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Desde a invasão do território brasileiro pelos portugueses, a nova colônia já estava sendo inserida na primeira fase do processo de acumulação, o mercantilismo, que se caracteriza como o pré-capitalismo. Esse processo se desenvolveu de acordo com os interesses das grandes potências internacionais. Na década de 1950, Juscelino Kubitschek implementou uma política desenvolvimentista com apoio de capital estrangeiro, levando o país a contrair dívidas e facilitar a entrada de empresas estrangeira no país. Com o Golpe Militar de 1964, foi matido essa política e criado a lei de Segurança Nacional, que legitimava os atos de

perseguição e tortura com o intuito de garantir a soberania nacional, isso justificou as diversas ações dos governos militares que atingiram os povos indígenas. Nessa linha, o presidente militar Castelo Branco, em 1966, defendia que era preciso “Integrar, para não entregar”. Esse foi o eixo condutor dos projetos de infraestrutura implementados na Amazônia.

Outro argumento no discurso governamental era de caracterizar a Amazônia como um “vazio populacional”, desconsiderando a população local e a população indígena que habitava toda a região. O governo difundia a ideia que somente grandes investimentos poderiam tirar essa região do atraso econômico e social em que se encontrava. Isso demonstra com o Estado brasileiro estava em consonância com as ideias Keynesianas voltadas para o crescimento econômico sem levar em consideração a realidade de cada região. Assim,

Ao longo dos anos 70, da ditadura militar implantou o Projeto Radam (Radares para a Amazônia) e construiu a infraestrutura viária (Transamazônica, Cuiabá-Santarém, Cuiabá-Porto Velho-Manaus-Rio Branco, Perimetral Norte), ferroviária (Carajás-Itaqui) e energética (Usinas hidrelétricas de Tucuruí, Balbina e Samuel). Além disso, o governo criou empresas estatais que se associaram ao capital privado nacional e internacional, como Projeto Grande Carajás (ARBEX JÚNIOR, 2005, p.36).

Neste contexto, foi criado o I Plano Nacional de Desenvolvimento (I PND), programa do governo de Médici (1969-1974) que consistia em gerar investimentos no setor siderúrgico, petroquímico, transporte e energia elétrica. Especificamente para a Amazônia e para o Nordeste, o governo estabeleceu a construção da BR- 230, Transamazônica, que ligaria a cidade de Cabedelo, na Paraíba, à cidade de Benjamim Constant, no Amazonas. No entanto, ela nunca foi concluída, chegando até ao município de Lábrea, no Amazonas, conforme mostra o mapa a seguir:

Mapa 3 – Rodovia BR-230 – Transamazônica

Fonte: Wikipédia, 2014.

Podemos identificar que essa rodovia corta diferentes biomas naturais, além de interferir na organização sociocultural de diversas culturas. Esse projeto visava interligar o Nordeste brasileiro à Amazônia como forma de ocupar o espaço e melhorar a vida do nordestino assolada pela seca. No entanto, o projeto não previu os grandes impactos que causou, tanto, para o meio ambiente como para as populações tradicionais da região.

Foi dentro deste contexto que a frente de trabalho chega na região do sul do Amazonas, na área onde o povo Tenharin e Jiahui encontravam-se localizados. Como já foi dito anteriormente, esse trecho da estrada ficou a cargo da Construtora Paranapanema, com apoio do Exército Brasileiro. Muitos indígenas morreram durante essa construção por terem contraído doenças como sarampo, malária, gripe etc.

Os Tenharin relatam que vários morreram sem terem qualquer tipo de ajuda, como a esposa do vice-cacique (L1) comenta comigo em conversa informal: “professora, muitos dos meus parentes morreram com a doença da malária quando começaram com as máquinas aqui na nossa terra, não tinha o que fazer, não tinha remédios e eles sofreram até morrer, foi muito triste”.

Outro relato de uma professora (P21), em conversa informal, diz: “aqui nesse rio (Marmelos) - apontando para rio - tem os corpos de muitos dos nossos parentes, tão no fundo desse rio, pois eles trouxeram as máquinas e não respeitaram nossos mortos, passaram em cima de tudo, muito triste...”. Nesse instante, nota-se muita emoção e ela continua, “essa estrada nos esquartejou, antes era todo mundo junto, não tinha tanta divisão, acho que era melhor. Continuando a conversa informal, sua

mãe fala: “é, professora, antes a gente era um povo que andava muito, a gente podia viver um tempo aqui outro ali, podia andar pra onde quisesse, mas... agora não, não, é perigoso... é melhor ficar junto”.

Segundo Menéndez (1989) existem relatos de quatro momentos diferentes de grandes movimentos migratórios dos Tenharin, mas o primeiro e último aparecem extremos opostos.

A primeira movimentação ocorreu em um tempo muito antigo, Nharemboi-py (nosso tempo antigo), quando o branco não existia ainda. O outro, embora também seja narrado dentro desta categoria de tempo, é mais recente e, de acordo com as genealogias levantadas, deve ter ocorrido há quatro gerações passadas, quando os Kawahiwa já ocupavam o território entre o rio Madeira e o rio dos Marmelos. Este relato, além de uma correspondência completa com os fatos vividos pelos Kawahiwa no último século e meio, tem importância crucial de introduzir esta sociedade no tempo histórico e no relacionamento definitivo com o branco (MENÉNDEZ, 1989, p.65).

Com a estrada os Tenharin passaram a manter contato intenso com a sociedade não-indígena. Era quase impossível evitar o movimento em direção à cidade. Além disso, existem constantes incidentes com madeireiros que invadem suas terras e fazem retiradas ilegais de madeiras.

No entanto, a convivência com a comunidade do Santo Antônio do Matupi12

era cordial, os indígenas realizam compras de mantimentos e combustível, alguns alunos estudavam nas escolas desta comunidade e algumas vezes participavam de festejos. Contudo, existiu um ponto de fricção, o pedágio que era cobrado pelos Tenharin e Jiahui para a passagem de veículos dentro de suas terras e as constantes retiradas de produtos extrativista das terras indígenas. Para os indígenas essa prática se configura como uma compensação pelos danos que a construção dessa estrada causou ao povo indígena.

Ao se referirem à cancela de madeira que impede a passagem de veículos

na Transamazônica, os Tenharin aplicam o termo técnico “compensação” e

explicam que a estrada cortou seus territórios na década de 1970 sem consultá-los ou indenizá-los enquanto ocupantes tradicionais daquelas terras (PEGGION; BOCCHINI, 2011, p.421).

Além disso, a estrada causa também o agravamento de doenças, principalmente, respiratórias. Como esse trecho da rodovia não é asfaltado, quando os veículos passam sobe muita poeira, fica insuportável respirar o ar. Durante o período do verão amazônico podemos verificar in loco a situação em que essas

12 Assentamento do INCRA, localizado no município de Manicoré às margens da Transamazônica,

aldeias estão expostas. Sem contar que, sem fiscalização, os veículos pesados passam em alta velocidade, nos trechos que estão localizadas as aldeias colocando em risco a vida, principalmente, das crianças que passam de um lado para o outro da aldeia.

No final de 2013 teve início um grave conflito entre os Tenahrin e a população não-indígena de Humaitá, Manicoré e Apuí no estado do Amazonas, quando três homens desapareceram e foram encontrados mortos na terra indígena Tenharin, tal fato gerou uma série de ataques ao povo Tenharin, visto que a população não- indígena atribuiu a culpa por essas mortes aos Tenharin. Uma série de ataques foram realizados pela população não-indígenas no município de Humaitá, onde as algumas casas da aldeia foram atacadas e o posto da cobrança destruído pela população, posto da FUNAI, da SESAI, barcos e automóveis foram incendiados na cidade de Humaitá, conforme imagem a seguir. Assim, podemos constatar que a

Intolerância, ganância e preconceito continuam motivando as agressões aso direitos indígenas. A omissão ou negligência do governo acentua a gravidade das ocorr6encias. Apesar de parâmetros constitucionais favoráveis aos povos originários, os indígenas são condenados a conviver com a violência e continuam vítimas de ações dos setores e grupos econômicos que, impunemente, se opõem à Carta Magna do Brasil e planejam sua desregulamentação (KRAUTLER, 2015, p.11).

Fotografia 1 – Sede da FUNAI em Humaitá

Fotografia 2 – Aldeia Tenharin Marmelos Fonte: Portal do Holanda, 2013.

Enquanto isso,

Os Tenharin assistem à cena. Os mais velhos somem pra o meio da mata. “Quando viram aqueles homens de preto acharam que era o fim do mundo”, conta Zelito, rememorando o episódio. Mulheres e crianças também fogem. Nove ficaram perdidos: três mães, com três crianças de colo, duas crianças de 2 anos e um menino de 10 anos...Dias depois são resgatados, traumatizados, com febre e ferimentos (CARTA CAPITAL, 2014, s/p).

Durante esse período, a Polícia Federal e a Guarda Nacional permaneceram na região como forma de manter a ordem e garantir a segurança do Povo Tenharin como, também, investigar o desaparecimento e depois a morte dos desaparecidos.

Muito embora a justiça tenha prendido cinco indígenas Tenharin como responsáveis pelas mortes, nenhum deles confessou os crimes e pedem novas investigações. Segundo exposição do professor Edmundo Peggion (2014) na USP, no evento intitulado “Tenharin: Etnocídio no Sul do Amazonas – 2014”, parece que os investigadores seguiram apenas uma linha de investigação, na qual criminalizam os rapazes Tenharin pelo ocorrido, mas eles pediam para que se investigasse o fato de muitos madeireiros estarem insatisfeitos com as denúncias sobre a retirada de madeira ilegal das terras indígenas e poderia ter causado a morte dos rapazes. O referido professor chegou a fazer uma visita aos indígenas presos, relatou as péssimas condições das celas e as constantes ameaças que sofrem dos demais detentos.

De fato, estive no período de agosto a novembro de 2013 na aldeia Marmelos, por várias vezes, para discutir e organizar o Projeto Político Pedagógico das duas escolas desta aldeia. Nesse período, verifiquei que havia muitos carros da

polícia federal, IBAMA, ICMbio e do Exército Brasileiro passando em direção ao Matutpi. Os indígenas me informaram que estava acontecendo uma operação para combater o comércio da madeira ilegal e muitos madeireiros foram presos. Quando estava na aldeia, presenciei vários caminhões do Exército passando com madeira apreendida. Numa conversa com um grupo de senhores indígenas sobre a operação um deles me falou: “professora, o IBAMA quer que a gente vá junto com eles pra essas operações, mas agora a gente não vai mais, porque quem ganha pra fiscalizar são eles, além de tudo o pessoal do quilômetro 180 ficam com raiva da gente, pensam sempre que somos nós os culpados por essas operações”.

Mesmo passado um ano do ocorrido, muitos indígenas não voltaram para suas atividades na sede do município. Em entrevista com o Secretário Municipal dos Povos Indígenas, Ivanildo Tenharin, ele falou das ameaças que sofre até hoje, mas fala que jamais irá se abater e deixar de lutar por seu povo. Alguns alunos da UEA conseguiram voltar e concluir a graduação, mas os Tenharin que estudavam no IEAA-UFAM não se sentiram seguros para retornar. Como nos fala o pai (L1) de uma aluna do curso de licenciatura em Biologia e Química:

“Professora, como posso deixar minha caçula voltar pra UFAM se ela foi muito humilhada lá, os colegas ficaram falando muitas coisas ruins e até de alguns professores ela ouviu coisas sobre os indígenas? Aqui veio o representante da UEA, eu mesmo conversei com ele e ele deu a garantia da segurança pros alunos voltarem. A senhora sabe que ele pediu um carro da polícia militar que ficava na frente da UEA e quando eles iam (os indígenas) pra casa os policiais acompanhavam de longe, isso deixava a gente mais seguro. Mas na UFAM, aquela mulher não se interessou pelo nosso caso, aí achei melhor ela (filha) não voltar”.

Na verdade, o que se viu foi um ataque brutal ao povo Tenharin nas ruas, instituições públicas, redes sociais etc. Muitos dos que participaram dos eventos não conseguiam imaginar que poderiam estar sendo massa de manobra para outros interesses. Os três mortos merecem que se faça justiça e que os culpados paguem na forma da lei. Mas, uma cultura inteira não pode ser massacrada por um ato que nem mesmo foi comprovado integralmente. Provavelmente, o ocorrido foi usado por madeireiros e fazendeiros que não concordavam com a cobrança do “pedágio” e utilizou da comoção da população para incentivar os ataques, não só aos Tenharin, mas a depredação e destruição dos bens públicos13.

13 Ver filme de Iremar Antonio Ferreira com depoimento de Dona Margarida Tenharin, disponível em

Atualmente a comissão da verdade reconheceu os danos causados pela ditadura militar aos povos indígenas, especificamente aos Tenharin, que sofreram e sofrem com os danos causados pela abertura da BR-230 – Transamazônica, que afetou diretamente os povos indígenas ao longo dessa rodovia. Dessa forma, o Ministério Público Federal no Amazonas ingressou com uma ação civil pública, solicitando à Justiça Federal declarar a responsabilidade da Funai e da União por violação aos direitos humanos aos povos Tenharin e Jiahui, como consequência dos danos permanentes causados pela construção da Transamazônica em seus territórios.

Neste sentido, a Justiça Federal concedeu liminar em favor dos povos Tenharin e Jiahui, onde determina que adotem medidas para reparar os danos causados em decorrência da construção da rodovia. A liminar também garante que os locais sagrados desses povos devem ser preservados, além da garantia da presença dos indígenas em escolas ou faculdades, se necessário, com medidas de segurança.

Além disso, a ação civil requereu reparação por dano moral coletivo, no qual o Ministério Público Federal requer uma indenização de 10 milhões para cada povo, que deverão ser aplicados em favor desses povos, sob a coordenação da FUNAI, a partir da definição dos próprios indígenas. Esse item encontra-se em tramitação.

Atualmente, na rodovia não tem mais a cobrança da taxa de compensação. Os Tenharin compreendem que estavam cobrando das pessoas erradas, passaram então a cobrar das autoridades pela reparação de parte dos danos causados aos povos indígenas Tenharin e Jiahui, conforme a petição feita pelo Ministério Público Federal.