• Nenhum resultado encontrado

O MINEIRO E O ITALIANO

No documento Download/Open (páginas 162-166)

CAPÍTULO IV – LENDO AS MODAS

O MINEIRO E O ITALIANO

Autores: Teddy Vieira de Azevedo e Nelson Gomes

I

Um mineiro e o italiano Vivia às barras dos tribunais Numa demanda de terra

Que não deixava os dois em paz Só em pensar na derrota

O pobre caboclo não dormia mais O italiano roncava

Nem que eu gaste alguns capitais Quero ver este mineiro

Voltar de a pé pra Minas Gerais

297 Segundo Amaral, “picaço” corresponde a um cavalo escuro com a frente e as patas alvas. Amaral, Amadeu op.

II

Voltar de a pé pro mineiro Seria feio pro seus parentes Apelou pro advogado fale Pro juiz pra ter dó da gente Diga que nóis semo pobre

Que meus filhinhos vivem doente Um palmo de terra a mais

Para italiano é indiferente Se o juiz me ajudar a ganhar Lhe dou uma leitoa de presente

III

Retrucou o advogado

O senhor não sabe o que está falando Não caia nessa besteira

Senão nos vamo entrar pro cano Este juiz é uma fera

Caboclo sério e de tutano Paulista da velha guarda Família de 400 anos Mandar a leitoa pra ele É dar a vitória pro italiano

IV

Porém chegou o grande dia Que o tribunal deu o veredicto Mineiro ganhou a demanda O advogado achou esquisito Mineiro disse ao doutor Eu fiz conforme lhe havia dito Respondeu o advogado que juiz Vendeu eu não acredito

Jogo meu diploma fora

V

De fato falou o mineiro

Nem mesmo eu tô acreditando Ver meus filhinhos de a pé Meu coração vivia sangrando Peguei uma leitoa gorda

Foi Deus no céu me deu esse plano De uma cidade vizinha

Para o juiz eu fui despachando Só não mandei no meu nome Mandei no nome do italiano

Deixando um pouco de lado a temática dos bois e boiadeiros, a nona moda de viola selecionada para este trabalho trata, em tom jocoso e irônico, de uma disputa de terra. Na moda, a figura do narrador é distanciada, contudo, a maior parte da letra corresponde às falas de uma das personagens em litígio e seu advogado. Apesar de apenas duas personagens terem fala na história, são envolvidas o mineiro e seus parentes, o italiano, o juiz e o advogado do mineiro. De um modo geral, pode-se afirmar que a moda conta a história do uso de um subterfúgio para ganhar uma questão judicial. Examinando bem as informações reveladas na história, pode-se observar que o mineiro e seu advogado sabiam que, do ponto de vista legal, estavam errados e perderiam a causa. Os indícios que comprovam este fato são o mineiro querer apelar para a piedade do juiz, conforme aparece no quarto verso da segunda estrofe (“Pro juiz pra ter dó da gente”), no quinto e no sexto (“Diga que nóis semo pobre, que meus filhinhos vivem doente”); ele considerar subornar o juiz (“Lhe dou uma leitoa de presente”); o advogado considerar estranho a vitória, no quarto verso da quarta estrofe (“O advogado achou esquisito”). Apesar de o ato ser ilícito, o autor coloca uma série de evidências que pode propiciar ao ouvinte uma identificação com o mineiro ou uma compreensão que leve a crer que o mais justo, sob a ordem de outros valores morais, seria o mineiro ganhar o litígio. Ainda na primeira estrofe ele opõe as duas personagens enquanto o mineiro está preocupado, “O pobre caboclo não dormia mais” (sexto verso), o italiano está tranqüilo (“O italiano roncava”). Este último não necessita da terra, seu objetivo é prejudicar o mineiro como se observa nos dois últimos versos da estrofe “Quero ver este mineiro voltar de a pé pra Minas Gerais”. Na quinta estrofe, o mineiro apresenta uma justificativa para o golpe que pode também conquistar a simpatia do ouvinte, “Ver meus filhinhos de a pé, meu coração vivia sangrando”. Além destes elementos, deve-se ressaltar que em nenhum momento há referência à família do italiano.

Outro elemento que chama a atenção nesta moda é que a principal preocupação do mineiro não é exatamente a perda da terra, mas a humilhação de ter que voltar sem nada para sua terra de origem, o pior desta humilhação é impô-la a sua família, como indicado nos primeiro e no segundo versos da segunda estrofe, “Voltar de a pé pro mineiro seria feio por seus parentes”. Por outro lado, o desejo do italiano não é ganhar mais ou menos com este pedaço de terra, mas impor a humilhação ao mineiro. Assim, nenhum dos dois personagens é guiado por princípios associados à sociedade moderna e capitalista como vantagem econômica ou como defesa dos direitos (relativos à propriedade). Eles são motivados por questões como honra e prestígio, que não atingem somente os indivíduos, mas também suas famílias (apesar de a

família do italiano não ser citada), por isso tais personagens se assemelham ao que Mauss chamaria de “pessoas morais”.298

Analisando as proposições de Mauss, pode-se condiderar a leitoa como contraprestação do favor que o juiz prestaria, e que o mineiro quer é transferir a relação da esfera jurídica para a pessoal entre ele e o juiz, não como indivíduos, mas como “pessoas morais” envolvidas em uma relação de reciprocidade. Observando com mais detalhe as propostas da personagem (apelar para piedade do juiz e dar a leitoa) ainda sob esta ótica, percebe-se que elas fazem parte de um mesmo conjunto de trocas. Se na letra da música a personagem tivesse apenas tentado apelar para a compaixão do juiz, sem a sugestão da doação da leitoa, o Mineiro poderia ter ficado em uma situação moralmente inferior299, indigna. Ao apresentar a contraprestação, mesmo que o juiz fosse motivado por “pena” sua ação seria retribuída, deixando mineiro em uma situação mais próxima da posição do juiz. O advogado de mineiro, como alguém familiarizado com a percepção moderna, indica a diferença das percepções. Aquilo que mineiro considera como uma retribuição o juiz consideraria como ofensa, que acabaria por indispor o magistrado com o querelante. A escolha deste tipo de animal reforça a comicidade da obra, sendo considerado como valor por mineiro mas dificilmente pelo juiz. Aliás, o aspecto cômico da obra está baseado na diferença de perspectiva entre o juiz e o protagonista com ênfase para o desconhecimento (ingenuidade) que este último tem da perspectiva do magistrado, mas, como na tradição da representação do caipira personagem, o seu distanciamento permite que ele identifique formas de lidar com este sistema diferente das utilizadas por aqueles que estão envolvidos como seu advogado.

Cabe destacar que a modernidade ou os padrões modernos nesta letra são associados a uma elite, como aponta o advogado “paulista da velha guarda, família de quatrocentos anos”. A referência ao tempo de existência da família parece se relacionar com o termo “quatrocentão”. Como visto no terceiro capítulo, a cidade de São Paulo recebia nas primeiras décadas do século XX um grande contingente de imigrantes. Nesta época, conforme observado em uma reportagem da Folha de S. Paulo,300 foi criado o termo “quatrocentão” como forma de diferenciar a elite local dos imigrantes ou seus descendentes em ascensão social que ocupavam posições de poder. Assim, o termo passou a designar a elite urbana supostamente formada por descendentes dos primeiros colonizadores a ocupar o local que deu origem à cidade. Voltando à moda, o juiz não só é colocado como parte da elite urbana da capital, mas serve como justificativa para que este siga com rigor os preceitos da lei e da justiça formal e moderna. Contudo, deve-se salientar que a moda não trata o juiz como um tipo ideal de burocrata moderno301, uma vez que ao receber a doação do animal supostamente enviada por italiano o juiz reverte a decisão em favor de mineiro. Em outras palavras, ele utiliza seu poder legal para responder a uma ofensa, a tentativa de suborno com uma leitoa.

Assim, entende-se que as representações do rural desta moda apresentam um espaço em que estas relações entre “pessoas morais” são comuns e importantes ou mais importantes que as relações consideradas modernas. Observa-se que os apreciadores esta moda devem em alguma medida partilhar estes princípios no sentido de considerar justo o resultado da história, que

298 Mauss, Marcel. op. cit, p. 190.

299 Obviamente na percepção do ouvinte da moda.

300 Toledo, José Roberto de. Os primeiros colonizadores têm milhares de descendentes espalhados pelo país. F. de

São Paulo. 28 de novembro de 2003.

termina com a vitória (moral) de mineiro. Vê-se por oposição que o espaço urbano e moderno é representado na moda pela figura do juiz, que segue os princípios modernos e detém o poder sobre o espaço rural. Neste caso, a cidade não é fonte de corrupção, apenas opera com princípios diferentes.

Nesta moda ainda se percebe o resgate parcial do caipira personagem, já examinado anteriormente. O primeiro elemento comum entre mineiro e este caipira é a conjugação de ingenuidade e astúcia, onde esta última permite que ele manipule os princípios modernos a seu favor. Um segundo elemento é a oposição entre o migrante estrangeiro e o caipira. Como nos textos do passado (muitos de Cornélio Pires) que queriam contestar a visão de que o imigrante era superior ao caipira nativo, mineiro é o herói e vence a disputa.

No documento Download/Open (páginas 162-166)