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Os bens rurais: estruturação e evolução da paisagem agrária em vinculação com a mineração.

No documento queleningridlopes (páginas 195-200)

O ouro. Nenhum outro bem explorado na América portuguesa havia causado tantas e tão profundas mudanças econômicas, fiscais e sociais quanto esse metal precioso. Em finais do século XVII a descoberta do ouro nos sertões da América portuguesa dava início à formação de uma sociedade que afirmaria, sem dúvidas, a capacidade de articulação e desenvolvimento do mercado interno.

Segundo estimativas do padre Jesuíta André Antonil, ao longo dos primeiros anos do século XVIII já havia em Minas Gerais uma população estimada em torno de trinta mil almas:

A sede insaciável do ouro estimulou a tantos a deixarem suas terras e a meterem-se por caminhos tão ásperos como são os das minas, que dificultosamente se poderá dar conta do número das pessoas que atualmente lá estão. Contudo, os que assistiram nelas nestes últimos anos por largo tempo, e as correram todas, dizem que mais de trinta mil almas se ocupam, umas em catar, e outras em mandar catar nos ribeiros do ouro, e outras em negociar, vendedor e comprando o que se há mister não só para a vida, mas para o regalo, mas que nos portos do mar.410

Aos brancos livres, vindos do reino ou de outros territórios da América portuguesa, somavam-se os indígenas trazidos com ―as gentes‖ paulistas, negros trabalhadores da lavoura canavieira levados por seus donos interessados na nova atividade que tanto atraía a cobiça, mas principalmente os escravos africanos que ano a ano chegavam em grande quantidade nas Minas Gerais a fim de suprir a necessidade de braços necessários na cata direta ao ouro.

O abastecimento de tal contingente populacional é, sem dúvida, uma das principais questões surgida com o advento da produção aurífera, e por ela encetada. Os primeiros anos da exploração do ouro foram marcados pela instabilidade em razão das crises de fome (1698-1699 e 1700-1701) que tiveram lugar pela pouca atenção que os mineiros deram, inicialmente, à produção de víveres, o que levou à inflação sobre o preço de todos os gêneros, inclusive os mais básicos à sobrevivência como o milho.

410 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. Introdução e Vocabulário por A. P.

Segundo o relato de época feito por Bento Fernandes Furtado, alguns paulistas incursionando o território das Minas dos Cataguases em busca da lendária Casa da Casca411, ―achando algum ouro‖ na região que passou a ser chamada de Itaverava, resolveram construir ―seu arraial naquele lugar e uma pequena planta de um alqueire de milho, que era o com que se achavam‖, pois tinham interesse em continuar explorando o local em busca de ouro. Porém, revelando-se ser uma área muito pobre de víveres silvestres e caças (o que era comum aos ―sertões de matos incultos montanhosos e penhascosos‖) rumou a tropa em direção ao rio das Velhas

onde podiam passar à montaria412 com mais descanso e menos

trabalho, enquanto vinham as novidades do triste alqueire de milho que haviam plantado com alguns legumes. Chegado que fosse o tempo em que consideravam os mantimentos em termos de suprir, para fazerem mais experiência no mesmo lugar e continuar a diligência principal, que era a da Casa da Casca (...).413

Após seis meses retornaram, colheram o milho e encontrando ―ouro com mais conta‖ avisaram ―parentes e amigos‖ para seguirem ao achado, mas não descuidaram de fazer novos roçados.

Adriana Romeiro, analisando a influência que os surtos de fome tiveram sobre a caracterização do espaço natural e simbólico das Minas, percebe um ―padrão recorrente nas situações de extrema penúria‖ praticada a princípio pelos paulistas e posteriormente adotada pelos demais aventureiros que iam buscar a sorte na mineração. Quando das correrias pelo sertão em busca do apresamento dos indígenas, os paulistas apreenderam um ―repertório de saberes sobre a natureza, que os capacitava a extrair dela todo o necessário à vida, desde a subsistência até a farmacopéia‖.414 Quando os paulistas se viam em dificuldades buscavam logo o abrigo das matas, onde sabiam encontrar o que lhes era necessário para subsistir até um momento propício para retornarem às suas regiões de origem. No caso exposto acima a intenção era ter condições de permanecer nas áreas de ocorrência de ouro, garantindo a sobrevivência dos que já estavam na lida

411 DELVAUX, Marcelo Motta. ―Cartografia imaginária do sertão.‖ In: Revista do Arquivo Público Mineiro. Vol. 46. Jul.-Dez, 2010.

412 ―Caçada em montes e desertos‖. FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria

Verônica (Coords.) Códice Costa Matoso. Vol. II. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999. p. 109.

413 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (Coords.) Códice Costa Matoso. Vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999.,

p. 171.

414 ROMEIRO, Adriana. ―Os sertões da fome: A história trágica das minas de ouro em fins do século

aurífera fazendo novos roçados e, provavelmente, ampliando-os para a chegada dos amigos e parentes que mandavam irem ao seu encontro.

Aliada à ―fuga para os matos‖, um dos saberes que permitiu a penetração das bandeiras no território que viria a se tornar a Capitania de Minas Gerais foi a técnica do plantio de roças em determinados pontos ao longo do caminho, isto para que na volta das expedições os exploradores pudessem se reabastecer com os víveres que haviam plantado. Nos primeiros anos de povoamento de Minas Gerais manteve-se este tipo de técnica:

Assim que chegavam as Minas, todos tratavam primeiro de plantar suas roças nas imediações das datas minerais, instalando-se depois nos arraiais e povoados, para esperar até que os mantimentos pudessem ser colhidos. Só então é que se tinha início os trabalhos de mineração.415

Mas devido à fragilidade de equilíbrio entre o aumento populacional constante e a produção auferida das roças, as crises de fome sempre assombravam os mineiros. A precariedade do abastecimento nas Minas nos anos iniciais também dificultava a incursão de novos exploradores à região pela incerteza do provimento de mantimentos e pousos nos caminhos a serem percorridos em tão dilatado tempo de viagem.416 No Códice Costa Matoso há o relato de um indivíduo que, sendo forasteiro e tendo chegado ao Rio de Janeiro em idos de 1692, justifica que apesar de ter notícias das ―grandezas‖ das Minas só lhe foi possível passar às Minas por volta de 1698-99 pela ―falta de mantimentos nos caminhos e cama, de que morria muita gente‖ à época.417

O início do povoamento de Minas Gerais não foi simples. Ao contrário, exatamente por ter sido fruto de um boom populacional pouco ou nada controlado, com a ausência da autoridade real configurada por uma administração local ainda inexistente e pelo precário abastecimento das zonas mineradoras- resultado de caminhos e rotas de difícil acesso e passagem além de largo tempo de viagem-, os primeiros anos da exploração do ouro foram marcados por questões que exigiam soluções prementes e precisas.

415 Loc. cit.

416 A respeito das rotas, tempo de percurso e condições dos Caminhos Velho (ou dos Currais) e Novo que

ligavam Minas Gerais aos principais portos (Bahia e Rio de Janeiro) ver: SCARATO, Luciane Cristina.

Op. Cit., 2009, p. 27-77 (Capítulo 1); GUIMARÃES, André Rezende. Op. Cit., 2009.

417 FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida; CAMPOS, Maria Verônica (Coords.) Códice Costa Matoso. Vol. I. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999,

De tal sorte, o surgimento de forte demanda de bens de consumo de toda sorte ensejou rapidamente a criação de um espaço amplo de atuação de comerciantes e mercadores com vistas ao abastecimento das zonas mineradoras, que seria facilitada pela abertura do Caminho Novo ligando as Minas Gerais ao Rio de Janeiro, principal porto de entrada e saída de produtos importados e de exportação a partir de então. Do Caminho Velho (rota para a Bahia) e Caminho Novo inúmeros comerciantes ligados às casas comerciais da Bahia, Rio de Janeiro e mesmo das mais afastadas praças como a de Lisboa rumavam para os sertões das Gerais em busca de negócios com vistas a venderem toda sorte de artigos, desde os supérfluos de luxo, comestíveis importados até os elementos indispensáveis à economia mineradora, como escravos e ferramentas de mineração.

A existência de um setor abastecedor interno ao espaço colonial foi de suma importância para a continuidade da reprodução da economia mineradora, mas a criação de um setor de abastecimento local também teve grande importância. É ilógico pensar que uma área onde a demanda de abastecimento crescia exponencialmente ao longo dos anos- resultado do contínuo afluxo de brancos livres e escravos- não fizesse surgir em seu encalço um setor local de produção de víveres básicos à sobrevivência. De tal modo, a agricultura e a criação de animais de pequeno porte grassou em torno das áreas de exploração aurífera concomitante ao descobrimento e expansão destas.

Fruto de um ritmo contínuo de mobilidade pela região, em virtude da própria característica da produção aurífera, surgiu um mercado de terras rurais que pontilhava os núcleos de mineração, nas quais terras produtores rurais (muitas vezes, sendo estes os próprios mineiros) produziam e beneficiavam os gêneros alimentícios básicos da sua dieta alimentar (como o milho, a mandioca e suas farinhas), criavam animais (como porcos e gado vacum) e realizavam a produção de aguardente para o consumo dos seus escravos e/ou para o abastecimento do mercado local.

Contínuas ou mais afastadas das lavras minerais, os produtores estabeleceram desde cedo nos núcleos mineradores roças onde se cultivavam os gêneros básicos para sobrevivência que, ao lado do abastecimento feito por outras regiões da América portuguesa, permitiram a manutenção dos moradores das minas, livres, libertos ou escravos.

Neste capítulo buscamos caracterizar a estrutura produtiva das propriedades rurais, a evolução das mesmas ao longo do tempo, os frutos da terra, seu beneficiamento e ligação com o abastecimento local, assim como identificar a inserção das atividades

agropecuárias às escolhas econômicas dos seus proprietários e o tipo de produção realizada. Todas as questões serão tratadas inicialmente sob o ponto de vista dos tipos de propriedades e posteriormente conduziremos a análise a aspectos mais específicos de alguns desses tipos de propriedade.

3.1 Características gerais das propriedades rurais

Ao contrário do que ocorre com as sesmarias, que eram concedidas habitualmente com uma légua em quadra ao peticionário418, é tarefa impossível dimensionar com exatidão a extensão dos demais tipos de propriedades rurais. Além da informação das terras de terceiros, referências geográficas e toponímicas com as quais a propriedade fazia divisa (se limitava, confrontava), não havia qualquer rigor em definir as demarcações de amplitude das mesmas. Contudo, 14,3% das negociações envolveram mais de uma propriedade, comumente localizadas de modo contínuo entre si, indicando que as terras poderiam formar em seu conjunto um espaço produtivo mais significativo (Tabela 6). Esse conjunto de propriedades poderia ter uma estrutura de benfeitorias e sistema produtivo modesto ou robusto independentemente da quantidade de terras a elas pertencentes.

Tabela 6

Quantidade de propriedades nas negociações de bens rurais (1711-1779)

Quantidade de Propriedades rurais N. %

Mais de uma 195 14,3%

Apenas uma 1168 85,7%

TOTAL 1363 100,0%

Fonte: AHCSM, 1o e 2o Ofícios, Livro de Notas, escrituras de compra e venda (1711-1779)

Dos três sítios que lhe pertenciam, em São Sebastião, o Sargento-Mor Manoel Fernandes Frias matinha um deles como a sede da propriedade (ou das propriedades): o sítio chamado ―Cachoeira‖ tinha a maior parte das ferramentas de roça, uma casa de vivenda coberta de telha ―com seus repartimentos‖, os móveis e utensílios de casa, paiol, senzalas, engenho de pilões. As terras se repartiam em diferentes sistemas de cultivo e para uso de animais: ―um pasto fechado no mesmo sítio para cavalos‖; uma

área de cultivo de gêneros básicos de alimentação, dos quais, 13 alqueires de milho, mandioca (1 alqueire), feijões preto e vinagre (1/2 alqueire cada), arroz (2 alqueires e 1/4) e um carazal (inhame). Em outra área ficava um robusto pomar com ―bananal grande‖, 25 pés de laranjeira que já davam fruto, ―300 pés de laranjeira plantada de pouco‖, além de ―vários pessegueiros‖ e um ananazal419, parreiras, limeiras, limoeiros ―que já dão‖, algumas ―sidreiras‖ e ―5 melanciais‖. Finalizando o espaço produtivo existia ―uma horta grande com água dentro‖. Uma ―cerca grande de braúna com porteiras‖ delimitava ao menos parte do espaço da propriedade.420

Por si só o sítio da Cachoeira já apresentava uma grande área de terras produtivas, mas somavam-se a seu espaço de produção ainda dois sítios. Um deles compreendia-se apenas por ―suas terras e matos‖ e três ranchos de capim. O outro, chamado ―a Rocinha‖, era formado também por ―suas terras e matos‖ e plantado com um bananal e um ananazal. Essas duas propriedades podem ser entendidas como extensões produtivas da propriedade principal, ou sede.

Tudo fora adquirido anteriormente de um mesmo vendedor, portanto, o conjunto de terras não era resultado de agregações de parcelas separadas a uma propriedade inicial. Todas as terras dos três sítios eram unidas fisicamente, sabemos disso por serem declaradas como ―místicas‖ (juntas, próximas) e também por serem declaradas sob a mesma confrontação de vizinhos. A cerca de braúna com suas porteiras (não é algo comum nas descrições) parece indicar mais uma divisão de ―entrada‖ ou início do sítio da Cachoeira do que propriamente um elemento físico separando as terras. O fato de não serem tomadas, ou descritas, como uma única propriedade pode se relacionar às lavras minerais que existiam em dois dos sítios, tornando a divisão necessária para a boa demarcação das terras minerais ou para facilitar uma futura revenda dos mesmos sítios.

Outras compras e vendas, que incluíam duas ou mais propriedades, deixam entrever que a posse de múltiplas unidades produtivas não reflete de imediato um grande investimento na atividade agrária. Em 1732, José Gonçalves vendeu a Dionísio Alves Ferreira a metade de uma roça e um sítio, no arrabalde da Vila do Carmo, as quais propriedades possuíam uma ligação física por serem limítrofes (divisavam entre si). Somente na roça constavam benfeitorias construídas, as quais se resumiam às casas

419 Plantação de abacaxis.

No documento queleningridlopes (páginas 195-200)