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Ela era capaz de projetar uma personagem e todas as camadas da psicologia e das emoções com a voz.

Nº 10. Orfeu e Eurídice

A segunda ópera completa apresentada pelo Dell’Arte foi “Orfeu e Eurídice” de Chistoph Willibald Glück (1714-1784), com a OSERN74 e o Balé da EDTAM75, que estreou no Teatro Alberto Maranhão, em duas récitas, no ano de 2007, sob a regência de André Muniz76, Direção Geral e Preparação Vocal de Maria de Agosto Varela, Direção Cênica de Márcio Rodrigues, Iluminação de Ronaldo Costa77 e Coreografia de Wanie Rose78.

Glück é um compositor de transição (Barroco para o Classicismo, logo, veio antes de Mozart) e, geralmente, os compositores de transição são muito importantes porque as ideias que eles trazem influenciam todos os músicos que vêm depois.

Inspirado pela tragédia grega, na ópera francesa e pelos ideais iluministas, Glück propõe uma série de reformas à opera seria (gênero muito popular, na época, dominado, especialmente, pelos italianos), entre elas, a simplificação da melodia e do excesso de notas, para melhor compreensão do texto, com melodias mais pensadas no drama, extinguindo, também a Ária da Capo79; árias mais curtas, mas com mais densidade psicológica das personagens; transição mais fluida do recitativo para as árias, com recitativos que expressem uma maior importância dramática; coros com papeis mais significativos; maior eficiência dramática da orquestra; entre outras.

A sua ópera mais famosa é Orfeu e Eurídice (1762), que foi escrita por ocasião dos festejos em homenagem ao imperador Francisco I, com coreografia de Gasparo Angiolini

74 OSERN – Orquestra Sinfônica do Estado do Rio Grande do Norte.

75 EDTAM – Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão. 76 André Muniz é maestro da Orquestra Sinfônica da UFRN.

77 Ronaldo Fernando Costa é iluminador cênico, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN.

78 Wanie Rose Medeiros é diretora do EDTAM.

79 É um tipo de ária em que repete do início da indicação na partitura, entretanto, na repetição é possível que o(a) cantor(a) dê a sua interpretação à música, ornamentando-a de acordo com o caráter que a música exigia, mostrando suas habilidades como cantor(a) e intérprete.

79 (1731-1803), cenografia de Giovanni Maria Quaglio (1772-1813) e libreto de Ranieri de’ Calzabigi (1714-1795).

O libreto escolhido trouxe mudanças muito radicais como, por exemplo, a história da ópera começar com a personagem Eurídice morta, ao contrário do que era feito em obras anteriores. Já o coro apresentava múltiplas funções, assim como era feito no teatro grego e, ao contrário da história da tragédia grega original, o final é feliz.

Eurídice morre picada por uma cobra e o Amor (Eros/Afrodite) se emociona com a dor de Orfeu, poeta e musicista, que chora a perda da amada e lhe concede uma lira mágica, que permite abrandar o coração das criaturas que ele encontrará em Hades, reino dos mortos, para resgatá-la. A única condição que o Amor impôs é que ele não olhasse para ela, senão, ela morreria de novo. Orfeu então vai para o Érebo80 e consegue aplacar as Fúrias81 e o Cérbero82 com sua lira, mas ao encontrar Eurídice, ele não resiste à tentação de olhar para ela e, na tragédia grega original, a chance de trazê-la de volta é perdida e ele cai em desespero, mas nesse libreto, o Amor reconhece o esforço de Orfeu de tentar resgatar sua amada, sente piedade e ressuscita Eurídice.

“Orfeu e Eurídice” de Glück foi a primeira ópera em que participei, como integrante do Dell’Arte. Eu fazia parte do coro, no naipe de contraltos, na época.

Figura 19: O Amor fala com Orfeu

Fonte: acervo da autora

Figura 20: Triunfa o amor83

Fonte: acervo da autora

80 Érebo é filho do Caos e é a personificação das trevas. Ele foi trancado no Tártaro e deu seu nome a uma região de Hades, onde os mortos tinham que passam imediatamente para depois, atravessarem o rio pela barca de Caronte e entrarem no Tártaro, que é o submundo propriamente dito.

81 Fúrias ou Erínias eram divindades gregas que puniam os mortos no submundo, após o julgamento de Hades, deus dos mortos. As três Erínias se chamavam Tisífone - o castigo, Megera - o rancor e Alecto - a interminável. 82 Cachorro de três cabeças que guardava a entrada de Tártaro.

83 Vídeo do Grupo de Ópera Canto Dell’Arte cantando a última peça da ópera “Trionfi Amore” (Triunfa o Amor),

80 Uma vez que participei do grupo, nessa época, posso descrever melhor o processo de preparação– primeiramente, o coro estudava as peças e depois, o maestro e a diretora nos orientavam na interpretação musical das mesmas. Então, as músicas eram decoradas para, enfim, poder juntar música e cena.

Paralelamente, (as)os solistas eram encarregadas(os), individualmente, de estudar seus respectivos papeis, uma vez que todas(os) eram alunas(os) de canto da EMUFRN e eram mais bem preparadas(os) como solistas.

O coro era bem diversificado – havia, ainda, algumas/alguns alunas(os) de canto, mas a maioria era da comunidade externa, inclusive eu. Eu observava a dificuldade do coro de lembrar as indicações musicais que eram passadas nos ensaios e como tínhamos uma pauta já marcada e uma parceria estabelecida com a OSERN, começamos a parte cênica mesmo assim. Essa inclusão de tantas pessoas externas e que não eram alunas(os) de música foi muito criticada pelos membros mais antigos, pois tinham que recomeçar e/ou ensinar tudo às/aos novatas(os) e isso, muitas vezes, atrasava todo o cronograma do trabalho.

Hoje, enquanto integrante da Comissão que auxilia o atual maestro na tomada de decisões, eu compreendo essas críticas, pois passamos por isso todos os anos (somos um Projeto de Extensão, afinal de contas), mas, ao mesmo tempo, penso que se não fosse essa oportunidade concedida, eu jamais integraria o grupo e jamais teria o crescimento que eu tive e devo tudo a essa chance. Talvez, eu nem mesmo estaria escrevendo essa dissertação hoje ou descobriria que o que quero é cantar ópera e as músicas do repertório erudito, portanto, não concordo com essas medidas excludentes.

Aliás, é comum que as pessoas da comunidade externa, ao integrarem o Grupo de Ópera, passam a se interessar por um estudo mais aprofundado do canto lírico e depois, passam a fazer parte da academia como alunas(os), seja do curso Técnico, Licenciatura ou Bacharelado em Música. Foi o meu caso e o de muitas(os) outras(os) cantoras(es).

Como coralista dessa ópera, minha dificuldade e de muitas outras pessoas era conseguir lembrar dos aspectos de técnica vocal em cena e, ao mesmo tempo, conseguir observar a regência do maestro André Muniz.

Márcio Rodrigues era o nosso preparador cênico e achava muito interessante o conhecimento que ele adquiriu ao estudar algumas óperas. Ele havia me ensinado, inclusive, que o piso do palco do teatro tinha que ser de madeira, pois a voz de projetava melhor assim e falou, também, da diferença de interpretação das(os) cantoras(es) líricas(os) através do tempo.

81 Lembro que ele chamou a atenção, quanto à nossa atuação, quando estávamos interpretando os mortos, que estavam junto com as Fúrias. “Vocês conseguem imaginar a Hello Kitty84 malvada? É como vocês estão parecendo agora. Coloquem mais verdade nisso, sem medo de fazer cara feia” e essa crítica foi, especialmente, para nós, as meninas do coro.

Ele fez as marcações cênicas em relação ao momento de entrarmos e sairmos, as expressões que deveríamos fazer, de acordo com as músicas, algumas movimentações, como o momento em que o coro abre caminho para que Orfeu e Eurídice se reencontrem, nos Campos Elíseos e lembro, também, dele falando da expressão que as heroínas e os heróis dessa deveriam ter, ao explicar que “o herói tinha algo de imponente e sinistro, ao mesmo tempo.”

Na cena da chegada de Orfeu no Érebo, ele imaginou o coro erguendo o Orfeu nos braços, tirando-o do chão e passando o seu corpo uns aos outros, mas a Profa. Maria de Agosto não concordou com essa ideia, com medo de que isso pudesse comprometer a técnica vocal do coro, que era composto por iniciantes, em sua maioria e a cena não foi realizada desta forma.

A questão do corpo no teatro é bastante recorrente e ainda é comum encontrarmos reflexões sobre qual deve ser o treinamento do ator para que ele esteja disponível e preparado para a encenação. No caso da ópera o corpo parece ainda obedecer à ideia de corpo instrumental: o corpo que produz a voz. O corpo que, tal qual um instrumento, deve estar estável para a produção do que é esperado em relação à técnica vocal. Ainda é comum encontramos comentários publicados ou declarados que justificam e valorizam a ideia de que o corpo do cantor deve mover-se de modo a não prejudicar o canto a tal ponto que muitos críticos tendem a condenar as encenações nas quais o corpo do cantor é, na verdade, um corpo cênico (VELARDI, 2011, p. 42-43).

Há algumas/alguns cantoras(es) que ainda seguem essa ideia “do corpo como um instrumento”, como foi mencionado acima e acabam se tornando resistentes à cena, no entanto, o que pode ser percebido na escolha da Profa. Maria de Agosto está em consonância com o que Peter Brook fala abaixo:

É muito importante examinar simultaneamente e sem preconceitos o teatro clássico e o teatro comercial, o ator que ensaia durante meses e aquele que se prepara em poucos dias, comparando o que se pode fazer quando há muito dinheiro com o que dá para fazer quando há muito pouco – em outras, palavras, as diferentes condições da representação teatral (BROOK, 2011, p. 11).

82 Portanto, ao observar a disponibilidade do coro e o que ele poderia oferecer ao espetáculo, em suas condições (pouca ou nenhuma experiência cênica, pouca técnica vocal e pouca prática de junção do corpo com a voz), a Profa. Maria de Agosto preferiu não arriscar.

Além disso, mais um elemento tinha sido adicionado à dificuldade da técnica vocal e da cena: a regência de um maestro diferente do habitual, pois além de nos conduzir, ele tinha que conduzir toda a orquestra. Já foi muito difícil para todas(os) nós, do coro, juntar os dois e sermos frequentemente interrompidos, por reclamações de Agosto, por causa do canto e de Márcio, por causa da atuação e quando o maestro da orquestra veio nos reger, tivemos mais informações musicais, quanto à interpretação da obra pelo maestro.

O figurino foi pensado por Márcio e pela Profa. Agosto, no qual a roupa dos camponeses e dos solistas, no I Ato, foi confeccionada por costureiras e a roupa do coro das Fúrias foi confeccionada pelos próprios coralistas. A roupa dos solistas, dos camponeses, tecidos e acessórios foram todos patrocinados pelos diretores do grupo. As roupas dos heróis e heroínas, nos Campos Elíseos, foram reaproveitadas da ópera “Dido e Enéias”.

Figura 21: Campos Elíseos

Fonte: acervo da autora

A roupa do coro das Fúrias foi feita com tecido, que foi tingido e descolorido: enrolamo-as e demos alguns nós, para que se ajustassem melhor aos nossos corpos e que parecessem túnicas gregas, rasgamos as pontas e queimamos um pouco o tecido, para atribuir

83 um aspecto de velho e sujo. Também utilizamos algumas meias-calças, também descoloridas, para colocarmos nos braços e parecer com peles doentes.

As três Fúrias possuíam roupas semelhantes às nossas (túnicas rasgadas, porém mais escuras) e foram interpretadas por três bailarinas do EDTAM. Apesar de serem personagens femininas, havia um bailarino.

O cenário foi feito com voile e, na cena das Fúrias, foram utilizadas uma rede de cordas antigas, que foi emprestada ao grupo pela Marinha Brasileira. O cenário também foi idealizado pela Profa. Maria de Agosto.

Figura 22: Orfeu enfrenta as Fúrias no Érebo

Fonte: acervo da autora

Mais uma vez, a ópera contou com dois elencos para a personagem Eurídice, que foi interpretada pela soprano Leciana Oliveira85, à convite da Profa. Agosto, num dia e no outro,

pela soprano Thaíse Matias86. Uma curiosidade é que as personagens do Amor e do Orfeo, tanto

podem ser representadas por homens, quanto por mulheres. A diferença é que o Amor pode ser cantado por soprano ou contratenor e o Orfeu pode ser cantado por uma mezzo-soprano, um contratenor ou um barítono. Quem interpretou o Amor foi o contratenor Luciano Sabino e o

85 Leciana Oliveira é Bacharel em Música com Habilitação em Canto pela UFRN e é integrante do Grupo Harmonium e do Coral Canto do Povo.

86 Thaíse Matias é Bacharel em Música com Habilitação em Canto pela UFRN e é professora de canto popular na IFCE em Limoeiro/CE.

84 Orfeu foi interpretado por Gilmar Bedaque87, cantando no registro de tenor, que apesar de não ser o registro ideal para o personagem, foi a opção escolhida pela direção do grupo.

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87 Gilmar Bedaque é tenor e contratenor, Bacharel em Música com Habilitação em Canto pela UFRN, professor de canto lírico e popular da Escola 4por4 e é preparador vocal do Grupo Acorde.

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