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2.4 RAZÕES PARA O DIREITO PENAL MÍNIMO-SUBSIDIÁRIO

2.4.4 Necessidade de subsidiariedade

Por fim, como dito no início dessa seção, direito penal mínimo, intervenção mínima e subsidiariedade são conceitos complementários. Um não subsiste sem o outro. Optar por um direito penal mínimo, que de fato atenda a proteção dos bens jurídicos relevantes à sociedade, só é razoável na medida da existência de instrumentos que impeçam o Estado de exorbitar do uso da norma incriminadora. Esta é a função da subsidiariedade. Como ensina Paschoal (2015, p.11), “antes de recorrer à tutela penal, o Estado deverá lançar mão de todos os outros meios de controle disponíveis para proteger um bem caro à sociedade”.

Na definição de Masson (2015, p. 50), o princípio da subsidiariedade delimita a atuação do direito penal unicamente quando houver fracasso dos outros ramos do ordenamento e dos demais meios estatais de controle social. Por isso, ostenta o caráter subsidiário, comple- mentário, secundário, residual.

Queiroz (2002, p. 58) aponta que o direito penal, sendo a mais agressiva manifes- tação da ordem jurídica, somente deve ter lugar nas hipóteses de grave afronta aos bens jurídicos essenciais que mereçam resposta proporcional e para os quais não bastem as sanções do orde- namento jurídico, como ele chama, “ordinário-principal”.

Nesse espírito leciona Capez (2018, p. 87):

Com efeito, o ramo penal só deve atuar quando os demais campos do Direito, os con- troles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela. Sua intervenção só deve operar quando fracassam as demais barreiras proteto- ras do bem jurídico.

No mesmo sentido se destaca a pesquisa de Greco (2015, p. 128):

Ressaltando o caráter subsidiário do direito penal, Roxin assevera: “A proteção de bens jurídicos não se realiza só mediante o Direito Penal, senão que nessa missão cooperam todo o instrumental do ordenamento jurídico. O Direito penal é, inclusive, a última dentre todas as medidas protetoras que devem ser consideradas, quer dizer que somente se pode intervir quando falhem outros meios de solução social do pro- blema – como a ação civil, os regulamentos de polícia, as sanções não penais etc. Por

isso se denomina a pena como a "ultima ratio da política social’ e se define sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos”.

O caráter subsidiário decorre do fato de que o direito penal não possui ilícitos pró- prios, autônomos, como diz Queiroz (2002, p. 55). Limita-se, no seu entender, a reforçar a proteção dos bens jurídicos fundamentais por meio da sua extrema intervenção. Em outras pa- lavras, todo ilícito penal será ilícito perante os demais ramos do direito, todavia nem todo ilícito em face dos demais ramos do direito será também um ilícito penal. Assim ele explica:

Com efeito, já Rousseau proclamava que as “leis criminais, menos que uma espécie particular de leis, são a sanção de todas as outras”. (…). Realmente, não cria o direito penal um sistema exclusivo, próprio, de ilicitudes, fora ou além da ordem jurídica vigente, mesmo porque, como assinala Nélson Hungria, a ilicitude jurídica é uma só, do mesmo modo que um só, na sua essência, é o dever jurídico. Antes, limita-se a selecionar e sancionar mais gravemente, por sua transcendência, fatos que já o são ― já são proscritos, explícita ou implicitamente ― pela ordem extrapenal, pública ou privada (constitucional, administrativa, civil processual etc.). (QUEI- ROZ, 2002, p. 56-57, grifo nosso)

Consequentemente, não basta identificar o bem jurídico relevante que mereça, por seu valor intrínseco, a proteção penal. É necessário também examinar a eficácia de outras for- mas de controle social, sobretudo de outros ramos do direito, tais como o civil e administrativo. Como sugere Capez (2018, p. 86), antes de conferir a proteção penal a um bem jurídico, o legislador deve se voltar para a comprovada experiência anterior a fim de verificar que por nenhum outro ramo do direito pode ser convenientemente resguardado.

Nesse sentido leciona Paschoal (2015, p.11):

Percebe-se daí que, para proteger penalmente um bem, não basta que se trate de bem relevante a dada sociedade, faz-se necessário verificar em que medida os outros ramos do direito (civil, administrativo, fiscal etc.) ou mesmo outros instrumentos (negocia- ção, mediação etc.) não seriam suficientemente eficazes para proteger o bem em aná- lise. É em razão do dever de tentar utilizar primeiramente todas as outras armas esta- tais que se pode falar em subsidiariedade.

Falando de outro modo, se a conduta reprovável puder ser contida com a utilização de outros instrumentos de controle social, mormente outros ramos do direito, deve-se renunciar ao uso do direito penal como mecanismo de intervenção a fim de deixar-lhe como última opção. Como exemplifica Greco (2010, p. 74), por vezes, o direito administrativo terá força superior à norma penal, considerando sua natureza, sua pronta eficácia, sua coercibilidade e autoexecuto- riedade, fazendo com que situações conflituosas sejam resolvidas com muito mais rapidez e eficiência.

A subsidiariedade garante ao direito penal o alcance de sua finalidade e o pleno gozo de sua eficácia, bem como a proteção satisfatória dos bens jurídicos tutelados pela totali- dade do ordenamento jurídico. Nessa perspectiva, sustenta Nucci (2017, p. 143, grifo nosso), com pertinente exemplo relativo aos crimes de trânsito e a relação com o tratamento dado pelo direito administrativo:

Caso o bem jurídico possa ser protegido de outro modo, deve-se abrir mão da opção legislativa penal, justamente para não banalizar a punição, tornando-a, por vezes, ineficaz, porque não cumprida pelos destinatários da norma e não aplicada pelos órgãos estatais encarregados da segurança pública. Pode-se anotar que a vulgari- zação do direito penal, como norma solucionadora de qualquer conflito, pode levar ao seu descrédito. Atualmente, somente para exemplificar, determinadas infrações de trânsito possuem punições mais temidas pelos motoristas, diante das elevadas multas e do ganho de pontos no prontuário, que podem levar à perda da carteira de habilitação – tudo isso, sem o devido processo legal –, do que a aplicação de uma multa penal, sensivelmente menor.

Enfim, o direito penal deve ser mínimo. E será mínimo somente se tratado como subsidiário aos demais ramos do ordenamento. Somente quando frustradas outras formas de controle, de intervenção, de composição de conflitos e de promoção da paz social, lança-se mão da lei penal para coibir condutas lesivas aos bens jurídicos valiosos. O legislador, raciocinando em cima desse princípio, deve se inclinar à investigação de outras formas de embaraçar e repri- mir o comportamento inconveniente antes de acionar a violenta intervenção criminal.

Há de se investigar, portanto, se a tutela criminal da embriaguez ao volante, tipifi- cada no art. 306 do Código Trânsito Brasileiro, atende a finalidade do direito penal de proteção dos bens jurídicos mais caros à sociedade de forma subsidiária. O tipo penal está em consonân- cia com um modelo de direito penal mínimo-subsidiário? Inexiste outro ramo no direito capaz dar a proteção pretendida à incolumidade pública ou a segurança viária, contribuindo especial- mente para a redução dos índices de acidentalidade? As respostas a estas questões são funda- mentais para descortinar a possibilidade de descriminalização da embriaguez ao volante para uma concentração de esforços na aplicação de penalidades administrativas, de modo a contri- buir mais significativamente para redução da violência no trânsito.

3 A TUTELA PENAL DA EMBRIAGUEZ AO VOLANTE

Diante dessas questões sobre a adequação da figura típica de embriaguez ao volante à finalidade do direito penal, torna-se necessária dissecação do art. 306 da Lei n. 9.503 de 23 de setembro de 1997. O objetivo é investigar os elementos da conduta proibida, de modo a observar se o bem jurídico tutelado é relevante, se da conduta resulta lesividade, se a ofensa é grave o suficiente para receber a tutela penal e se das penas resultam consequências realmente distintas das aplicadas pelo direito administrativo.