’”. A finalidade do exercício do poder de polícia é o bem- estar, a paz social e a proteção das liberdades de toda a coletividade por meio da sujeição do exercício de direitos individuais às imposições oriundas do Poder Público.

Oliveira (2017, p. 270) e Alexandre e Deus (2017, p. 2018) assinalam que a Admi- nistração exerce o poder de polícia administrativa, que não se confunde com a polícia judiciária afeta ao direito penal, de maneira bastante ampla, sendo aplicável a qualquer área que possa afetar os interesses da coletividade. São exemplos do exercício do poder de polícia a regula- mentação e fiscalização do trânsito e transporte de cargas e passageiros, a vigilância sanitária, a regulamentação e fiscalização ambiental, a fiscalização aduaneira, a regulamentação e fisca- lização do exercício profissional, a fiscalização de tributos etc.

Di Pietro (2019, p. 153), Oliveira (2017, p. 265), Alexandre e Deus (2017, p. 218) ressaltam que o poder de polícia se reparte entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo, tra- zendo o conceito bipartido de Celso Antônio Bandeira de Mello segundo o qual há um poder de polícia em sentido amplo e outro em sentido estrito.

O poder de polícia em sentido amplo corresponde aos atos do Legislativo e do Exe- cutivo que condicionam a liberdade e a propriedade ajustando-as aos interesses coletivos. Aqui está envolvida tanto a atividade legislativa, que cria direitos e obrigações, quanto a atividade administrativa, que executa os termos da lei.

Em sentido estrito, por sua vez, corresponde unicamente aos atos do Poder Execu- tivo, fundamentados na lei, quer os gerais (regulamentos) que os específicos (licenças e autori- zações), que impliquem restrições de direitos individuais em favor da coletividade. Nesse sen- tido, a polícia administrativa relaciona-se diretamente à função administrativa.

Oliveira (2017, p. 269) destaca ainda que o exercício do poder de polícia adminis- trativa está compreendido em fases distintas de execução: primeiro, a ordem emanada do Poder Público, que estabelece as regras e condições para o exercício de determinada atividade; depois, a fiscalização promovida pela Administração para verificação do cumprimento da ordem; e, por fim, a aplicação de sanções ao particular como meio coercitivo em caso de descumprimento.

Enfim, temos aqui descrito o direito administrativo sancionador, exercido por meio do poder de polícia conferido à Administração em decorrência do princípio da supremacia do interesse público. É sobre esse alicerce que está construído o sistema de polícia administrativa de trânsito, com regras de circulação e conduta, cominação de infrações e suas respectivas pe- nalidades, entre as quais aquela prevista no art. 165 da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, que versa sobre a embriaguez ao volante. Todavia, antes de adentrar na análise da infração é preciso notar que esse aspecto sancionador do direito administrativo possui características par- ticulares que tornam seu o exercício eficaz.