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A descriminalização da embriaguez ao volante: uma análise crítica da tutela penal relativa à conduta tipificada no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro

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JÔNATAS DA CUNHA FERREIRA

A DESCRIMINALIZAÇÃO DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE:

UMA ANÁLISE CRÍTICA DA TUTELA PENAL RELATIVA À CONDUTA TIPIFI-CADA NO ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Tubarão 2019

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JÔNATAS DA CUNHA FERREIRA

A DESCRIMINALIZAÇÃO DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE:

UMA ANÁLISE CRÍTICA DA TUTELA PENAL RELATIVA À CONDUTA TIPIFI-CADA NO ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Monografia apresentada ao Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina como re-quisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito.

Linha de pesquisa: Justiça e Sociedade.

Orientador: Prof. Antônio Márcio Campos Neves, Esp.

Tubarão 2019

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JÔNATAS DA CUNHA FERREIRA

A DESCRIMINALIZAÇÃO DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE:

UMA ANÁLISE CRÍTICA DA TUTELA PENAL RELATIVA À CONDUTA TIPIFI-CADA NO ARTIGO 306 DO CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO

Esta monografia foi julgada adequada à obten-ção do título de Bacharel em Direito e aprovada em sua forma final pelo Curso de Direito da Universidade do Sul de Santa Catarina.

Tubarão, 24 de junho de 2019.

______________________________________________________ Prof. e orientador Antônio Márcio Campos Neves, Esp.

Universidade do Sul de Santa Catarina

______________________________________________________ Prof. Maurício Fabiano Mortari, Esp.

Universidade do Sul de Santa Catarina

______________________________________________________ Prof. Moisés Schmitz, Esp.

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Ao meu amigo-irmão, José Roberto Izaias Jr., ou Juninho, in memorian, cuja vida foi precoce-mente ceifada em um acidente de trânsito cau-sado por um condutor embriagado.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço a Deus pela oportunidade ímpar de uma segunda graduação, dando-me condições de superar as dificuldades do caminho.

À universidade, seu corpo docente, coordenação e administração pelo ambiente cri-ativo que proporciona estrutura, conhecimento e meios para o desenvolvimento acadêmico.

A meu orientador, Prof. Antônio Márcio Campos Neves, pelo suporte, dicas, incen-tivos e correções no desenvolvimento deste trabalho.

A meus pais por todo incentivo.

À minha esposa e minhas filhas por toda abnegação e paciência durante essa longa jornada e pelo amor e apoio, sem medir esforços, para que chegasse à conclusão do curso.

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Não olhe para o vinho, quando se mostra vermelho, quando resplandece no copo e desce suavemente. Pois no fim morderá como a cobra e picará como a víbora. Os seus olhos verão coisas esquisitas, e o seu coração o levará a dizer coisas perversas. Você será como o que se deita no meio do mar e como o que se deita no alto do mastro do navio. Você dirá: “Fui espancado, mas não doeu; bateram em mim, mas eu não senti nada! Quando vou despertar? Então voltarei a beber”. (Provérbios 23:31-35)

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RESUMO

Esta pesquisa objetivou uma análise crítico-descritiva e abstrata da tutela do direito penal sobre a conduta de embriaguez ao volante, tipificada no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, diante da ausência de contribuição para redução da estatística de acidentalidade. Foi utilizada a revisão bibliográficas, com investigação de posicionamentos doutrinários, discursos e interpre-tações legais que pudessem exprimir um resultado lógico-dedutivo. Da análise crítica resultou: que uma política de criminalização máxima é antieconômica e ineficaz, sendo necessário o fomento de um modelo de direito penal mínimo-subsidiário; que o delito de embriaguez ao volante viola o princípio da subsidiariedade penal, contribuindo para um modelo de criminali-zação meramente simbólico e ineficiente; e que o direito administrativo possui condições plenas de tutelar o comportamento do condutor ébrio. Concluiu-se, ao final pela necessidade de con-sideração da descriminalização da embriaguez ao volante por parte do legislador, reconhecendo a tutela administrativa como mais adequada e eficaz nos termos atuais, podendo ser ainda aper-feiçoada se considerada a gradação das penalidades administrativas segundo o grau de intoxi-cação alcoólica do motorista.

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ABSTRACT

This research aimed at a critical, descriptive and abstract analysis of the intervention of criminal law on drunken driving, typified in article 306 of the Brazilian Traffic Code, considering an absence of a significative contribution to reduction of accidentality statistics. Bibliographical review was used, with investigation of doctrinal positions, discourses and legal interpretations that could express a logical-deductive result. From critical analysis it was possible deduce that a policy of maximum criminalization is uneconomical and ineffective, and that is necessary to foster a model of minimum-subsidiary criminal law; that the crime of drunken driving violates the principle of subsidiarity, contributing to a merely symbolic and inefficient system of crimi-nalization; and that administrative law has full conditions to intervene on drunken driving. The-refore, it was concluded that is required to consider the decriminalization of drunken driving and to recognize the administrative intervene as more adequate and effective in the current terms. Furthermore is need improved the administrative law in order to consider the gradation of administrative penalties according to the degree of intoxication alcoholic.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

1.1 DESCRIÇÃO DA SITUAÇÃO PROBLEMA ... 10

1.2 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA ... 15

1.3 JUSTIFICATIVA ... 16

1.4 OBJETIVOS ... 18

1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 18

1.6 ESTRUTURAÇÃO DOS CAPÍTULOS ... 19

2 DIREITO PENAL: A ULTIMA RATIO ... 20

2.1 CONCEITO E FINALIDADE DO DIREITO PENAL ... 20

2.2 DIREITO PENAL MÁXIMO: CARO E INEFICIENTE ... 22

2.3 ABOLICIONISMO PENAL: UMA UTOPIA ... 25

2.4 RAZÕES PARA O DIREITO PENAL MÍNIMO-SUBSIDIÁRIO ... 28

2.4.1 Necessidade de intervenção mínima ... 28

2.4.2 Necessidade de fragmentariedade... 31

2.4.3 Necessidade da lesividade ... 32

2.4.4 Necessidade de subsidiariedade ... 33

3 A TUTELA PENAL DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE ... 36

3.1 CONFIGURAÇÃO DO CRIME ... 36

3.1.1 Tipo objetivo ... 37

3.1.2 Elemento subjetivo ... 42

3.1.3 Bem jurídico protegido ... 43

3.1.4 Crime de perigo abstrato ... 46

3.1.4.1 Harmonia com a lesividade? ... 49

3.1.4.2 Harmonia com a fragmentariedade? ... 50

3.2 PENAS COMINADAS ... 52

3.2.1 Cabimento da suspensão condicional do processo ... 53

3.2.2 Cabimento de penas substitutivas ... 56

3.2.3 Harmonia com a subsidiariedade? ... 57

4 O DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ... 59

4.1 ATRIBUTOS DO DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR ... 61

4.1.1 Autoexecutoriedade ... 62

(10)

4.2 A INFRAÇÃO DO ART. 165 DO CTB ... 64

4.2.1 Meios de constatação ... 66

4.2.2 Sanções administrativas ... 68

4.2.2.1 Multa e Suspensão do Direito de Dirigir ... 68

4.2.2.2 Medidas Administrativas ... 69

4.2.2.3 Autoexecutoriedade e coercibilidade das sanções em espécie ... 71

5 CONCLUSÃO ... 73

(11)

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo realizar uma análise crítica da tutela penal da conduta de embriaguez ao volante quando dela não resulta lesão ou perigo concreto de dano ao patrimônio ou à vida, conforme tipificação do artigo (art.) 306 da Lei número (n.) 9.503, de 23 de setembro de 1997, com a alteração dada pela Lei n. 12.760, de 20 de dezembro de 2012, que institui o Código de Trânsito Brasileiro (CTB).

1.1 DESCRIÇÃO DA SITUAÇÃO PROBLEMA

Legislações estrangeiras já previam desde o início do século XX a incriminação do condutor de veículo em estado de embriaguez. É o caso das leis dinamarquesa (1925), norue-guesa (1926) e suíça (1932). No Brasil, no entanto, apenas com a instituição do Código de Trânsito Brasileiro em 1997 a legislação passou a considerar como crime a direção de veículo automotor sob influência de álcool. Até então o único enquadramento possível era o artigo 34 do Decreto-Lei n. 3.688, de 3 de outubro de 1941, a Lei das Contravenções Penais, sob o cunho da direção perigosa (MITIDIERO, 2015, p. 1065; CAPEZ, 2016, p. 326).

A criminalização da embriaguez foi prevista no art. 306 do CTB com a seguinte redação original: “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem” (BRASIL, 1997). Todavia, aprouve ao legislador implementar duas grandes alterações neste texto: a primeira pela Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, e a segunda pela Lei n. 12.760, de 20 de dezembro de 2012, da qual retira-se a atual redação com substanciosa modificação, espe-cialmente na descrição da conduta típica contida no caput: “Art. 306. Conduzir veículo auto-motor com capacidade psicoauto-motora alterada em razão da influência de álcool ou de outra subs-tância psicoativa que determine dependência” (BRASIL, 2012).

Com o advento, primeiro da Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008, e depois da Lei n. 12.760, de 20 de dezembro de 2012, ficou suprimido do texto o elemento normativo “ex-pondo a dano potencial a incolumidade de outrem”, tornando desnecessária a comprovação do perigo concreto para que houvesse adequação típica. A norma passou a presumir o perigo de maneira absoluta a partir de certa tarifação legal de álcool no organismo: “§ 1º As condutas previstas no caput serão constatadas por: I - concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar;

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ou II - sinais que indiquem, na forma disciplinada pelo Contran, alteração da capacidade psico-motora” (BRASIL, 2012).

Não é mais necessário que o agente conduza de maneira irregular, desobedecendo a sinalização ou ameaçando pedestres e demais veículos. Basta que seja flagrado dirigindo com concentração de álcool igual ou superior aos valores estabelecidos na lei para que se inicie a persecução penal. Assim, tanto o motorista que dirige veículo com 0,3 miligramas de álcool por litro de ar alveolar ou mais, andando em ziguezague, quanto aquele que, nas mesmas condições, obedece a sinalização e transita em aparente regularidade, estarão incursos no crime previsto no art. 306. Ambos sujeitos à pena de detenção de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir (BRASIL, 1997).

Essas alterações normativas inseridas no Código de Trânsito tiveram por objetivo o endurecimento do tratamento penal dado à associação entre o consumo de bebida alcoólica e a direção de veículos automotores, ampliando o alcance das hipóteses de enquadramento típico. Isso deixou o Brasil com um dos mais rigorosos sistemas legislativos nesta matéria, tendo como foco a prevenção e redução dos índices de acidentalidade, especialmente dos decorrentes da associação de álcool e direção. É o que se conclui do parecer do Dep. Hugo Leal durante o processo de conversão da Medida Provisória n. 415, de 21 de janeiro de 2008, que deu origem à Lei 11.705, de 19 de junho de 2008:

A razão de ser dessa MP, é importante que fique bastante claro, não está apenas limi-tada à forma em que ela foi expressa, que não deixa de ser relevante, como já acentu-ado, mas no seu grande potencial para desencadear mudanças necessárias nas relações dos condutores de veículos automotores com as bebidas alcoólicas e, as-sim, promover uma grande redução da violência no trânsito. O veio aberto por essa iniciativa nos conduz, necessariamente, a um reposicionamento do Código de Trânsito Brasileiro, naquilo que toca à relação dos condutores com as bebidas alcoó-licas, desde um ponto de vista tanto administrativo, como criminal. (BRASIL, 2008b, grifo nosso)

Tal endurecimento demonstra que o legislador brasileiro vem tentando responder às questões de violência no trânsito quase exclusivamente através do Direito Penal. Criou-se na cultura uma crença segundo a qual a esfera criminal é o único meio, ou o meio mais eficaz, para prevenir condutas lesivas e dar respostas aos anseios sociais de justiça. Nesse caso específico, o legislador depositou sobre a persecução penal a esperança de reduzir a preocupante estatística da mortalidade no trânsito.

Esse apetite criminalizador fica ainda mais saliente no Projeto de Lei n. 5.568 de 14 de maio de 2013, de autoria da então deputada federal Keiko Ota. Ela propunha, entre outras coisas, a completa revogação da infração administrativa prevista no artigo 165 do Código de

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Trânsito Brasileiro para tratar a associação de álcool e direção em quaisquer níveis somente como crime. A justificativa apresentada no projeto reflete a inclinação do legislador de alimen-tar a expectativa de solução de problemas sociais, como o caso das altas taxas de acidentalidade com mortes ou lesões no trânsito, na base da criação de novos tipos penais ou no endurecimento dos já existentes. Sustenta a parlamentar:

A solução para isso é uma legislação que estabeleça tolerância zero e puna defi-nitivamente quem bebe e dirige, criminalizando a conduta e mais, fazendo com a população tenha a certeza da punição que deve ser sentida na pena imposta (prestação de serviços à comunidade) e no bolso (multa). Estas em linhas gerais seriam a punição ideal (sic) para permitir a conscientização daquelas pessoas que insistem em não que-rer aprender pela educação de trânsito, dessa forma mostrar para toda a sociedade de que (sic) beber e dirigir É CRIME e não uma mera infração administrativa. (BRASIL, 2013a, grifo nosso)

Todavia, mesmo com o endurecimento penal os resultados não tem sido os espera-dos. Não houve redução significativa das taxas de violência no trânsito desde o advento da Lei Seca. Ao contrário, conforme apontamento estatístico do Instituto de Pesquisa Econômica Apli-cada (IPEA, 2016, p. 10-11) os acidentes de transporte terrestre no Brasil levaram à óbito 42.266 pessoas em 2013 (Gráfico 1):

Gráfico 1 – evolução do número absoluto de óbitos por acidente de trânsito e da taxa de mortalidade por 100 mil habitantes (1996-2013).

Fonte: IPEA, 2016, p. 10

Nesse estudo o IPEA aponta que, embora tenha havido pontuais decréscimos na mortalidade decorrente de acidentes de trânsito nos momentos imediatamente posteriores às alterações legislativas, a tendência de longo prazo é de crescimento:

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Sempre após a implementação de legislação de trânsito mais rígida, como o novo CTB em 1998 (Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997) e a nova lei de consumo zero de álcool de 2008, chamada popularmente de Lei Seca (Lei n. 11.705, de 19 de junho de 2008), há uma resposta imediata de queda nas ocorrências de mortes, mas posterior-mente há a volta às tendências anteriores de crescimento. (IPEA, 2016, p. 11)

Ainda, como aponta artigo publicado na Revista Brasileira de Epidemiologia em dezembro de 2015, que analisou dados oriundos de monitoramento do Ministério da Saúde a respeito do consumo de álcool e a direção veicular no ano de 2013, “mesmo se tratando de condições preveníveis, a combinação entre consumo de álcool e condução de veículos pode ser responsável por cerca de 20 a 50% das mortes no trânsito” (MALTA et al., 2015).

Vê-se, portanto, a profundidade da questão. Mesmo após a publicação das Leis n. 11.705, de 19 de junho de 2008, e 12.760, de 20 de dezembro de 2012, que especialmente endureceram o tratamento criminal para a embriaguez ao volante, os indicadores da influência do álcool nos acidentes de trânsito continuam altos e crescentes, levantando dúvidas sobre a eficácia do atual sistema que lança sobre o sistema penal a responsabilidade de prevenir tal comportamento e suas consequências.

Malta et al. (2015) ainda sugere que para haver redução dos acidentes e da morta-lidade no trânsito em razão da associação entre álcool e direção, não basta haver endurecimento na legislação que trata da matéria. Ao lado da lei rigorosa são necessárias a fiscalização abun-dante e regular e a aplicação de uma penalidade que seja eficazmente sentida pelo infrator:

A literatura aponta reduções significativas no número de mortos e feridos em países que adotaram legislações rígidas quanto ao álcool e à direção veicular, como nos Es-tados Unidos, em Cali, na Colômbia, dentre outros. Em geral, as medidas mais efeti-vas são a existência de uma legislação rigorosa, uma fiscalização sistemática e conti-nuada e um sistema judicial que garanta que o indivíduo infrator será penalizado. (MALTA et al., 2015, grifo nosso)

Aqui reside o problema a ser analisado no presente trabalho: considerada a comi-nação da pena privativa de liberdade prevista no art. 306 do CTB, de seis meses a três anos de detenção, o indivíduo flagrado em embriaguez deve ser conduzido perante autoridade policial que o autuará em flagrante. Não cabe termo circunstanciado, sendo vedado o processamento pelo rito da Lei n. 9.099, de 26 de setembro de 1995.

Ocorre que, em geral, o conduzido em flagrante tão somente pelo crime previsto no art. 306 do CTB, cuja pena mínima é de seis meses, não sofrerá qualquer restrição de sua liber-dade. Atendendo aos requisitos legais (não ser reincidente em crime doloso e não estar respon-dendo a outro processo, no momento do oferecimento da denúncia), o Ministério Público deverá

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propor a suspensão condicional do processo, sob pena de nulidade. Ao final, não havendo des-cumprimento das condições impostas, decretar-se-á a extinção da punibilidade. Desse modo, há possibilidade de sequer ser condenado quando processado pela embriaguez ao volante sem perigo de dando concreto.

Doutra sorte, se condenado, salvo na reincidência específica, caberá a multa subs-titutiva do art. 60, § 2º do Código Penal quando apenado no mínimo legal. Se condenado à pena restritiva de liberdade de até um ano, caberá a multa substitutiva do art. 44, § 2º, primeira parte, do Código Penal. E, mesmo que condenado à pena máxima cominada, caberá a substituição por uma pena de multa e uma restritiva de direitos do art. 44, § 2º, segunda parte, do Código Penal. Assim, ao final de um longo e caro processo penal, a pena imposta será muito próxima daquela fixada pelo direito administrativo na infração de trânsito. Via de regra é o que acontece:

É de conhecimento geral e causa perplexidade o fato de até pouco tempo atrás não existir no Brasil qualquer caso em que alguma pessoa tenha sido condenada e tenha cumprido pena de privação de liberdade por crime de trânsito que envolva a ingestão de bebida alcoólica. Como informa a Associação Brasileira de Educação de Trânsito, ao divulgar recentemente [ano 2014], são conhecidos apenas nove casos de condena-ções, com condenados cumprindo pena. (NASCIMENTO; MENANDRO, 2016) Note-se que o levantamento das condenações realizado pela Associação Brasileira de Educação de Trânsito abrange todos os crimes da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997, incluindo condutas mais graves, crimes de dano, com lesões concretas a bem jurídicos relevan-tes, como o homicídio culposo na direção de veículo automotor (art. 302), e a lesão corporal culposa na direção de veículo automotor (art. 303). É, portanto, questionável se, das nove con-denações com condenados cumprindo pena restritiva de liberdade, inclui-se alguma por embri-aguez ao volante sem perigo de dano. Por todo o exposto, é bem possível que não.

Nessa matéria o direito penal tem se mostrado infrutífero na repressão da conduta. E se tem sido infrutífero na sua principal seara, o que se dirá da prevenção e da redução dos índices de violência no trânsito? A pergunta é intencionalmente retórica. A razão dessa ineficá-cia talvez se deva à desconsideração do caráter subsidiário do direito penal numa cultura que o considera como “salvador da pátria”, como solução de todos os conflitos sociais. Em substân-cia, as sanções do direito penal só deveriam ter lugar quando outros ramos do direito se mos-trassem manifestamente insuficientes. Como ensina Queiroz (2002, p.55), “um fenômeno é subsidiário de outro quando opera depois que este tenha fracassado e precisamente para suprir suas falhas ou fracassos”.

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Nesse caso não é a subsidiariedade que aparentemente se encontra. Recai sobre a tutela penal a responsabilidade da repressão da embriaguez ao volante e da prevenção dos aci-dentes de trânsito, mesmo que o direito administrativo trate paralelamente da conduta. Há in-fração de trânsito prevista para condutor flagrado conduzindo veículo sob o efeito de álcool ou outra substância psicoativa cominada no artigo 165 do Código de Trânsito Brasileiro. O dispo-sitivo também foi objeto das alterações legislativas das Leis n. 11.705, de 19 de junho de 2008, e 12.760, de 20 de dezembro de 2012. E, na atual configuração, é transgressão de natureza gravíssima, que importa na penalidade de multa aumentada em dez vezes o seu valor e na sus-pensão do direito de dirigir por doze meses. Tal sanção administrativa é aplicada a quaisquer concentrações de álcool, conforme se extrai da lei de trânsito: “Art. 276. Qualquer concentra-ção de álcool por litro de sangue ou por litro de ar alveolar sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165” (BRASIL, 1997). Não seria, então, a multa e a restrição de direitos apli-cadas administrativamente mais eficazmente sentidas pelo infrator que a multa e a restrição de direitos substitutivas aplicadas ao cabo do processo penal?

Ora, acrescente-se a essa reflexão o fato de o direito administrativo, em razão das características do poder de polícia inerente à Administração Pública, possuir natureza coercitiva e autoexecutória. Como ensina Di Pietro (2019, p. 238), a autoexecutoriedade é “atributo pelo qual o ato administrativo pode ser posto em execução pela própria Administração Pública, sem necessidade de intervenção do Poder Judiciário”. Não há necessidade de mandado ou ordem judicial para que a Administração coloque em execução os seus atos. A ela está atrelada de forma indissociável a coercibilidade, que é imposição coativa das medidas adotadas pelo Poder Público, de modo que a Administração pode executar as suas decisões com meios coercitivos próprios (DI PIETRO, 2019, p. 238).

As penalidades administrativas já previstas no CTB, ou outras que venham a ser implementadas, são atos administrativos cogentes, revestidos de autoexecutoriedade em sentido amplo e, respeitada a ampla defesa e o contraditório, mais céleres em seu processamento. De-tém, portanto, grande capacidade de levar ao infrator a certeza da sanção. Talvez por isso, da experiência profissional deste autor em policiamento rodoviário, se colha a sensação de maior temor diante das multas que da possibilidade da prisão em flagrante.

1.2 FORMULAÇÃO DO PROBLEMA

Assim, se questiona: é possível descriminalizar a embriaguez ao volante, tipificada no art. 306 da Lei n. 9.503, de 23 de setembro de 1997 com redação dada pela Lei n. 12.760,

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de 20 de dezembro de 2012, concentrando esforços e recursos na aplicação das penalidades administrativas? Ou, de outra maneira, não seria a tutela administrativa, atrelada a políticas sistemáticas e volumosas de fiscalização, mais eficiente que a tutela penal para combater a em-briaguez ao volante e, por conseguinte, reduzir os índices de acidentalidade, em especial com vítimas lesionadas ou fatais? Seria o direito penal o ramo do direito mais adequado para repres-são dessa conduta, para prevenção de acidentes e redução dos índices de violência no trânsito?

Sobre esse problema o presente trabalho pretende se debruçar de modo a analisar se a manutenção do crime previsto no artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro se faz neces-sária ou se é possível proteger o bem jurídico (segurança viária, incolumidade pública etc.) a partir da tutela do direito administrativo.

1.3 JUSTIFICATIVA

Questionar a efetividade da persecução penal e verificar a possibilidade de uma resposta alternativa através do direito administrativo sancionador contribui para reflexão sobre o tratamento dado pelo Estado para a embriaguez ao volante. Essa reflexão é necessária para que haja ponderação das ações estatais de prevenção-repressão que se mostrem mais eficientes, com mais resultados e menores custos em relação ao aparato utilizado e, consequentemente, reduzam efetivamente os custos sociais decorrentes dos acidentes de trânsito.

Pode-se dizer com segurança que a embriaguez ao volante não é uma questão de política criminal, mas seguramente de saúde e economia públicas. É de amplo conhecimento científico que acidentes de trânsito envolvendo o consumo de álcool estão entre as principais causas de mortes por fatores externos, especialmente entre jovens. Os acidentes de trânsito são a décima causa geral de mortalidade e a nona de morbidade no mundo todo, ocasionando 1,2 milhão de mortes e até 50 milhões de feridos ao ano, principalmente em países de baixa e média renda (LEYTON; PONCE; ANDREUCCETTI, 2009, p. 165).

Esses dados estão corroborados nos estudos do IPEA e da Polícia Rodoviária Fede-ral (IPEA; PRF 2015b), Malta et al. (2015), Campos et al. (2012), Abreu et al. (2010) e Abreu, Lima e Griep (2009). Para citar apenas os dados mais recentes, em investigação realizada sobre as características de condutores com bafômetro positivo, Campos et al. (2012) informa:

Pesquisas no mundo inteiro mostram que acidentes de trânsito, com vítimas fatais, são causados por indivíduos que dirigem após o consumo de álcool. Estudo nos Estados Unidos sobre a epidemiologia e as consequências do beber e dirigir aponta que os acidentes fatais ocorrem no período das 18 às 6 horas da manhã, nas noites dos fins de semana, com risco aumentado para os condutores do sexo masculino com idade

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entre 22 e 45 anos, com problemas de alcoolismo, com condenação por beber e dirigir e que não usam cinto de segurança.

Esses dados são ratificados no já citado estudo estatístico sobre consumo de bebidas alcoólicas e direção de veículos nas capitais brasileiras elaborado por Malta et al. (2015). Os autores apontam que pelo menos um terço dos motoristas tem o hábito de dirigir após ingestão de qualquer quantidade de bebida alcoólica. Indicam, ainda, a existência de outras pesquisas realizadas no Brasil que demonstram haver frequência elevada no consumo de álcool entre as vítimas de acidentes e violências atendidas pelos serviços de emergência, salientando que a associação entre álcool e direção responderia por até 50% das mortes no trânsito.

Nesse sentido, Abreu et al. (2010), em estudo publicado na Revista Latino Ameri-cana de Enfermagem sobre o uso de álcool em vítimas fatais de acidentes de trânsito na cidade do Rio de Janeiro, indicam a existência de projeções para o ano de 2020 que apontam os aci-dentes de trânsito ocupando o terceiro lugar nas causas gerais de mortalidade mundial. A pes-quisa levantou prontuários no Instituto Médico Legal da capital fluminense, correlacionando os níveis de alcoolemia detectados nas vítimas fatais. De todas as vítimas fatais que realizaram o teste de alcoolemia, 88% apresentaram resultado positivo, sendo mais de 60% acima da tarifa-ção hoje considerada como crime. Conclui o artigo:

Avaliaram-se 348 prontuários de vítimas fatais por acidentes de trânsito. Desses, ape-nas 94 realizaram o exame de alcoolemia, sendo que 83 apresentaram alcoolemia po-sitiva e 60,2% níveis acima de 0,6 g/L. Evidenciou-se o envolvimento do álcool com vítimas fatais nos acidentes de trânsito em níveis acima e abaixo de 0,6 g de álcool por litro de sangue […]. Essa observação indica que significante parcela das vítimas fatais consumiu doses baixas de bebidas alcoólicas (40%), ou que esse consumo ocor-reu algumas horas antes do evento e do exame laboratorial. (ABREU et al., 2010) Conforme aponta IPEA e PRF (2015a), esta exorbitante relação entre acidentali-dade e consumo de bebidas alcoólicas gera um elevadíssimo custo social, relacionado especi-almente a perda de produtividade, custos hospitalares e previdência:

Numa estimativa conservadora, observou-se que os acidentes em rodovias custam à sociedade brasileira cerca de R$ 40,0 bilhões por ano, enquanto os acidentes nas áreas urbanas, em torno de R$ 10 bilhões, sendo que o custo relativo à perda de produção responde pela maior fatia desses valores, seguido pelos custos hospitalares.

Diante desses dados que apontam o crescimento da violência no trânsito associado ao uso de bebidas alcoólicas é de se questionar se o atual modelo de reprimenda penal, com o alto custo da máquina judiciária, tem o condão de produzir os efeitos preventivos pretendidos.

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Pelo que se vê, parece que não. Conforme aduz o pesquisador Carlos Henrique Ribeiro de Car-valho do IPEA (2016), “há ainda uma sensação de impunidade com relação à penalização de motoristas que provocam acidentes graves em função de negligência, ingestão de álcool ou comportamento perigoso no trânsito, como excesso de velocidade”.

A urgente redução da violência no trânsito não virá sem séria reflexão sobre a le-gislação que trata do tema, de modo a proporcionar ao infrator a percepção do poder sanciona-dor do Estado. Por isso, espera-se com esse estudo contribuir para o aprofundamento da discus-são do papel do direito penal como meio de prevenção de acidentes trânsito causados pelo con-sumo de bebidas alcoólicas. Discutir a descriminalização da embriaguez ao volante não signi-fica deixar de dar uma resposta adequada, nem mesmo signisigni-fica admitir tal comportamento como aceitável. Antes, reflete a busca pelo ramo do ordenamento que possa entregar resultados mais efetivos, com menores custos, na proteção dos bens jurídicos visados pela norma.

1.4 OBJETIVOS

O objetivo geral da presente pesquisa é a análise crítico-descritiva e abstrata da tutela do direito penal sobre a conduta de embriaguez ao volante, tipificada no art. 306 do Có-digo de Trânsito Brasileiro, com redação dada pelas Leis n. 11.705, de 19 de junho de 2008, e 12.760, de 20 de dezembro de 2012, considerando sua diminuta contribuição para redução da estatística de acidentalidade, e verificar a possibilidade de uma resposta alternativa através do direito administrativo sancionador.

Os objetivos específicos, por sua vez, são a identificação da natureza do direito penal e os fins a que se destina; a delimitação da discussão doutrinária acerca dos conceitos relevantes do crime de embriaguez ao volante e a verificação da sua harmonização com princí-pios de um direito penal mínimo; e, por fim, a análise da adequação do direito administrativo sancionador para tutelar exclusivamente o comportamento do motorista ébrio.

1.5 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A presente pesquisa é de natureza exploratória, quanto ao objeto, e qualitativa, quanto à abordagem, visando a análise crítica do delito de embriaguez ao volante através da investigação de discussões, posicionamentos doutrinários, discursos e interpretações legais. Para tanto foi realizada coleta bibliográfica de dados junto ao acervo da biblioteca da

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Univer-sidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em bases de dados científicas abertas ou conveni-adas à universidade, nos sítios eletrônicos oficiais dos tribunais pátrios e na legislação publi-cada, a fim de, por meio de leitura exploratória, estabelecer o nexo de correspondência entre as teorias do direito penal e a conduta de embriaguez ao volante tipificado no art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro.

1.6 ESTRUTURAÇÃO DOS CAPÍTULOS

O desenvolvimento deste trabalho foi estruturado em três capítulos. O primeiro se propõe a analisar a estrutura e a finalidade do ordenamento penal em confronto com os modelos de direito penal máximo e abolicionismo penal, de modo a conceber sua atuação em um modelo de direito penal mínisubsidiário. Desta maneira serão delineados os princípios de um mo-delo criminal mínimo-subsidiário que fornecem o substrato para compreender se a criminaliza-ção de condutas, como a de embriaguez ao volante sem perigo de dano concreto, representa um meio eficaz de tutela dos comportamentos que necessitam de intervenção estatal.

O segundo capítulo se propõe a uma análise crítico-descritiva do crime de embria-guez ao volante em espécie por meio da dissecação dos elementos essenciais do delito em cotejo com os princípios do direito penal mínimo-subsidiário. Serão examinados os elementos obje-tivo e subjeobje-tivo do tipo penal, o bem jurídico protegido pela norma, as características da natu-reza do perigo, as penas cominadas e as possibilidades de substituição, bem como investigada a relação de todos estes elementos no crime de embriaguez ao volante com os princípios da lesividade, fragmentariedade e subsidiariedade penal. O objetivo é concluir se a criminalização dessa conduta é eficaz, em abstrato, como tutela estatal e se há subsidiariedade ou concorrência em relação à tutela do direito administrativo.

O terceiro capítulo se propõe ao estudo da a tutela administrativa, de modo a explo-rar, nas suas estruturas e características, se há fundamento suficientemente capaz de garantir a proteção da segurança viária, a prevenção e redução da acidentalidade. Dessa maneira, será observada tão somente a face sancionadora do direito administrativo, decorrente da supremacia do interesse público e do poder de polícia, com seus atributos próprios. Far-se-á, ainda, análise da infração de trânsito relativa a embriaguez ao volante, com avaliação dos seus elementos, penalidades e medidas administrativas correspondentes com propósito de estabelecer pontos de comparação da tutela administrativa em relação à tutela penal.

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2 DIREITO PENAL: A ULTIMA RATIO

Pretende-se, nesta seção, descrever a natureza geral e alguns dos princípios em par-ticular sobre os quais está alicerçado o direito penal. O intuito desta análise descritiva é com-preender se há razoabilidade na tutela penal da embriaguez ao volante, ponto central deste tra-balho, diante da natureza desse ramo do direito, das razões para sua aplicação, bem como o alcance da sua intervenção.

2.1 CONCEITO E FINALIDADE DO DIREITO PENAL

De maneira formal, o direito penal “é o corpo de normas jurídicas voltado à fixação dos limites do poder punitivo do Estado, instituindo infrações penais e as sanções correspon-dentes, bem como regras atinentes à sua aplicação” (NUCCI, 2017, p. 59). Ou, como define Prado (2014, p. 65), “é o setor ou parcela do ordenamento jurídico público que estabelece as ações ou omissões delitivas, cominando-lhes determinadas consequências jurídicas ― penas ou medidas de segurança”.

Não há, todavia, como compreender o conceito sem entremear sua finalidade. Nes-tes termos, aponta Paschoal (2015, p. 2), não são incomuns as afirmações de que ao direito penal cabe a retribuição do mal praticado pelo criminoso ou, como é comum no sentir do legis-lador, a prevenção da prática de delitos. Todavia, em um Estado Democrático de Direito, a missão da normatização criminal é, única e exclusivamente, proteger bens jurídicos que sejam valiosos para a preservação da sociedade. Como ensina Nucci (2017, p. 59), o direito penal é substancialmente uma proposta de paz.

Tal proposição decorre do fato de ser função geral do direito e das leis, em todos os seus ramos, a garantia da paz social. Não há sobrevivência de sociedades sem regras, sem ordem ou controle social. O homem, por sua natureza e pela necessidade de sobrevivência, é gregário. Vive e coexiste em comunidade. Todavia, a permanência humana em lugar comum, sem regras de coabitação que definam deveres e limites dos atores das relações sociais, econômicas e po-líticas, produziria instabilidade e insegurança. Cada um, por seus próprios meios, faria valer sua vontade individual. Ilustrando com as palavras de Hobbes (16-?, p. 46, grifo nosso), fora dos Estados de Direito, há sempre guerra de todos contra todos:

Com isto se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens.

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Há, portanto, um necessário apaziguamento social que pode se dar por meios infor-mais ― família, religião, moral ―, ou pelos meios forinfor-mais que são as leis e normas estabele-cidas pelo Estado. Com efeito, o Direito persegue soluções socialmente justas e aceitáveis para os conflitos. Busca conter a ameaça latente da luta de todos contra todos e, por conseguinte, promover a convivência pacífica que permita o progresso e o desenvolvimento de determinada comunidade. É nesse sentido que a expressão “ubi societas ibi jus et ibi jus ubi societas” (não existe sociedade sem direito nem direito sem sociedade) encontra seu mais significativo sentido (PRADO, 2014, p. 63-64). Assim, ao lado de outros instrumentos, o Direito regula o convívio e fomenta as condições mínimas de coexistência e progresso social.

Nesta linha, o direito penal é o segmento do ordenamento jurídico cujo propósito último se realiza no equilíbrio social. Contudo, com uma particularidade que merece maior atenção: sua estruturação tem por foco a proteção de bens jurídicos essenciais ao indivíduo e à comunidade. Sua proteção não abarca todo e qualquer valor social, mas recai tão somente sobre os valores mais caros à coletividade e de maneira subsidiária. A instituição das infrações penais e das sanções correspondentes deve ocupar-se das condutas cujo grau de lesividade seja social-mente significativo e sosocial-mente quando outros ramos do direito se mostrarem insuficientes para defender a paz social. No ensino de Capez (2018, p. 60, grifo nosso):

O Direito Penal é o segmento do ordenamento jurídico que detém a função de seleci-onar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, ca-pazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e des-crevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação.

Ora, isso é verdadeiro uma vez que as sanções penais são as mais graves dentre todas as respostas estatais. Em face da sanção penal, restringe-se, direta ou indiretamente, di-reitos fundamentais do cidadão, como a liberdade. Greco (2010, p. 5-6) chega a considerar o direito penal o ramo mais importante do Direito que, derivando do direito constitucional, requer a maior atenção do Estado, uma vez que coloca em jogo o bem jurídico mais relevante após a vida: a liberdade. É necessário, portanto, que, por medida de proporcionalidade, caiba à tutela penal tão somente o patrimônio jurídico relevante, fundamental e essencial à sobrevivência da sociedade. Não pode o Estado, por meio da pesada intervenção penal, tutelar condutas sem relevância para a sobrevivência da própria comunidade. A norma criminal somente deverá pro-ibir os comportamentos intoleráveis, perniciosos à coletividade e socialmente danosos. Nesse sentido afirma Paschoal (2015, p. 3, grifo nosso):

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O direito penal tem por finalidade proteger bens jurídicos relevantes para o conví-vio em sociedade, e pode-se recorrer a ele apenas quando esses bens são lesados ou postos em perigo concreto de lesão. Vida, liberdade individual, liberdade sexual, integridade física e patrimônio público são exemplos de bens jurídicos relevantes e, portanto, dignos de tutela penal.

Por essas razões que Greco (2017, p. 34) define a função precípua do direito penal como uma proteção subsidiária, secundária, auxiliar, suplementar. Isso significa que a norma penal só entra em cena quando os bens jurídicos essenciais à tranquilidade social, por seu ex-tremo valor político, não gozarem de proteção suficiente dos demais ramos do direito. Assim é que se diz que o direito penal é a ultima ratio, a última opção de intervenção, considerando o fracasso dos outros meios formais de controle social.

Todavia, os limites do alcance da persecução penal frequentemente parecem ultra-passar essa finalidade subsidiária. Como adverte Greco (2010, p. 1, 5):

Definitivamente, o discurso penal agrada à sociedade, pois que esta nele deposita as suas esperanças. A mídia, que exerce poderosa influência em nosso meio, se encarrega de fazer o trabalho de convencimento da sociedade, mostrando casos atrozes, terríveis sequer de serem imaginados, e, como reposta a eles, pugna por um Direito Penal mais severo, mais radical em suas punições. [...] A fim de acabar com práticas criminosas, propõem soluções sempre ligadas à neocriminalização ou a neopenalização, ou seja, as propostas são sempre dirigidas ao aumento das hipóteses típicas ou ao recrudesci-mento das penas já existentes. Para a maioria, todos os problemas sociais serão resol-vidos por intermédio do Direito Penal, desde que este seja aplicado da forma mais dura possível, tendo a finalidade de amedrontar aqueles que, possivelmente, ousariam praticar determinada infração penal.

Essa esperança que recai quase exclusivamente sobre o direito penal é a mesma que levou o legislador a depositar sobre o sistema de justiça criminal a expectativa de redução dos acidentes no trânsito. A criação excessiva e, por vezes, não razoável de tipos penais incrimina-dores cujos objetivos destoam da razão de ser e existir do próprio direito penal é resultado de um discurso de rigorosa criminalização, chamado pela doutrina de movimento de “Lei e Or-dem”. Sobre esse movimento é preciso um maior detalhamento.

2.2 DIREITO PENAL MÁXIMO: CARO E INEFICIENTE

Como anota Greco (2010, p. 12-13), o discurso do movimento de Lei e Ordem apregoa um direito penal máximo, muito comum nos ideais de “tolerância zero”. Essa lingua-gem, associada às esperanças de uma coletividade impressionada pela mídia, faz a sociedade acreditar que a criminalização de novas condutas, o agravamento das penas e a mitigação de garantias processuais seriam as soluções para todos os males que a afligem. A persecução penal

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seria o meio de retirar do convívio coletivo aqueles indivíduos não adaptados. E os meios de comunicação de massa mostram-se corresponsáveis pela difusão desse ideário à medida que, com pouco preparo jurídico, chamam para si a responsabilidade de criticar as leis penais, es-pargindo no imaginário comum uma esperança de soluções penais.

Penteado Filho (2018, p. 65-68) elucida que esse movimento decorre da “broken windows theory”, a teoria das janelas quebradas, que foi um modelo norte-americano de política de segurança pública aplicado em especial na cidade de Nova Iorque quando Rudolph Giuliani era prefeito. Essa teoria parte da premissa que, se não forem reprimidas as pequenas infrações legais, inevitavelmente haverá a ocorrência de condutas criminosas mais graves, em vista do descaso estatal em punir os responsáveis pelos crimes menos graves. Torna-se necessária, en-tão, a efetiva atuação estatal no combate à microcriminalidade, operando como prevenção geral da criminalidade em grande escala. Em síntese, para o movimento de Lei e Ordem, o direito penal deve chamar para si o combate de todos os problemas de desordem social, mesmo os de menor importância, através do endurecimento das sanções existentes, da criação de novos tipos penais e da redução de garantias processuais.

Desse raciocínio decorre que o direito penal se ocupa com todo e qualquer bem jurídico, não importando qual seja o seu valor. Qualquer conduta socialmente repreensível, por menor que seja, deve ser penalmente reprimida, não cabendo a nenhum outro ramo do direito, ou a outras formas de controle social, a sua inibição ou prevenção. Nas palavras de Greco (2010, p. 16), o direito penal, na ótica do movimento de Lei e Ordem, “deve ser utilizado como prima ratio, e não como ultima ratio” para que desempenhe uma dupla função: repressão e educação preventiva. Sobre isso, ele diz:

O Estado Social foi deixado de lado para dar lugar a um Estado Penal. Investimentos em ensino fundamental, médio e superior, lazer, cultura, saúde, habitação são relega-dos a segundo plano, priorizando-se o setor repressivo. A toda hora o Congresso Na-cional anuncia novas medidas de combate ao crime. Como bem enfatizou João Ri-cardo W. Dorneles: “o mito do Estado Mínimo é sublinhado, debilitando o Estado Social e glorificando o ‘Estado Penal’. (GRECO, 2010, p.13)

Na mesma direção, Queiroz (2002, p. 13-14) explica que tal discurso tem gerado a hipertrofia do direito penal moderno. Para ele, este inchaço é consequência da instrumentaliza-ção do direito na conveniência do programa político. Usa-se a criminalizainstrumentaliza-ção de condutas como instrumento político de resposta aos desejos populares de paz coletiva. Com isso, leis são pro-duzidas para impressionar o público. Condutas são tipificadas como crimes, mas tornam-se

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normas meramente simbólicas. São criados inúmeros crimes pelos quais ninguém nunca será preso ou penalizado de modo que o sistema penal cresce a um tamanho impraticável e ineficaz.

No mesmo nexo lógico reside a crítica de Greco (2010, p. 15). Para ele não se educa a sociedade por meio do direito penal. Ao fazer com que tenha interesse criminal, são produzi-das leis de caráter puramente representativo, normas figurativas impossíveis de serem aplicaproduzi-das ou de serem sentidas as suas penas. Isso reduz o sistema penal à falta de credibilidade. A quan-tidade excessiva de leis penais, que prometem a maior punição de comportamentos lesivos, somente produz o embotamento do sistema em razão da certeza quase absoluta da impunidade. Por isso, ele afirma com lucidez, citando Beccaria:

Quanto mais infrações penais, menores são as possibilidades de serem efetivamente punidas as condutas infratoras [...]. Beccaria já dizia, em 1764, que “a certeza de um castigo, mesmo moderado, sempre causará mais intensa impressão do que o temor de outro mais severo, unido à esperança da impunidade [...]”. (GRECO, 2010, p. 15-16) Ainda, citando Luiz Benito Viggiano Luisi, no mesmo sentido lembra que:

No nosso século têm sido inúmeras as advertências sobre o esvaziamento da força intimidadora da pena como consequência da criação excessiva de delitos. Francesco Carnelutti fala em inflação legislativa, sustentando que seus efeitos são análogos ao da inflação monetária, pois “desvalorizam as leis e, no concernente às leis penais, aviltam a sua eficácia preventiva geral”. (GRECO, 2010, p. 17).

Queiroz (2002, p. 14) esclarece ainda que, ao utilizar o direito penal como instru-mento político, com predominância na ideia de prevenção, qualquer objetivo político pode se tornar um “bem jurídico tutelado” e tudo que é indesejado como um instrumento penal. Dessa forma, não há mais necessidade de uma vítima, propriamente dita, ou de um ato de violação a um bem jurídico. Somente é necessário um modo abstrato de agir, um certo habitus para alguém seja marcado como um criminoso. A subsidiariedade virou um princípio inócuo para sustentar um direito penal de perigo. Nesse sentido, Greco (2010, p. 15) alerta:

Por intermédio desse movimento político-criminal, pretende-se que o Direito Penal seja o protetor de, basicamente, todos os bens existentes na sociedade, não se devendo perquirir a respeito de sua importância. Se um bem jurídico é atingido por um com-portamento antissocial, tal conduta poderá transformar-se em infração penal, bas-tando, para tanto, a vontade do legislador.

Conclui-se, por tudo que foi exposto, que esse discurso de Lei e Ordem se mostra, ao final, antieconômico e ineficaz. Os resultados são leis simbólicas, sensação de impunidade e ineficácia educativa-preventiva. Tudo isso somado ao alto desembolso estatal para custear um

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sistema criminal, envolvendo as horas de trabalho de juízes, defensores públicos, membros do Ministério Público, delegados e agentes de polícia, servidores do judiciário e dos sistemas pri-sionais, bem como o tempo não utilizado para a repreensão de outras condutas mais graves. A cada hora gasta em questões que poderiam ser abordadas por outros ramos do ordenamento, uma hora é retirada da prevenção das condutas que não podem ser reprimidas senão pelo direito penal. O inchaço retira a capacidade de vazão no sistema pela existência de tantas condutas criminalizadas. O fim de tudo é a sensação de impunidade que retroalimenta a cadeia, escanca-rando as portas para a reincidência.

Por isso, sugere Queiroz (2002, p. 21), é preciso racionalizar ou minimizar o direito penal, limitando-o àquelas situações de absoluta irrenunciabilidade, às infrações que atingem os bens mais importantes da sociedade. Não se pode, em um Estado Democrático de Direito, empregar desnecessariamente ou desmedidamente a violência pública.

2.3 ABOLICIONISMO PENAL: UMA UTOPIA

Em oposição ao movimento de Lei e Ordem encontra-se o abolicionismo penal. Como se verá mais tarde, o que se propõe nesta pesquisa não é a extinção dos crimes de trânsito, tão pouco de implicações penais à embriaguez ao volante. Todavia é necessário investigar se não há outro ramo do direito que ofereça uma tutela mais célere e de menor custo, proporcio-nando o esperado resultado de redução nos marcos da violência no trânsito. Por isso, é conve-niente uma crítica ao movimento que mais radicalmente contraria o direito penal máximo, a fim de deixar claro o alcance da descriminalização analisada nesse texto.

O abolicionismo penal pressupõe a deslegitimação do poder punitivo do Estado e a sua incapacidade de resolver conflitos, postulando o completo desaparecimento do sistema pe-nal com sua substituição por formas diversas de resolução de conflitos que não o castigo, pre-ferencialmente sem a intervenção do Estado. Propõe, como explica Pavan (2016, p. 106), “um modelo de justiça baseado na mediação e conciliação visando a solução dos conflitos pelos próprios envolvidos, sem a intervenção estatal, através do diálogo entre as partes”.

Nesta percepção, analisa Queiroz (2002, p. 40):

O abolicionismo penal, contrariamente [ao minimalismo], vai além, para, afrontando as teorias e fundamentos sobre os quais descansa o direito penal, que julga fundada em bases falsas, propor-lhe a radical supressão por outras instâncias formais e infor-mais de controle social ou, ainda, por intervenções comunitárias ou instituições alter-nativas. [...] ao recusar validade aos fundamentos do direito penal, propõe não apenas a extinção da pena, nem do direito penal, mas a imediata ― ou mediata, para alguns

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autores ― abolição de todo o sistema de justiça penal (judiciário penal, Ministério Público, polícia, penitenciárias etc.).

Nem sempre há consenso entre os defensores do pensamento abolicionista, não compartilhando dos mesmos métodos ou pressupostos. A formação e os princípios subjacentes nos diferentes autores são variados. Todavia, aponta Greco (2010, p.7-8), o movimento foi im-pulsionado ao raciocínio abolicionista a partir do fomento da própria realidade do sistema penal: a cruel natureza do direito penal, a sua seletividade, a sua característica estigmatizante, as inú-meras infrações penais que não chegam a ser objeto de persecução pelo Estado (quer pela falta de registro, quer pela falta de investigação), bem como a possibilidade de haver solução para os conflitos interindividuais por outros meios formais ou informais. Ou seja, diante da frequente irracionalidade do sistema penal que, por um lado, pune fatos de bagatela e, por outro, deixa impune crimes de colarinho branco, começou-se a questionar a existência de justiça e da efetiva necessidade de um sistema penal.

Seu principal expoente, conforme a análise de Pavan (2016, p. 109), foi Louk Hul-sman. Segundo sua doutrina, as penas são perdidas principalmente por representarem um sofri-mento inútil e socialmente distribuído de maneira injusta. Para ele, o sistema penal não apre-senta nenhum efeito positivo sobre os envolvidos nos conflitos penais. Assim, conclui que o sistema penal é o problema em si, é um mal social que cria mais problemas que resolve, não demonstrando nenhuma eficácia na resolução de problemas que deveria resolver. Em suma, nas palavras de Greco (2010, p. 10), “a prisão, para os abolicionistas, é um instrumento completa-mente irracional, que não pode ser aplicado sem que se ofenda a dignidade do ser humano”. Em vista disso, a melhor alternativa seria a abolição de todo direito penal.

Queiroz (2002, p. 41-49) condensa um extrato das bases críticas. Explica que, para o abolicionismo, o direito penal é incapaz de prevenir, quer em caráter geral, quer em caráter especial, a prática de novos delitos. O pressuposto é que o comando da norma penal não possui aptidão para inibir comportamentos contrários a lei. Se há repetição sistemática de condutas tipificadas (aborto, homicídio, tráfico etc.), como se tais proibições simplesmente não existis-sem, então a vedação normativa não tem qualquer energia para desestimular a prática primária e, principalmente, a reincidência. Ademais o sistema penal é meramente reativo, agindo apenas quando as consequências já se produziram, sem nada contribuir efetivamente para evita-la. As-sim, a prevenção geral do direito penal é desacreditada a todo momento pelo abolicionismo.

Greco (2010, p. 9-10) informa, ainda, que a crítica se estende para a existência de uma cifra negra: aquela parcela de infrações penais que não chega ao conhecimento dos órgãos formais de repressão. Como menciona Pavan (2016, p. 110), para Hulsman, a existência dessa

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cifra negra é a evidência de que os conflitos, apesar de existirem, são em sua maioria solucio-nados em esferas alternativas e de caráter informal, não se abrigando na justiça criminal. Con-clui com isso que existem outros meios de deslindar conflitos que não a punição, como é o caso da mediação, arbitragem, terapia etc., tornando o sistema penal absolutamente dispensável.

Para que isso se torne viável Hulsman defende a abolição não apenas dos sistemas penais, mas inclusive de toda a linguagem criminal. Descreve Pavan (2016, p. 111):

[...] seria impossível superar a lógica do sistema penal sem rejeitar seu vocabulário, que constitui a base dessa lógica. Este seria o chamado abolicionismo acadêmico e consistiria na inutilização de palavras como “crime”, “criminoso”, “política criminal” etc., pois estas seriam um reflexo do sistema punitivo do Estado. Para Hulsman não existem crimes nem delitos, existem apenas situações problemáticas.

Desta maneira, Greco (2010, p. 10) disserta que o abolicionismo aposta em formas de autocomposição dos conflitos com auxílio das estruturas das justiças civil e administrativa como alternativas ao direito penal. Na ótica abolicionista, as condutas selecionadas pelo Estado para figurarem entre as figuras típicas poderiam ser objeto da atenção somente dos demais ra-mos do ordenamento jurídico, principalmente o civil e o administrativo, a fim de preservar a dignidade humana, livrando os envolvidos no conflito de qualquer estigma produzido por um sistema de justiça criminal. Todavia, sua exposição é seguida pela seguinte crítica:

Por mais que seja digno de elogios o raciocínio abolicionista, existem determinadas situações para as quais não se imagina outra alternativa a não ser a aplicação do Di-reito Penal. Como deixar a cargo da própria sociedade resolver, por exemplo, por in-termédio do Direito Civil ou mesmo do Direito Administrativo, um caso de latrocínio, estupro, homicídio, ou seja, casos graves que merecem uma resposta também grave e imediata pelo Estado.

Por isso, para Queiroz (2002, p. 50), o abolicionismo penal, para além de suas in-tenções humanitárias, é uma utopia. Em sua análise, um modelo de autorregulação social es-pontânea carece de previsão científica e é pouco provável que as reações não-punitivas sejam pacificamente aceitas se, ao invés de um simples dano, a conduta fosse uma destas praticadas com violência ou grave ameaça. O resultado do abolicionismo seria, possivelmente, um retorno aos tempos da vingança privada ou do exercício arbitrário das próprias razões. Assim, conclui que mesmo numa improvável sociedade perfeita do futuro, em que não houvesse delinquência, o direito penal, com todas as suas garantias, deveria subsistir para um único caso em que fosse necessária reação institucional a um fato delitivo.

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2.4 RAZÕES PARA O DIREITO PENAL MÍNIMO-SUBSIDIÁRIO

Ora, a alternativa encontrada entre a improdutividade e ineficácia de um modelo de direito penal máximo e a utopia do abolicionismo penal é a aplicação de um sistema de direito penal mínimo ou, como prefere Greco (2010, p. 25), “direito penal do equilíbrio”. O direito penal mínimo é essencialmente subsidiário e um direito penal subsidiário é essencialmente mí-nimo. Se mais leis, mais penas, mais policiais, mais prisões não significam necessariamente menos delitos, também a redução do tamanho do sistema penal não representa um aumento necessário da instabilidade social, mas um ganho de eficiência. E não por deixar de lado con-dutas que necessitem de controle estatal, mas exatamente por diversificar os meios formais de controle, distribuindo a outros ramos do direito a possibilidade de tutelar de maneira mais ampla e completa as condutas que sejam menos graves.

Por isso, se o Estado deseja alcançar a eficaz finalidade de proteção dos bens jurí-dicos essenciais e relevantes para a paz social, é preciso fazer emergir, especialmente ao legis-lador, o caráter subsidiário do direito penal, limitando-o às circunstâncias verdadeiramente ex-cepcionais que não poderão ser protegidos por outros ramos do ordenamento.

2.4.1 Necessidade de intervenção mínima

Na observação atenta de Paschoal (2003, p. 25), como já anotado aqui, o Direito Penal consiste na arma mais incisiva de que se pode valer o Estado uma vez que não priva apenas o indivíduo de sua liberdade, que constitui um de seus mais valiosos direitos fundamen-tais, mas também afeta sua participação política e atinge seu convívio familiar que, de forma direta, sofre as consequências de sua punição. O mero indiciamento ou a existência de um pro-cesso penal em curso já são capazes de estigmatizar socialmente o investigado. Apesar dos princípios consagrados da presunção de inocência, da responsabilidade pessoal do agente e da individualização da pena, há consequências que transcendem a pessoa do infrator.

Por isso, Queiroz (2002, p. 27-29) defende que, sendo o direito penal a forma mais violenta e desastrosa de controle social, é exigência de racionalidade e justiça social a redução do marco de intervenção penal tanto quanto seja possível. Ele diz:

Sim, porque um Estado que se define Democrático de Direito (CF, art. 1.º), que de-clara , como seus fundamentos, a “dignidade da pessoa humana”, a cidadania”, “os valores sociais do trabalho”, e proclama, como seus objetivos fundamentais, “consti-tuir uma sociedade livre, justa, solidária”, que promete “erradicar a pobreza e a mar-ginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais”, “promover o bem de todos,

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sem preconceitos de origem, raça, cor, idade e quaisquer outras formas de discrimi-nação” (art. 3.º), e assume, assim, declaradamente, missão superior em que se lhe agi-gantam responsabilidades, não pode, nem deve, pretender lançar sobre seus jurisdici-onados, prematuramente, esse sistema institucional de violência seletiva, que é o sis-tema penal, máxime quando é esse Estado, sabidamente, por ação e/ou omissão, em grande parte corresponsável pelas gravíssimas disfunções sociais que sob seu cetro vicejam e pelos dramáticos conflitos que daí derivam. (…) Racionalidade e justiça hão, enfim, de orientar, sempre e sempre, a intervenção do Estado e, em particular, a intervenção jurídico-penal, haja vista que é o direito penal um só instrumento, um só meio ― nem o mais importante, nem o mais recomendável ― a serviço dos fins cons-titucionalmente confiados a esse mesmo Estado.

Desse modo, se o direito penal é a forma mais violenta de intervenção do Estado na liberdade dos cidadãos, segue-se que deve ser a ultima ratio do controle social formal, inter-vindo minimamente, subsidiariamente, somente quando for absolutamente necessário. Definir comportamentos como criminosos para submetê-los ao tratamento especialmente gravoso do direito penal deve constituir o último recurso de que se vale o Estado para assegurar a inviola-bilidade da vida, da integridade física, da liberdade etc.

Greco (2010, p. 26) anota que a intervenção mínima é o coração, o motor funda-mental do direito penal mínimo. Paschoal (2015, p. 11) e Prado (2014, p. 115) ratificam ao dizer que o Estado deve intervir o mínimo possível por meio do direito penal, por ser este o mais violento instrumento normativo de regulação social, cabendo a ele unicamente o imprescindí-vel, o indispensável e o intransferível a outros ramos. Nas palavras de Prado (2014, p.115), o princípio da intervenção mínima estabelece que “o Direito Penal só deve atuar na defesa dos bens jurídicos imprescindíveis à coexistência pacífica dos homens e que não podem ser eficaz-mente protegidos de forma menos gravosa”. Assim, o que não for absolutaeficaz-mente imprescindível deve ser deixado aos outros ramos do ordenamento.

Como leciona Nucci (2017, p. 143), o Direito Penal não deve interferir demasiada-mente na vida do indivíduo, senão apenas extraordinariademasiada-mente, porque não é adequado como a prima ratio, como a primeira opção para compor os conflitos da sociedade. Ao contrário, por sua agressividade, deve ser usado com parcimônia tão somente quanto se entender que não há outra solução possível e viável, senão a criação de lei penal incriminadora, de modo a ser, de fato, a ultima ratio, a última trincheira de defesa social, a última cartada do sistema legislativo.

Esse entendimento encontra importante eco de nossa Corte Constitucional:

O sistema jurídico há de considerar a relevantíssima circunstância de que a privação da liberdade e a restrição de direitos do indivíduo somente se justificam quando estritamente necessárias à própria proteção das pessoas, da sociedade e de outros bens jurídicos que lhes sejam essenciais, notadamente naqueles casos em que os valores penalmente tutelados se exponham a dano, efetivo ou potencial, impregnado de significativa lesividade. O direito penal não se deve ocupar de condutas que

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produzam resultado, cujo desvalor – por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes – não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. (BRA-SIL, 2007, grifo nosso)

Tal princípio tem função restritiva ao poder punitivo do Estado, visando não apenas as garantias individuais, mas também a efetividade na tarefa de exercer a proteção dos bens caros à sociedade. Nesse sentido, Prado (2014, p. 115) defende que:

Aparece ele como uma orientação político-criminal restritiva do jus puniendi e deriva da própria natureza do Direito Penal e da concepção material de Estado Democrático de Direito. O uso excessivo da sanção criminal (inflação penal) não garante uma maior proteção de bens; ao contrário, condena o sistema penal a uma função meramente simbólica negativa.

Desta maneira, como orienta Capez (2018, p. 86), ao observar o princípio da inter-venção mínima o legislador deve ser módico, moderado, controlado no momento de eleger as condutas dignas da proteção penal, abstendo-se de incriminar quaisquer comportamentos, senão somente aqueles que afetem os bens jurídicos mais relevantes. Da mesma sorte, o operador do direito deve reconhecer as situações em que não se recomenda a realização do enquadramento típico, uma vez solucionado conflito pela atuação de outros ramos menos agressivos do direito, tornando-se dispensável ou imprópria a atuação da repressão penal. Ele exemplifica:

Assim, se a demissão com justa causa pacifica o conflito gerado pelo pequeno furto cometido pelo empregado, o direito trabalhista tornou inoportuno o ingresso do penal. Se o furto de um chocolate em um supermercado já foi solucionado com o pagamento do débito e a expulsão do inconveniente freguês, não há necessidade de movimentar a máquina persecutória do Estado, tão assoberbada com a criminalidade violenta, a organizada, o narcotráfico e as dilapidações ao erário. (CAPEZ, 2018, p. 86)

Ainda, o princípio da intervenção mínima, como que atendendo a duas faces da mesma moeda, deve orientar não apenas o processo de escolha dos bens jurídicos penais, mas também encaminhar os processos de descriminalização. Greco (2015, p. 127) aponta que a elei-ção dos tipos penais incriminadores decorre de uma escolha política do legislador, cujo arbítrio varia de acordo com o momento em que vive a sociedade. Em um dado momento, determinada conduta terá de receber o tratamento penal do Estado porquanto atinge diretamente o bem jurí-dico considerado relevante para aquele momento histórico-social. Da mesma maneira, as mu-danças socioculturais conduzem a coletividade a deixar de dar importância a bens que, outrora,

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eram da maior significância. Assim, considerando a intervenção penal mínima e atento às mu-tações sociais, o legislador deverá retirar da tutela penal certos tipos incriminadores que possam ser protegidos satisfatoriamente por outros ramos do ordenamento jurídico.

Optar por um direito penal mínimo não é apenas reconhecer que as extremas inter-venções penais devem se constituir somente quando absolutamente necessárias. Da intervenção mínima decorrem outras razões que justificam um modelo minimalista. Como resume Cunha (2015, p. 69), sendo o direito penal aplicado somente quando estritamente necessário, sucede que sua intervenção fica condicionada a existência de relevante lesão ou perigo de lesão ao bem juridicamente tutelado (fragmentariedade e lesividade) e ao fracasso dos demais instrumentos de controle (subsidiariedade).

2.4.2 Necessidade de fragmentariedade

Temos, pois, que a intervenção mínima se desdobra no princípio da fragmentarie-dade, segundo o qual nem todas as lesões a bens jurídicos protegidos devem ser tuteladas e punidas pelo direito penal. Mesmo que um bem, por seu intenso valor, seja merecedor da tutela penal, nem todos os comportamentos capazes de produzir lesão a esse mesmo bem deverão ser alvo de intervenção. Masson (2015, p. 50) esclarece ao afirmar que “o direito penal se preocupa unicamente com alguns comportamentos (“fragmentos”) contrários ao ordenamento jurídico, tutelando somente os bens jurídicos mais importantes à manutenção e ao desenvolvimento do indivíduo e da coletividade”. Paschoal (2015, p. 12) exemplifica esse conceito:

Por exemplo, não se questiona o fato de a vida ser um bem extremamente precioso para todas as sociedades, estando plenamente justificada a utilização do direito penal em sua proteção. Não obstante, a tentativa de suicídio não enseja a intervenção do direito penal. Do mesmo modo, quando a gravidez é decorrente de estupro ou quando põe em risco a vida da mulher, o ordenamento jurídico admite o aborto. Percebe-se, portanto, que, mesmo quando há bem jurídico digno de tutela penal, a proteção penal não é absoluta, mas fragmentária.

Nucci (2017, p. 144), explica que o direito penal deve ser visto apenas como o fra-gmento do ordenamento de modo que, em relação aos ilícitos, deve se ocupar tão somente da-queles que representem as condutas mais graves, capazes de causar distúrbios de magnitude à segurança pública ou à liberdade individual. Nesse sentido, Prado (2014, p. 116) assevera que a função protetora do ordenamento penal não é absoluta. Todo ordenamento jurídico se ocupa de assegurar os bens jurídicos, cabendo à lei penal defende-los apenas diante das formas de

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agressão socialmente intoleráveis. Há, nesse caso, verdadeira seletividade das condutas, limi-tando-se àquelas que se mostrem ofensivamente acentuadas. Assim, ele conclui:

Apenas as ações ou omissões mais graves endereçadas contra bens valiosos podem ser objeto de criminalização. (…). Isso quer dizer que o Direito Penal só se refere a uma pequena parte do sancionado pelo ordenamento jurídico, sua tutela se apresenta de maneira fragmentada, dividida ou fracionada. (PRADO, 2014, p. 116)

Dessa forma, nem todos os comportamentos potencialmente lesivos a um bem jurí-dico serão sancionados pelo direito penal. Somente aqueles mais graves e que necessitem de resposta proporcionalmente aguda. Não se tratando de sérias ofensas, os demais ramos da or-dem jurídica serão suficientes para solução, seja por meio de indenizações civis ou por meio de punições administrativas.

2.4.3 Necessidade da lesividade

Complementando o princípio da fragmentariedade, tem-se o princípio da lesividade ou ofensividade cuja exigência é a presença de lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico tutelado decorrente da conduta praticada (nullum crimen sine iniuria). Não basta que o bem jurídico tutelado seja relevante e que as ações ou omissões sejam as mais graves. Também é indispen-sável que a conduta contra ele praticada produza lesão ou, no mínimo, perigo de lesão ao bem jurídico protegido para que seja considerada a criminalização daquele comportamento.

Greco (2015, p. 131-132) aponta a origem desse princípio relacionada ao período iluminista. Suas funções estariam ligadas à restrição da pretensão punitiva do Estado por meio da vedação da incriminação de atitudes internas, de condutas que não excedam o âmbito do próprio autor, de simples estados existenciais e de condutas que não afetem qualquer bem jurí-dico. É nesse sentido que a autolesão, os atos preparatórios ou as opiniões não podem ser cri-minalizadas. Somente a conduta que produzir lesão ao bem jurídico de um terceiro poderá ser alcançada pela tipificação penal. Capez (2018, p. 92) reconhece essa função limitadora:

A função principal da ofensividade é a de limitar a pretensão punitiva estatal, de ma-neira que não pode haver proibição penal sem um conteúdo ofensivo a bens jurídicos. O legislador deve se abster de formular descrições incapazes de lesar ou, pelo menos, colocar em real perigo o interesse tutelado pela norma. Caso isto ocorra, o tipo deverá ser excluído do ordenamento jurídico por incompatibilidade vertical com o Texto Constitucional.

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