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BOIADA CUIABANA.

No documento Download/Open (páginas 154-159)

CAPÍTULO IV – LENDO AS MODAS

BOIADA CUIABANA.

Autor: Raul Torres

I

Vou contar a minha vida Do tempo que eu era moço. De uma viagem que fiz

Lá pro sertão do Mato Grosso. Fui buscar uma boiada

Isto foi no mês de agosto. II

Meu patrão foi embarcado Na linha Sorocabana Capataz da comitiva Era o Juca Flor da Fama Fui tratado pra trazer Uma boiada cuiabana

III

No baio foi João Negrão No tordio Severino. Zé Garcia no alazão No pampa foi Catarino A madrinha e o cargueiro Quem puxava era um menino

IV Eu saí de Lambari Na minha besta ruana. Só depois de trinta dias Que cheguei em Aquidauana. Lá fiquei enamorado

De uma malvada baiana. V

Ao chegar em Campo Grande Num cassino eu fui chegando. Uma linda paraguaia

Na mesa estava jogando. Botei a mão na algibeira Dinheiro estava sobrando.

VI

Ela mandou me dizer Pra que eu fosse chegando Eu mandei dizer pra ela Vá bebendo, eu vou pagando Eu joguei nove partidas Meu dinheiro foi andando Declamado:

A lua foi se escondendo, vinha rompendo a manhã. Aquela morena faceira, trigueira cor de romã.

Soluçando, me dizia: − Muchacho leva-me contigo que te darei toda minh’alma, todo o mi amor, todo mi carinho, toda mi vida.

Os boiadeiros, no rancho, estavam prontos pra partida. Numa roseira cheirosa os passarinhos cantavam.

Minha besta ruana parece que adivinhava, que eu sozinho não partia, meu amor me acompanhava.

VI

Eu parti de Campo Grande Com a boiada cuiabana Meu amor veio na anca Da minha besta ruana. Hoje tenho quem me alegra Na minha velha choupana.

Conforme conta Paulo Freie287, para compor “Boiada Cuiabana” Raul Torres viajou junto com uma comitiva no Mato Grosso. Durante a viagem ele fez uma série de anotações que resultou nesta moda de viola. Já Ribeiro288 conta que esta música (assim como outras compostas por Torres) serviu de referência para vários compositores. Existem divergências sobre a data de composição desta música, Tonico289 afirmava que ele e seu irmão ouviam esta música em 1935 num gramofone existente em uma fazenda onde trabalhavam, o disco fazia parte das gravações de Cornélio Pires. Segundo Paulo Freire290, a música só foi composta após a formação da dupla Raul Torres e Serrinha, em 1937. Ele também afirma que o lançamento da música em disco se deu logo após a sua composição. Segundo os dados do dicionário Cravo Albin, a música foi gravada pela primeira vez em 1938. Para dirimir dúvidas pesquisei, no acervo do Instituto Moreira Salles, as gravações de Cornélio Pires. Descobri que em agosto de 1930 foi lançado um disco, com o número de série 200031, que em uma das faces continha uma música com o mesmo título (“Boiada Cuiabana”), mas não se trata da composição de Torres, assim, conclui que data da composição foi provavelmente em 1938.

A leitura de Antônio Cândido sobre os Nuer,291 citada neste trabalho, parece se adequar ao rural descrito nesta moda de viola. O trabalho com o boi condiciona as demais relações do protagonista, a viagem para buscar a boiada é sobreposta à busca por uma companheira. As histórias não ocorrem em paralelo, são coincidentes. O narrador só encontra sua companhia quando chega ao ponto onde encontra a boiada. Na viagem de volta ele traz a boiada e sua companheira, como indicado na sexta estrofe “Eu parti de Campo Grande com a boiada cuiabana, meu amor veio na anca da minha besta ruana”.

Como indicado anteriormente, a presença de referências espaciais ou geográficas é muito comum em modas de viola, o que confere uma impressão de realidade à história narrada, de experiência. No caso de “Boiada Cuiabana”, existem várias referências, que torna possível identificar o trajeto de ida dos boiadeiros até Campo Grande. A menção aos locais faz com que a moda se assemelhe a um relato de viagem, que no caso consiste na ida a Campo Grande. Os pontos marcados na letra da música são o sertão do Mato Grosso (no quarto verso da primeira estrofe), que é um referencial geral ao destino da viagem; Lambari (primeiro verso da quarta estrofe), o ponto de origem; Aquidauana (quarto verso da quarta estrofe), um ponto intermediário e onde o narrador encontra uma mulher, mas que não se torna a companheira procurada como indicado ao final da estrofe, “Lá fiquei enamorado de uma malvada baiana”; Campo Grande, onde ele encontra a boiada e também a companheira.

287 Freire, Paulo. op. cit, p.70.

288 Ribeiro, José Hamilton. op. cit, p.45. 289 Tonico e Tinoco op. cit, p.208. 290 Freire, Paulo. op. cit. p, p. 70.

De um modo geral, pode-se dizer que a história fala pouco do trabalho de transporte de gado, que é a razão pela qual os boiadeiros estão em viagem. Os elementos apresentados se concentram, principalmente, na referência aos locais por onde passam, no encontro da companheira e na descrição da composição da comitiva (nome dado à caravana de boiadeiros). Como já mencionei os outros itens me atenho ao terceiro.

Por meio da composição da comitiva é possível ver com clareza as divisões sociais existentes no mundo dos boiadeiros. Em primeiro lugar, o narrador separa o patrão dos empregados. Como indicado nos dois primeiros versos da segunda estrofe “Meu patrão foi embarcado, na linha Sorocabana”. Percebe-se que o patrão não viaja junto com os boiadeiros contratados para trazer a boiada. Ele não participa do trabalho e cotidiano dos boiadeiros. Tendo em vista a malha ferroviária da linha Sorocabana, pode-se supor que o patrão inicia a viagem a partir de São Paulo. Deve-se destacar que a menção à linha é interessante, pois o compositor trabalhou nesta ferrovia até se aposentar. Mesmo nos períodos em que tinha muitos compromissos relacionados com a música, como apresentação de programas de rádio, apresentações em espaços públicos, gravação de discos e composições, Torres continuava a trabalhar na companhia.

Uma vez separado o patrão do restante das personagens, Torres apresenta a composição da comitiva. Em primeiro lugar, ele apresenta o capataz, no terceiro e quarto versos da segunda estrofe “Capataz da comitiva, era o Juca Flor da Fama”. Logo nos versos a seguir ele se apresenta, indicando o motivo de integrar a comitiva “Fui tratado pra trazer uma boiada cuiabana”. Na seqüência ele apresenta os boiadeiros, identificando-os a partir das montarias. Os animais, neste sentido, funcionam não só como meio de transporte, mas também como parte da identidade do boiadeiro, pelo menos no contexto da comitiva. Como indicado na terceira estrofe:

“No baio foi João Negrão No tordio Severino. Zé Garcia no alazão No pampa foi Catarino A madrinha e o cargueiro Quem puxava era um menino”

Deve-se ressaltar que no caso do “menino” o seu tipo de transporte é também um indicativo de sua função na comitiva, sendo responsável por prover a alimentação do grupo. Observando atentamente a divisão apresentada por Torres, pode-se dizer que ele representa a própria hierarquia das personagens. Em primeiro lugar ele cita o patrão, em seguida o capataz, depois os boiadeiros em geral (é difícil avaliar se a letra também indica uma hierarquia interna neste grupo) e o menino, que ocupa uma posição mais baixa. Estimo que tal posição seja proporcional a um pupilo ou aprendiz, termo similar ao observado na moda de viola “Nelore Valente”.

Pensando em representações do rural, pode-se afirmar que o espaço rural de “Boiada Cuiabana” é dominado pela atividade de gado e se estende, pelo menos, do sul de Minas Gerais (“Lambari”) até as áreas no interior do estado do Mato Grosso (que na época da música não era dividido). As áreas urbanas são inseridas neste contexto como ponto de encontro e trocas, com destaque para os negócios com o gado e afetos ou desafetos amorosos. Os locais destes

encontros e trocas podem ser espaços próprios para lazer como aparece nos dois primeiros versos da quinta estrofe, “Ao chegar em Campo Grande, num cassino eu fui entrando”. Os convívios possibilitados por estes encontros ampliam a abrangência espacial das relações dos boiadeiros do rural, como visto na letra da música são indicadas ligações com a Bahia e o Paraguai. As semelhanças com o rural dos boiadeiros de “Boi Soberano” são explicitas, no entanto não se pode afirmar que isto deriva unicamente do fato de as músicas lidarem com a mesma atividade. Há de se considerar a possibilidade de “Boiada Cuiabana” servir de referência para a abordagem desta atividade, bem como influenciado o destaque que as comitivas e a lida com o gado de forma geral têm na temática da moda de viola.

Neste mundo rural há uma clara distinção de classes e funções. A figura do patrão parece distante deste mundo rural, circulando, principalmente, pelas áreas urbanas, onde realiza seus negócios. Em relação aos boiadeiros observa-se que também existem distinções, segundo as funções que exercem. Na música eles foram divididos em três classes, o capataz e o menino que personalizam seus extremos, e os boiadeiros em geral. Com estes o boiadeiro narrador tem uma proximidade maior, tanto que seus nomes são indicados na moda, o que não ocorre com o menino, o capataz e muito menos com o patrão.

A descrição dos boiadeiros pode guardar ainda um aspecto revelador. A comitiva pode, de certa forma, ser uma representação do Brasil. Como se observou as montarias correspondem a uma expansão da identidade do cavaleiro. À exceção do cavalo pampa, cujo nome é associado à região Sul292 do país, os animais são destacados a partir de sua pelagem. O cavalo baio293 leva o boiadeiro João Negrão, a montaria é de pelagem castanha e o cavaleiro supostamente negro; o cavalo tordilho, de pelagem negra com manchas brancas, leva o cavaleiro Severino, que em função do nome, pode-se estimar de origem nos estados da região Nordeste; Zé Garcia utiliza o cavalo alazão, cuja pelagem é caracterizada por ser avermelhada. A partir destas informações pode-se especular que a pele do cavaleiro tem relação com a pelagem do animal. No caso do primeiro, pode-se supor a associação do castanho com a pele negra em relação aos cavaleiros associados a regiões do país (Severino e Catarino294), seus cavalos têm pelagem com manchas de cor diferente da cor principal indicando talvez a mestiçagem. No último conjunto, formado por Zé Garcia e o cavalo alazão, é possível supor os tons avermelhados do cavalo uma alusão à pele do europeu.

Se a comitiva carrega ares de representação racial e regional do Brasil, é possível perceber que o componente indígena (aquele do mito das três raças) e as regiões Norte e Centro- Oeste não estão representadas (como o narrador é de Minas Gerais, considera-se a região Sudeste representada). A ausência destes componentes pode ser explicada se levarmos em conta que, neste período, diversas áreas destas regiões não eram consideradas como integradas ao país, como nação. No mesmo ano em que a música foi composta o governo lançou um projeto denominado Marcha para o Oeste, que visava a promover a ocupação e o “desenvolvimento”295

292 A designação pampa para o cavalo deriva do fato de esta raça ter sido levada do Rio Grande do Sul para São

Paulo, de onde se espalhou para o resto do país, conforme indica o portal de cavalos pampa na rede mundial de computadores (http://www.cavalospampa.com.br/origem.html). No Rio Grande do Sul a raça de pelagem com manchas era chamada tobiano.

293 As descrições das pelagens foram retiradas do dicionário Aurélio (6ª edição, revista e ampliada) 294 Não seria absurdo propor que o nome “Catarino” seja uma alusão ao estado de Santa Catarina.

295 Garfield, Seth. As raízes de uma planta que hoje é o Brasil: os índios e o Estado-Nação na era Vargas. Rev. bras.

destas regiões. O índio, assim como essas áreas, era visto como habitante a ser integrado à nação. É difícil avaliar em que medida a viagem de Raul Torres foi inspirada, ou não, por esta política ou pelas discussões da época, contudo, é possível perceber que a comitiva representativa do Brasil tem um perfil integrador, tanto com as cidades por onde passa quanto pelos contatos com a baiana e, principalmente, a paraguaia que é levada para o centro de onde partiu a comitiva. Se por um lado a moda indica Campo Grande como um espaço urbano, por outro, as áreas do estado do Mato Grosso podem ser vistas como não-civilizadas, como aparece na primeira estrofe (“Pro sertão de Mato Grosso”) são definidas como “sertão”.

6. Letras Compostas por Teddy Vieira de Azevedo

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