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Ela era capaz de projetar uma personagem e todas as camadas da psicologia e das emoções com a voz.

Nº 9. As Bodas de Fígaro

“As Bodas de Fígaro” (1786) é uma ópera do Classicismo67 (1750-1820), composta

pelo austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), com libreto de Lorenzo da Ponte (1749-1838), baseado na peça homônima “Le Marriage de Figaro” de Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais (1732-1799).

Na ópera, Figaro vai se casar com Susanna, que o alerta sobre as investidas do Conde, patrão deles, para tentar conquista-la. A Condessa sabe que seu marido deseja sua empregada e sofre com isso, mas ela e Susanna se unem e elaboram um plano para pegá-lo em flagrante. Além desses personagens, tem a Marcellina (que está apaixonada por Figaro) e o Don Bartolo (que está apaixonado por Susanna) e eles se unem para conseguir o que querem, mas acabam descobrindo que eles são os pais de Figaro. Outro personagem de destaque é o Cherubino, que pode ser representado por uma mezzo-soprano, uma soprano ou, ainda, por um contratenor. Ele é um adolescente que se interessa por todas as mulheres e tem uma admiração especial pela Condessa, mas acaba se casando com a Barbarina, outra jovem serva.

O plano da Susanna e da Condessa consiste num bilhete, escrito por Susanna, convidando o Conde para encontra-la num pequeno bosque do jardim, mas as personagens trocam de roupa e ao chegar ao local combinado, ao invés de se encontrar com sua serva, ele encontra a Condessa. Então, ele se envergonha do que fez, pede perdão e a Condessa o aceita de volta. Como é possível observar, ao contrário da ópera anterior, esta obra tem caráter cômico e possui um final feliz.

Durante esse período, a ópera (e as artes em geral), influenciada pelos ideias da Revolução Francesa de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, era pensada como um espetáculo para ser consumido pelo povo e até mesmo as temáticas, inicialmente pensadas nos heróis mitológicos gregos vão mudando e dando espaço para histórias e situações cotidianas.

Com a ascensão da numerosa classe média a uma posição influente, o século XVIII assistiu aos/primeiros passos de um processo de popularização da arte e do ensino. (...) Tanto a filosofia e a ciência como a literatura e as belas-artes começaram a dirigir-se a um público amplo, e já não apenas a um grupo selecto de peritos e conhecedores. Escreveram-se tratados populares para colocar a cultura ao alcance de todos, enquanto os romances e as peças de teatro começavam a retratar pessoas comuns, com emoções comuns (GROUT, 1997, p. 478).

74 Nesta ópera, existe uma crítica a uma lei medieval chamada de “O Direito do Senhor”, que dizia que o senhor feudal teria o direito de desvirginar suas servas, em sua primeira noite de núpcias e o Conde, na ópera, queria que essa lei voltasse para poder se deitar com Susanna.

Figura 18: As Bodas de Fígaro

Fonte: acervo da autora

Dos períodos da música erudita ocidental, o Classicismo foi o mais curto, entretanto, nenhum compositor ficou tão conhecido e consagrado quanto Mozart.

Mozart foi tão importante para a ópera e para a Música Clássica em geral, que é muito comum ouvirmos de professores(as) de canto lírico “se você canta Mozart bem, você canta qualquer coisa”, pois ele é um dos melhores compositores para peças vocais. A prosódia de suas músicas deixa o texto claro, na maior parte do tempo e apenas em alguns momentos, também a depender da(o) personagem, ele inclui alguns floreios. Mesmo com esse equilíbrio, suas músicas são de difícil execução, apenas aparentando ser simples, devido à fácil assimilação melódica que ele criava e suas cadências previsíveis.

O estilo de música galante, com linhas melódicas bem definidas, relação de texto e melodia em equilíbrio, uma maior exploração da extensão vocal dos cantores, histórias majoritariamente cômicas, entre outras características, fazem com que Mozart se torne um dos maiores compositores clássicos da história, com peças muito conhecidas, até mesmo por pessoas que não estudam música e esses aspectos fizeram com que suas composições se popularizassem em âmbito mundial.

75 Foram esses os motivos que levaram o Grupo de Ópera Canto Dell’Arte a encenar essa ópera, em 2006, mas a Profa. Agosto fez algumas adaptações, as quais ela chamou de “costuras textuais”, que eram textos falados, em português, que ela escrevia e que substituíam os recitativos e as partes orquestrais. As árias e coros, por sua vez, eram mantidos, bem como o contexto da história. Essas adaptações, propostas pela professora, reduziam o tempo da ópera de 3h (tempo médio da ópera completa) para somente 1h.

A Profa. Maria de Agosto criou essas “costuras” na perspectiva de aproximar a ópera do público, pois o contexto histórico em que a obra foi escrita se difere bastante do atual.

Essa ópera foi montada com figurinos e atuação apenas para os solistas e o coro estava disposto em formato concerto. O figurino e a direção cênica também foram coordenados pela Profa. Maria de Agosto.

A Susanna foi interpretada pela soprano Hilkélia Pinheiro68, a Condessa era a soprano Maria de Agosto, o Figaro era o barítono José Fernandez69, o Conde era o barítono Rodrigo Bandeira70 e o Cherubino era a mezzo-soprano Raquel Xavier71.

Eu havia entrado no grupo, mas nada soube à respeito desta apresentação que, provavelmente, foi montada utilizando apenas alguns cantores do grupo mais experientes. Quando entrei, estavam estudando algumas peças sacras e alguns coros de ópera, como o “Va Pensiero” da ópera Nabucco de Verdi, para apresentações em formato concerto e que, geralmente, correspondem à abertura em congressos, seminários e outras atividades da instituição e foram essas as peças que tive contato ao chegar.

Por volta deste período, entre 2006 e 2007, aconteceu algo inusitado comigo no grupo, todavia. Lembro-me, como se fosse ontem – eu tinha entrado no Dell’Arte e cantava no naipe de contraltos72. A solista era a Profa. Ângela, uma cantora de voz poderosa, em termos

68 Hikélia Pinheiro é Bacharel em Música com Habilitação em Canto Lírico, é integrante do Coral Canto do Povo

e é uma cantora famosa por cantar em casamentos e por ter shows próprios, como o “Opera Rock” e “Cinema Paradiso”, que já ganharam o Prêmio Hangar de Música.

69 José Luís Fernandes Neto é Bacharel em Música com Habilitação em Canto Lírico, é integrante do Coral Canto

do Povo e é fundador do Harmonium, empresa e grupo musical que toca em eventos, principalmente, em casamentos.

70 Rodrigo Pereira Bandeira possui graduação em Processamento de Dados pela UnP (1998) e mestrado em

Engenharia Elétrica pela UFRN (2002). Atualmente é Sócio Executivo da Khronus Soluções, onde atua como Diretor Técnico.

71 Raquel Xavier Pinheiro é Bacharel em Música com Habilitação em Canto Lírico e, atualmente, é dona de uma

empresa de biscoitos decorados.

72 Uma vez que a formação clássica de corais é a quatro vozes: soprano, contralto, tenor e baixo e vozes graves

são mais difíceis de se encontrar, aqui em Natal/RN, é muito comum, nos coros, colocarem as vozes medianas para compor os naipes de vozes graves. Em algumas ocasiões, quando não existem nem vozes medianas, é comum

76 de volume e expressividade e ela ia cantar a ária Habanera, da ópera Carmen, de Bizet, no entanto, ela tinha faltado esse dia e estávamos ensaiando no palco do auditório da EMUFRN.

Eis que a Profa. Maria de Agosto pergunta:

– Eu pedi para as mezzos estudarem esse solo, para ensaiarmos na ausência da Profa. Ângela. Quem estudou?

E nós, integrantes do naipe de contralto, começamos a cochichar: “vai você. Não! Você” e eu falei, em tom baixo “eu sei a melodia, mas não sei a letra” e eis que uma colega minha me empurra, o que faz com que eu ganhe evidência e vá para a frente de todos, dizendo “ela sabe!”

Agosto fez um gesto com a mão, me chamando para a frente do palco e fiz algo que jamais imaginaria fazer, ainda mais sendo recém-chegada ao grupo e inexperiente no canto lírico: enfrentei meu medo e minha timidez73 e cantei.

O tímido é alguém com receio. Receio do quê? A lista é enorme: de ser criticado em público; de não ser o melhor; de não atingir as expectativas dos outros (principalmente dos pais); de tomar decisões que possam ser mal- interpretadas; ou, simplesmente, de ouvir um “não”. Ou seja, a solução para os males do tímido não está nele, está nos outros. E os outros, em vez de colaborar, ainda acham divertido chamar o tímido de acanhado, encabulado, envergonhado, enrustido, esses rótulos que só ajudam a piorar a situação (GEHRINGER, 2019, p. 24).

Eu não sei o que me aconteceu nesse dia. Normalmente, eu teria recuado, como já fiz muitas vezes, mas eu queria cantar e como não sabia a letra (só a do coro), fiz boa parte dela solfejando com “la, la, la”. Não tinha experiência, nem técnica o suficiente. Apenas vi que o espaço era enorme e tentei cantar o mais alto que pude, dentro da minha limitação técnica de cantora iniciante.

A timidez, portanto, acontece em situações sociais em que é preciso se expor e/ou se expressar e, para que não seja o objeto de atenção do outro, a pessoa tímida prefere a segurança do isolamento (VIEIRA, 2017, p. 50).

Vi a Profa. Maria de Agosto inquieta. Ela estava na plateia e andava para trás e depois, para frente do palco. Ela pedia para eu abrir os braços e me soltar, mas meu corpo estava

escolherem vozes agudas com bons graves para compor os naipes de baixos e contraltos. Portanto, eu sou uma soprano com bons graves, mas, na época, achava que era mezzo e devido a esses sons graves e a necessidade do grupo por esses tipos de vozes, cantei no naipe de contraltos por bastante tempo. 5 ou 6 anos, aproximadamente. 73 A palavra “timidez” vem do latim timere e significa “ter medo” (GEHRINGER, 2019, p. 24). A psicóloga Vieira (2017), fundamentou-se em Henri Wallon, que define a timidez como sendo uma emoção; é o medo que se tem frente às pessoas e está relacionada à sensibilidade à presença e/ou aproximação do outro.

77 duro como uma estátua, com os braços colados aos quadris, morrendo de medo de estar ali em cima, cantando.

A dimensão motora se torna fundamental para a compreensão da timidez como emoção e de sua expressão; enrubescimento, os tremores, a sudorese, a secura na boca, o aceleramento dos batimentos cardíacos, as perturbações na linguagem (como gaguejar e falar baixo), a sensação de enfraquecimento ou rigidez dos músculos, os movimentos descoordenados e o encolhimento dos ombros são exemplos de reações posturais ou expressão que caracterizam a timidez (VIEIRA, 2017, p. 46).

Quando a música acabou, eu baixei a cabeça e pensei que havia passado o maior vexame da minha vida, mas os aplausos dos meus colegas veteranos me surpreenderam, bem como o comentário da professora para mim: “menina, você cantando foi um tapa na minha cara”.

Dentro de cada tímido, há um artista esperando a hora de brilhar. E dentro de cada artista, há um tímido que encontrou a válvula de escape. O único empecilho para o tímido é ele mesmo quando se propõe a deixar de lado o possível no curto prazo para tentar fazer planos inatingíveis de longo prazo. No fundo, os tímidos são os melhores entre nós, mas boa parte de nós não percebeu isso. E boa parte deles, também não (GEHRINGER, 2019, p. 26).

Eu desci do palco com as pernas bambas e trêmulas e quase caí da escada, que era o acesso entre o palco e a plateia, de tão nervosa que estava, mas tive a minha primeira grande vitória, que foi enfrentar o palco.

Sob a ótica desta gama de sensações, o comentário da professora Agosto, na lembrança que narrei, não é nenhuma novidade, pois muita gente não espera muita coisa de pessoas tímidas e nem eu mesma sabia que podia cantar. Eu só cantava para mim mesma e, nesse sentido, esse aspecto pessoal interfere diretamente no meu eu artístico, pois para interpretar uma personagem numa ópera, terei de me expor, obviamente.

Mesmo num ensaio, aquilo foi um grande desafio para mim, devido à tamanha exposição em que me coloquei. Eu morria de medo de palco e de toda e qualquer situação onde eu estivesse numa posição de destaque, com todas as atenções voltadas para mim, mas, ao mesmo tempo, eu busquei o Grupo de Ópera, justamente, para me ajudar a vencer esse medo da exposição. Para ver se eu aprendia e conseguia cantar sozinha no palco e não apenas em coro.

Foi nesse momento que eu soube que era aquilo que eu queria fazer durante toda a minha vida, entretanto, tinha um enorme entrave: a própria timidez em si.

78 Pessoas tímidas tendem a ser mais criativas do que a média. Mas elas têm dentro de si, ao mesmo tempo, o acelerador que lhes permitiria contribuir com grandes sugestões e o freio que as impede de simplesmente levantar a mão em uma reunião para fazer uma pergunta (GEHRINGER, 2019, p. 26).

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