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3.1 CONFIGURAÇÃO DO CRIME

3.1.1 Tipo objetivo

Quanto ao núcleo do tipo incriminador, o primeiro requisito visado pela norma é a condução (guiar ou dirigir), tendo por objeto o veículo automotor. Conduzir, para os fins desse artigo, significa colocar em movimento mediante acionamento dos mecanismos do veículo. E veículo automotor, nos termos do Anexo I do Código de Trânsito Brasileiro, é todo veículo a motor de propulsão que circule por seus próprios meios. Não são considerados os veículos de tração animal (carroças, charrete etc.) ou propulsão humana (bicicletas, ciclo, carro de mão etc.). Assim, é preciso primeiro que o agente tenha um veículo de propulsão a motor sob seu controle direto, estando no domínio do aparelho de direção (NUCCI, 2015, p. 900; MARCÃO, 2017, p. 174; CAPEZ, 2016, p. 329; BRASIL, 1997).

O segundo requisito, conforme ensina Fukassawa (2015, p. 272) é que o agente, enquanto no domínio do aparato de controle do veículo, esteja alcoolizado ou influenciado por ingestão de outra substância psicoativa, de modo que se encontre com sua capacidade psicomo- tora alterada. Marcão (2017, p. 176) esclarece que “não é necessário que a capacidade psico- motora tenha sido suprimida e, por isso, encontre-se completamente ausente no momento da prática delitiva. Basta que esteja simplesmente alterada; entenda-se: fora da normalidade”.

Além disso, é necessário que fique demonstrado que a alteração decorra da ingestão de bebida alcóolica ou de outra substância psicoativa que determine dependência.

Nesse sentido, Nucci (2015, p. 902) afirma que basta a provocação de excitação psicomotora causada pelo álcool ou outra substância psicoativa, não sendo necessário a de- monstração de um nível tarifado de concentração alcoólica no sangue. Qualquer quantidade, desde que suficiente para perturbar os sentidos, obscurecendo a atenção exigida do motorista, já caracteriza o delito. Em tom semelhante, Fukassawa (2015, p. 275) ressalta que, havendo prova da alteração psicomotora, qualquer concentração alcoólica torna o sujeito paciente das sanções penais do art. 306:

Em face do direito legislado, tem-se, portanto, que o delito em questão se aperfeiçoa independentemente da quantidade de álcool no organismo, ou de outra substância tó- xica constatável na urina do condutor etc., porquanto uma quantidade menor pode, dependendo da pessoa que as ingere, provocar mais alto grau de embriaguez, se evi- denciado que o motorista, em razão do consumo dessas substâncias, não mais tem controle para dirigir com segurança no trânsito em razão da debilidade de coordenação psíquica e motora.

Mitidiero (2015, p. 1072) ressalta que o legislador, ao definir certa tarifação alcoó- lica no inciso I do § 1º, presumiu que o motorista que ultrapassar o limite estabelecido estará com sua capacidade psicomotora necessariamente alterada, ainda que ausentes os sinais visíveis de excitação: “concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar” (BRASIL, 1997). Assim, estará sujeito às penas da lei, independentemente de outras provas. Ou seja, o condutor flagrado em teste de etilômetro com concentração de álcool superior a definida no § 1º, inciso I, terá presumida a inaptidão motora e psíquica, mesmo que não apresente sinais clínicos de embria- guez, estando sujeito às sanções penais insculpidas na norma penal incriminadora. Ele conclui:

Assim, submetido ao teste alveolar, ou ao exame de sangue, havendo resultado posi- tivo para o estado de alcoolizado (nos termos louvados pelo referido inciso I) ― a efeito de correspondência ao conteúdo do tipo penal correspectivo ―, o condutor, indiscutivelmente, encontrava-se conduzindo o veículo automotor com a capacidade psicomotora alterada (MITIDIERO, 2015, p. 1072).

Marcão (2017, p. 183) chega a mesma conclusão na interpretação do dispositivo. Para ele a tarifação alcoólica prevista no inciso I é presunção absoluta da alteração da capaci- dade psicomotora do condutor. Esta é a razão que justifica a instauração da persecução quando aferida a concentração alcoólica apontada, mesmo que o investigado não demonstre sinais vi- síveis de embriaguez em razão de sua particular resistência aos efeitos do álcool:

A alteração da capacidade psicomotora será presumida e restará provada para fins penais se, independentemente de qualquer condução anormal ou aparência do agente, for constatada em exame de dosagem concentração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue, ou igual ou superior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar (MARCÃO, 2017, p. 183).

Haveria, então, duas situações distintas de configuração do delito. A primeira, quando se observar visível e externamente a alteração psicomotora do condutor, sendo nesse caso irrelevante a demonstração da tarifação alcoólica e absolutamente indispensável a produ- ção de prova da degeneração da coordenação motora, atenção, concentração, linguagem etc. nos termos definidos pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran). A segunda, quando for constatado por meio dos testes periciais próprios que os níveis de concentração alcoólica no organismo do motorista ultrapassaram os valores definidos em lei, sendo nesse caso presumida a degradação da aptidão técnica mínima necessária para dirigir o veículo, mesmo que não haja sinais visíveis dessas alterações.

Nessa perspectiva, Cabette (2018, p. 59) explica:

Em suma, é crime, segundo a nova redação da Lei 12.760/12, dirigir automotor sob influência de álcool de modo a estar com a capacidade psicomotora alterada. E essa alteração é constatada mediante a verificação por exame toxicológico de sangue e/ou teste de etilômetro, de concentração de álcool no sangue acima de 6 decigramas por litro ou acima de 0,3 miligramas por litro de ar alveolar. Constatadas essas concen- trações, conclui-se que o agente estava com a capacidade psicomotora alterada, isso não por simples presunção, mas por constatação científica que torna esse fato notório, independendo o perigo da situação de outras provas.

Tal é a compreensão adotada por Capez (2016, p. 329). Para ele é imprescindível a prova pericial produzida por meio de exame de sangue ou teste de etilômetro, uma vez que não há outra maneira idônea de se aferir a quantidade exata de álcool no organismo, sendo a única forma de presumir a alteração da capacidade psicomotora. Caso os testes periciais não sejam realizados, ou o condutor se negue a fazê-los invocando o direito à não autoincriminação, não haverá presunção de alteração psicomotora, sendo necessária produção de prova da existência de sinais exteriores da influência do álcool.

Essa parece ser a interpretação mais natural do dispositivo em seu contexto. Cabette (2018, p. 56) explica que o § 1º, incisos I e II, está diretamente ligado ao caput, estabelecendo alternativas de constatação da alteração psicomotora devido a influência alcoólica. Não é sem razão que os dois incisos estão ligados pela conjunção “ou”, de modo que devem ser interpre- tados separadamente. Ele afirma:

Não há necessidade, para a comprovação da alteração da capacidade psicomotora, que o agente incida nos incisos I e II, mas sim que incida no inciso I “ou” II. É claro que se houver no caso concreto incidência dupla, tanto melhor, mas isso não é exigível e muito menos imprescindível para a caracterização do crime (CABETTE, 2018, p. 56- 57).

Todavia, nessa questão há dissentimentos. Mitidiero (2015, p. 1072) indica Damá- sio como principal expoente de posição diversa para quem, além da prova da influência da ingestão do álcool, inarredavelmente há de se provar concreta e objetivamente a alteração da capacidade psicomotora do condutor. Assim, para a corrente divergente, mesmo que submetido a teste de etilômetro ou de sangue em que seja constatada concentração de álcool igual ou su- perior à definida no regulamento normativo, se não houver prova da alteração dos sinais psico- motores o réu deverá ser absolvido.

Fussakawa (2015, p. 276-277) segue a divergência, afirmando que só haverá crime quando restar provado no caso concreto que houve efetiva alteração das capacidades físicas do motorista em razão da ingestão de álcool ou outra substância. Para ele a presunção havida do § 1º, inciso I, é relativa, podendo o acusado fazer prova contrária de não apresentar deficiências de motricidade, atenção e concentração de modo a afastar a tipicidade. Ele afirma:

Obviamente, o simples fato de conduzir veículo com concentração de álcool nas quan- tidades mencionadas, sob pena de violação do princípio da ofensividade, não pode se constituir em presunção absoluta de alteração da capacidade psicomotora do condutor. Ademais, temos que, na melhor hermenêutica, considerando que no mesmo disposi- tivo legal, o inciso II faz previsão de disposições genéricas (sinais que indiquem alte- ração da capacidade psicomotora) e o inciso I prevê disposições específicas (concen- tração igual ou superior a 6 decigramas de álcool por litro de sangue ou igual ou su- perior a 0,3 miligrama de álcool por litro de ar alveolar), segue-se, ― em melhor interpretação sistemática das normas e na busca da coerência com o conjunto, sobre- tudo para evitar contradições entre elas ―, que a concentração dessas substâncias, para configuração do delito, deve ser sempre aquela que altere a capacidade psi- comotora do condutor que, nesse estado, não mais tem o controle para dirigir com segurança no trânsito. É conclusivo, portanto, que para a caracterização do delito em exame, a lei não mais privilegia os índices de teor alcoólico que podem servir como prova de ingestão da substância e que poderia gerar, se isoladamente e quando muito, presunção relativa de alteração da capacidade psicomotora do motorista, de resto in- servível para fins punitivos.

Nucci (2016, p. 900), que noutro tempo fez parte da corrente diversa, sustentando ser perigosa a punição de alguém sem a demonstração das capacidades alteradas, mudou de opinião. Aderiu à posição majoritária, justificando a compatibilidade da presunção normativa com a colheita exaustiva de dados fáticos anteriores que sirvam de lastro para demonstrar que a conduta é incompatível com o nível de segurança pretendido pela sociedade. Ele conclui:

“essa é a hipótese da embriaguez ao volante. Torna-se inteiramente incabível dirigir veículo automotor, sob influência de álcool ou substância análoga”.

Ainda, até o final da vigência da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, a previsão normativa requeria a condução de “veículo automotor, na via pública”. Como lembram Capez (2016, p. 330) e Cabette (2018, p. 28), estavam excluídas da proteção as propriedades privadas, como o interior de fazendas ou estacionamentos particulares, onde havia evidente risco a ter- ceiros. Com o advento da chamada nova Lei Seca, em 2012, expressão “na via pública” restou suprimida, fazendo-se inferir que o motorista flagrado dirigindo com capacidade psicomotora alterada pela influência de álcool ou substância análoga incorrerá no crime ainda que tal fato ocorra em uma área privada, como estacionamentos, garagens, sítios etc., o que representa con- siderável ampliação da regra punitiva.

A controvérsia suscitada por Cabette (2018, p. 29) e delineada por Marcão (2017, p. 174-176) diz respeito a consideração da existência de lesividade que justifique a tipificação criminal da embriaguez ao volante em área privada. Nesse sentido, ambos defendem que para caracterização do delito será necessária verificação da realização do perigo, concreto ou abs- trato, que legitime a aplicação da lei penal. Assim, será necessária a análise de cada caso indi- vidulamente. Cabette (2018, p. 29) exemplifica:

Pode haver caso em que haja algum perigo, inclusive concreto, e também pode haver outro caso em que não se justifique a movimentação do aparato estatal criminal devido à ausência de tutela de bens jurídicos postos em risco. Exemplificando: no primeiro caso um indivíduo dirige embriagado um carro no quintal de sua casa muito espaçoso e na presença de várias pessoas, inclusive crianças que participam de um churrasco. No segundo, o sujeito está só num sítio afastado completamente de qualquer contato social e guia seu carro nos limites da propriedade sem que haja qualquer pessoa ou propriedade alheia correndo risco de dano. Assim sendo, a conclusão é a de que a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da norma em relação à condução ébria em locais privados será aferida na efetiva aplicação da lei e não abstrata e generica- mente falando.

Marcão (2017, p. 175) arremata na mesma direção, afirmando que ainda que se tenha a tipicidade formal pela condução de veículo nas condições do art. 306 do CTB, nem sempre haverá justa causa para a ação penal quando se tratar especificamente de fato ocorrido no interior de propriedade privada. Será necessário analisar, caso a caso, a presença da lesivi- dade necessária à tipicidade material. Ausente a lesividade no caso concreto, não haverá crime, impedindo a persecução criminal.