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TRAVESSIA DO ARAGUAIA

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CAPÍTULO IV – LENDO AS MODAS

TRAVESSIA DO ARAGUAIA

Autores: Osvaldo Franco e Décio dos Santos. I

Naquele estradão deserto Uma boiada descia Pras bandas do Araguaia Pra fazer a travessia II

O capataz era um velho De muita sabedoria As ordens eram severas E a peonada obedecia III

O ponteiro moço novo Muito desembaraçado Mas era a primeira viagem Que fazia nesses lados IV

Não conhecia os tormentos Do Araguaia afamado Não sabia que as piranhas Era um perigo danado

V

Ao chegarem na barranca Disse o velho boiadeiro − Derrubamos um boi n’água Deu a ordem ao ponteiro VI

Enquanto as piranhas comem Temos que passar ligeiro Toque logo esse boi velho Que vale pouco dinheiro VII

Era um boi de aspa grande Já ruído pelos anos

O coitado não sabia Do seu destino tirano VIII

Sangrando por ferroadas No Araguaia foi entrando As piranhas vieram loucas E o boi foram devorando IX

Enquanto o pobre boi velho Ia sendo devorado

A boiada foi nadando E saiu do outro lado

X

Naquelas verdes pastagens Tudo estava sossegado Disse o velho ao ponteiro Pode ficar descansado XI

O ponteiro revoltado Disse: − Que barbaridade Sacrificar um boi velho Pra que esta crueldade

XII

Respondeu o boiadeiro Aprenda essa verdade Que Jesus também morreu Pra salvar a humanidade

Nesta moda de viola o narrador volta a se distanciar da história, ele se coloca como testemunha e não como personagem, mas como ainda é fruto de sua experiência, o distanciamento é consideravelmente inferior àquele observado na moda “Catimbau”. Apesar de mais próximo que o narrador de “Catimbau”, está mais distante que os narradores das demais modas observadas. O narrador é uma testemunha da história, como se percebe no início do relato “Naquele estradão deserto, uma boiada descia” (primeiro verso da primeira estrofe).

O primeiro ponto que se destaca na moda de viola de Osvaldo Franco é a rígida hierarquia entre os boiadeiros (também referidos como peões). Como apresentado na segunda estrofe, “As ordens eram severas e a peonada obedecia”. Nos dois versos anteriores ele indica que liderança se legitima com base na experiência do líder (“O capataz era um velho de muita sabedoria”). Em contraponto ao velho capataz e sua sabedoria há outro personagem, o ponteiro “moço novo” (primeiro verso da terceira estrofe) que está em sua “primeira viagem” na região (terceiro verso, da terceira estrofe). Tem-se a impressão que justamente pelo seu desconhecimento, sua inexperiência, o ponteiro possui condições de questionar as ações do capataz. Deve-se salientar que embora não concorde com o capataz, o ponteiro cumpre a ordem e lança o boi à morte, o que reforça o aspecto rígido da hierarquia.

Apesar de ter cumprido a ordem o ponteiro discorda e sente necessidade de questionar o capataz. O que ele faz após a boiada cruzar o rio e o capataz afirmar que agora ele poderia ficar “descansado”, o que dá a impressão de um tipo de autorização para o questionamento (uma pausa nas “ordens severas”) que ocorre a seguir, como indicado na décima primeira estrofe “Sacrificar um boi velho, pra essa crueldade?”. O capataz busca na moral religiosa o princípio que justifica o sacrifício de um para salvar uma coletividade e passa a mensagem ao ponteiro, de modo análogo a uma relação entre mestre e pupilo, “Aprenda essa verdade, que Jesus também morreu pra salvar a humanidade”, na décima segunda e última estrofe. O capataz equipara o boi à divindade.

No entanto, é possível perceber que outras ordens de pensamento também estão em jogo ao se escolher o boi para a imolação, como fala o capataz ao ponteiro antes da travessia do rio, mais especificamente nos dois últimos versos da sexta estrofe, “Toque logo esse boi velho, que vale pouco dinheiro”. Tendo em vista a discussão presente na moda anterior, na qual se valoriza a conduta moral e a proximidade dos animais em prejuízo da visão dos animais como valor monetário, percebe-se que, além de poder representar a existência de dois conjuntos de valores, a colocação desta fala pode ter como objetivo causar no ouvinte um efeito similar ao experimentado pelo ponteiro, fazendo com que o público se identifique, pelo menos temporariamente, com esta personagem. A identificação com o ponteiro pode fazer com que o público sinta, de modo mais evidente, o impacto da lição ensinada pelo capataz na última estrofe.

Percebe-se que quanto maior o choque causado pela morte do boi, maior o efeito desejado. Assim, pode-se observar uma série de descrições que aumentam a empatia do ouvinte com o boi e com seu sofrimento, por exemplo, “Já ruído pelos anos o coitado não sabia do seu

destino tirano” (sétima estrofe), “Sangrando por ferroadas” (oitava estrofe), “As piranhas vieram loucas” e “Ia sendo devorado” (nona estrofe).

A presença de um elemento narrativo que cause um impacto maior no ouvinte tem sido observada em outras composições já apresentadas neste capítulo. Se nesta moda é a comparação do boi com Cristo, em “Ferreirinha” é a menção à “friagem nas costas”, em “Catimbau” é o beijo na cabeça decepada e em “Nelore Valente” é a revelação que o boi é o bezerro doente.

O rural desta moda de viola também sugere um espaço de regras sociais rígidas. Neste local, em meio a um grupo de trabalho como é o caso dos boiadeiros da moda, há uma hierarquia também rígida, onde a posição superior é ocupada pelo mais velho, na medida em que ele tenha experiência e conhecimento para exercer a função de liderança. Tal hierarquia se relaciona com o próprio processo de aprendizado da profissão. Ao compartilhar o mesmo espaço de trabalho, os mais jovens têm sua formação a partir da realização prática das tarefas, da observação dos mais velhos realizando as tarefas e de informações ou lições que os mais velhos prestam aos mais novos.

Neste sentido, volto a repetir que entre o capataz e o ponteiro há uma relação de mestre e pupilo, que se torna evidente na moda, pois durante todo o tempo há um diálogo entre estes dois, desde a ordem para enviar o boi para a morte, na quinta estrofe (“Derrubamos um boi n’água”), até a lição final do capataz, na décima segunda estrofe.

5. Letra Composta por Raul Montes Torres

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