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NELORE VALENTE

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CAPÍTULO IV – LENDO AS MODAS

NELORE VALENTE

Autores: Francisco Gottardi e Antônio Carlos da Silva

I

Na fazenda que eu nasci Vovô era retireiro Bem criança eu ajudava A prender o gado leiteiro II

Um dia de manhã cedo Vejam só que desespero. Tinha um bezerro doente E a ordem do fazendeiro III

− Mate já esse animal E desinfete o mangueiro Se essa doença espalhar Poderá contaminar O meu rebanho inteiro IV

Eu notei que o meu avô Ficou bastante abatido Por ter que sacrificar O animal recém-nascido.

V

Nas lágrimas dos seus olhos Eu entendi seu pedido Pus o bichinho nos braços Levei pra casa escondido VI

Com ervas e benzimentos Seu caso foi resolvido Com carinho eu lhe tratava E o leite que o patrão dava Com ele era dividido VII

Quando fazendeiro soube Chamou o meu avozinho. Disse: − Você foi teimoso Não matando o bezerrinho. VIII

Vai deixar minha fazenda Amanhã logo cedinho. Aquilo feriu vovô

Como uma chaga de espinhos. IX

Mais há sempre alguém no mundo Que nos dá algum carinho.

E sem grande sacrifício Vovô arrumou serviço. Ali no sítio vizinho X

Em pouco tempo o bezerro Já era um boi herado Bonito forte e troncudo Mansinho e muito ensinado. XI

Automóvel do atoleiro ele tirava aos punhados. Por isso na redondeza ficou bastante afamado.

XII

Até que um dia, à noitinha Um homem desesperado Gritou pedindo socorro Seu carro caiu no morro. Seu filho estava prensado XIII

O carro da ribanceira O boi conseguiu tirar O menino estava vivo Seu pai disse a soluçar XIV

− Qualquer que seja a quantia Esse boi eu vou comprar Eu disse: − Ele não tem preço A razão vou explicar

XV A bondade do vovô Veio seu filho salvar Esse nelore valente É o bezerrinho doente. Que o senhor mandou matar.

Logo de início é possível perceber que esta moda de viola traz uma atividade nova, o retireiro. Nas modas anteriores já se observou as atividades de boiadeiro (vaqueiro é tratado como similar na moda “Catimbau”) e carreiro. O retireiro, conforme aponta a letra da música, trabalha com gado leiteiro, atuando como empregado do fazendeiro que é proprietário do rebanho e do estabelecimento rural, onde a atividade ocorre. No decorrer da letra são apresentados alguns aspectos desta atividade.

Na primeira estrofe o autor indica que ainda criança começa a trabalhar com o gado leiteiro, como aparece nos dois últimos versos, “Bem criança eu ajudava a prender o gado leiteiro”. Este serviço, classificado como “ajuda”, permite a criança o aprendizado da atividade que no futuro poderá desempenhar esta função para sustentar sua família, podendo contar inclusive com a “ajuda” de seus filhos nos mesmos termos.

No segundo verso da terceira estrofe aparece um local de trabalho importante para o retireiro, “E desinfete o mangueiro”. No livro Dialeto caipira284, Amadeu Amaral define como mangueiro o local onde se recolhe o gado. Tendo em vista que todo o gado permanece neste local, o fazendeiro teme que a doença do bezerro contamine o restante do rebanho, como informado nos três últimos versos, ainda da terceira estrofe, “Se a doença espalhar poderá contaminar o meu rebanho inteiro”.

284 Amaral, Amadeu. Dialeto caipira. P. 108

Já na sexta estrofe há um indicativo que o proprietário do rebanho permite que o retireiro se aproprie de uma parte do leite retirado. Como mostrado no quarto verso “E o leite que o patrão dava”. Além disso, o retireiro reside na fazenda onde trabalha, tanto que ao perder o emprego o avô do narrador perde também a moradia, como aparece no primeiro verso da oitava estrofe “Vai deixar minha fazenda”.

O poder de decisão está nas mãos do fazendeiro. Quando o avô do narrador é mandado embora justamente por desobedecer às determinações do fazendeiro, como indicado nos versos finais da sétima estrofe “Disse: − Você foi teimoso, não matando o bezerrinho”. Contudo credito a razão a um conflito de perspectivas. Enquanto o fazendeiro percebe o gado como fonte de renda, produto ou mercadoria, o narrador e o avô, até pela proximidade e convívio cotidiano com os animais, percebem como criaturas vivas, de forma que desenvolvem empatia com estes animais. Estas diferenças se tornam aparentes a partir do nascimento do bezerro doente. Na terceira estrofe o fazendeiro dá a ordem: “Mate já este animal e desinfete o mangueiro”. Na quarta estrofe tem-se a reação do avô do narrador “Ficou bastante abatido”. E na estrofe seguinte fica evidente a consternação “Nas lágrimas dos seus olhos, eu entendi o seu pedido”. Na sexta estrofe o autor dá destaque para a forma como o bezerro é tratado, que é com “carinho” e ainda recebe parte do leite dispensado para a família (que aparentemente são apenas o avô e o neto). Nas estrofes finais, após o boi salvar o filho do fazendeiro, este ainda lida com o animal como produto ou investimento, como apontado nos dois primeiros versos da décima quinta estrofe “– Qualquer que seja a quantia esse boi eu vou comprar”. A fala do narrador mostra mais uma vez a diferença das perspectivas “Eu disse: − Ele não tem preço”. Na estrofe final o narrador declara a “razão” do boi não ter preço, “A bondade do vovô veio seu filho salvar”. Inicialmente interpreta-se que o que de fato salvou o filho do fazendeiro foi o sentimento de compaixão do avô do narrador que o levou a salvar o bezerro. Se o boi Soberano foi um instrumento da misericórdia divina, o Nelore Valente foi instrumento da misericórdia do avô.

No entanto, para uma compreensão mais precisa utilizo como referência o “Ensaio sobre a dádiva” de Marcel Mauss.285 Partindo desta perspectiva, o salvamento da vida do filho do fazendeiro é um presente do retireiro, este presente guarda algo do doador, no caso a “bondade”. Neste sentido, o fazendeiro deve retribuir com “bondade”, e não com dinheiro, que conforme se viu ao longo da história é colocado em oposição à “bondade”, não podendo ser seu equivalente e por isso não há forma de câmbio. O boi pode ser observado como o bezerro acrescido da compaixão inicial que levou o retireiro a salvar sua vida e todo o “carinho” com que ele foi criado, este carinho do retireiro e do neto se expressam na “mansidão”, na força e na valentia do boi. Se por um lado o fazendeiro não pode, pelos menos com dinheiro, comprar o boi, por outro lado, o fato dele te punido o retireiro pela atitude que acabou retornando como salvamento de seu filho o coloca numa situação ainda mais inferior do ponto de vista moral, de modo que não há contraprestação possível. No caso da moda “Boi Soberano”, não é o dinheiro do pai do menino que retribui a vida salva, mas o fato dele salvar a vida do boi do matadouro a partir da compra do animal.

Cabe ainda a identificação de outras perspectivas contraditórias. Ao mandar que o reitireiro sacrifique o bezerro e “desinfete o mangueiro”, o fazendeiro pode basear sua decisão

285 Mauss, Marcel. Ensaio sobre a dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas in Sociologia e

em conhecimentos da medicina moderna, para qual a doença do bezerro pode ser incurável (ou o custo da cura supera os ganhos financeiros em potencial do bezerro) e contagiosa. Já o retireiro pode conhecer métodos de cura baseados em saberes “populares” ou “tradicionais”286 que podem salvar a vida do bezerro, mas não aceitos ou compreendidos pelo fazendeiro. Como se observa nos primeiros versos da sexta estrofe “Com ervas e benzimentos seu caso foi resolvido”, o retireiro utilizou-se de tais práticas para curar o bezerro doente.

Voltando o foco das atenções para as representações do rural mais especificamente, pode-se afirmar que o rural na letra desta música pode ser observado como um espaço onde operam tanto relações econômicas modernas, personificadas pela figura do fazendeiro, como relações de troca e reciprocidade reguladas por princípios morais, personificadas pelo retireiro. Enquanto o primeiro detém poder e dinheiro, o segundo é detentor dos valores morais. Desta forma, tem-se a idéia de que em meio aos trabalhadores “honrados” (como o termo é usado em “Catimbau”) do campo há uma predominância dos valores morais em detrimento dos valores de outra ordem.

4. Letra Composta por Osvaldo Franco

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