• Nenhum resultado encontrado

Letras Compostas por Francisco Gottard

No documento Download/Open (páginas 143-147)

CAPÍTULO IV – LENDO AS MODAS

3. Letras Compostas por Francisco Gottard

Herói Sem Medalha

Autor: Francisco Gottardi

I

Sou filho do Interior Do grande Estado mineiro Fui um herói sem medalha Na profissão de carreiro. II

Puxando tora do mato Com doze boi pantaneiro Eu ajudei desbravar Nosso Sertão brasileiro III

Sem vaidade eu confesso Do nosso imenso progresso Eu fui um dos pioneiros.

IV

Vejam como o destino Muda a vida de um homem Uma doença malvada Minha boiada consome V

Só ficou um boi mestiço Que chamava Lobisome Por ser preto igual carvão Foi que eu pus esse nome VI

E pouco tempo depois Eu vendi aquele boi

Pros filhos não passar fome. VII

Aborrecido com a sorte Dali resolvi mudar E numa cidade grande Com a família fui morar.

VIII Por eu ser analfabeto Tive que me sujeitar Trabalhar no matadouro Para o pão poder ganhar IX

Como eu era um homem forte Nuqueava o gado de corte Pros companheiros sangrar.

X

Vejam bem a nossa vida Como muda de repente Eu que às vezes chorava Quando um boi ficava doente

XII Ali eu era obrigado Matar a rês inocente. Mas certo dia o destino Me transformou novamente

XIII

O boi de cor de carvão Pra morrer nas minhas mãos Estava na minha frente XIV

Quando eu vi meu boi carreiro Não contive a emoção

Meus olhos encheram d’água O pranto caiu no chão. XV

O boi meu reconheceu E lambeu a minha mão. Sem poder salvar a vida Do boi de estimação

XVI

Pedi a conta e fui embora Desisti na mesma hora Dessa ingrata profissão.

Coerente com o princípio de propiciar uma leitura clara da moda e ao mesmo tempo seguir o padrão rítmico apresentado, optei por dividir as estrofes em quadras, como já venho fazendo, e em tercetos.

De uma forma geral pode-se dizer que a moda de viola “Herói Sem Medalha” aborda a dificuldade de adaptação do migrante rural à realidade da cidade grande. Neste sentido, o primeiro ponto a ser destacado é a diferença entre o papel do narrador na cidade e no campo. Na primeira estrofe o papel do carreiro no campo é indicado já no terceiro verso, “Fui um herói sem medalha”. Apesar de seu heroísmo não contar com o reconhecimento oficial representado pela medalha, o narrador tem consciência de sua posição, como afirma nos dois últimos versos da segunda estrofe “Eu ajudei desbravar nosso sertão brasileiro”. Neste trecho também chama a atenção a existência de um espaço que se difere do rural e do urbano, o “sertão”. Na letra da música o termo parece se referir aos espaços não atingidos pela civilização ocidental, na sua vertente urbana ou rural, também parece equivalente ao termo “deserto” encontrado na moda de viola “Ferreirinha”. O “sertão” é uma área para se “desbravar”, ou seja, tornar possível a sua

ocupação e apropriação pela civilização, a este processo o narrador chama de “progresso” e é justamente a sua participação neste processo que lhe confere o título de herói, como indicado nos dois últimos versos da terceira estrofe, “Do nosso imenso progresso eu fui um dos pioneiros”. A falta de reconhecimento do heroísmo do carreiro é passível de ser interpretada uma representação do papel exercido por ocupações rurais de expandir a área dominada pela civilização. Se no espaço rural o carreiro tinha pleno domínio de sua função, na cidade seus conhecimentos e habilidades não têm serventia e ele não é dotado das capacidades de ler e escrever, fundamentais para a vida na cidade, como indicado nos dois primeiros versos da oitava estrofe, “Por eu ser analfabeto tive que me sujeitar”. Neste local a única habilidade proveitosa é a sua força física, como aparece no primeiro verso da nona estrofe, “Como eu era um homem forte”. Neste sentido, o seu trabalho pode ser comparado ao trabalho dos bois de seu carro, que, incapazes de conduzir o carro, dispõem somente da força física para puxá-lo. Se Soberano humanizou-se, neste caso o carreiro perde sua humanidade assemelhando-se aos bois. No momento em que encontra o seu boi, ele reconquista sua humanidade, como indicado na décima quarta estrofe, “Quando vi meu boi carreiro não contive a emoção, meus olhos encheram d’água, o pranto caiu no chão”. Na estrofe seguinte fica claro que ele precisava ser reconhecido como carreiro e herói, os dois primeiros versos indicam este reconhecimento “O boi me reconheceu e lambeu a minha mão”. Como se o boi, elemento de sua vida anterior, fizesse o carreiro lembrar quem era. Contudo, seu heroísmo não tem valor ou espaço na cidade grande onde ele é controlado, mas não tem poder de controlar, assim “Sem poder salvar a vida do boi de estimação”, a única saída foi “Pedi a conta e fui embora”.

O segundo ponto que merece destaque é relativo à transformação de animais e homens, dependendo do espaço. Na área rural, o carreiro ver os seus bois humanizados, conforme citado nos dois últimos versos da décima estrofe “Eu que às vezes chorava quando um boi ficava doente”. No entanto, na passagem para a cidade o seu sustento não depende mais da vida dos bois, mas de sua morte. Apesar disso, ele ainda guarda elementos de sua perspectiva anterior, mas é incapaz de controlar sua condição, como indicado nos dois primeiros versos da décima segunda estrofe “Ali eu era obrigado matar a rês inocente”. Deve-se salientar que mesmo no espaço rural ele chega a uma situação em que é incapaz de controlar seu destino como indicado nos dois primeiros versos da quarta estrofe, “Vejam como o destino muda a vida de um homem”.

Nesta moda de viola o foco está muito mais sobre o migrante rural do que o rural propriamente dito, mas mesmo assim é possível perceber alguns indicativos de como o rural é representado. Em primeiro lugar, é um espaço que contribui com o “progresso”, responsável pela expansão da civilização, mas não reconhecido, o mesmo ocorre com os migrantes cujos conhecimentos ou habilidades não são valorizados na cidade. Eles, neste caso, servem apenas como força bruta, análogos aos animais de tração que costumam controlar em seus locais de origem. Estimo que esta percepção deveria ter ressonância, especialmente, em meio aos migrantes que se sentiam desvalorizados nas áreas urbanas. No entanto, como já referido em relação a outras modas de viola, o mais importante não é que o público tenha passado por uma experiência similar, até porque a situação da moda de viola é extrema (tal como as histórias das modas anteriores), mas a partir de sua experiência possa compreender e ter empatia com a história da moda que torna sua a experiência narrada.

Por outro lado, tem-se novamente um rural onde a proximidade dos animais faz com que estes tenham uma feição humana. Apesar disso, o valor principal e a prioridade para o homem

do campo é o sustento da família. Embora o carreiro tivesse um vínculo com os seus bois, principalmente com o único sobrevivente, e dada a importância que seu trabalho tinha para ele, com as dificuldades incidindo sobre a família não lhe resta opção, como indicado na sexta estrofe “E pouco tempo depois, eu vendi aquele boi, pros filhos não passar fome”.

Uma última representação do rural é a idéia de que esta área seja um espaço intermediário entre a civilização e o sertão. Neste sentido, o rural é, a partir do sertão, a fronteira e o ponto de expansão da civilização. Considero esta perspectiva comum na época e continua a existir nos dias de hoje. Já a partir das áreas urbanas, o rural pode ser o ponto mais aproximado do sertão. Esta perspectiva encerra duas feições, por um lado, o rural é mais próximo à natureza e à autenticidade. Em relação a esta última pode-se dizer que ela parte da premissa que a sociedade moderna e capitalista tem uma tendência a eliminar o autêntico. Assim, o rural que guarda uma certa distância desta sociedade mantém autenticidade. Por outro lado, o rural pode ser visto como espaço semicivilizado ou rústico, como aponta Antônio Cândido.

No documento Download/Open (páginas 143-147)