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Currículo Crítico e a Diversidade Cultural Indígena

Os anos de 1960 se configuram como uma década de grandes movimentos sociais em torno de questões geopolíticas mundiais na Europa e nos Estados Unidos. Ocorreram diversos movimentos sociais pelos direitos civis, pela liberdade sexual, feminismo, racismo, questionamento contra a ditadura no Brasil, dentre outros. Dentro desse momento histórico, a sociedade passa a questionar as instituições e os valores tradicionais.

Nesse contesto político e econômico, ocorreram vários eventos que se caracterizam pela mudança na perspectiva no processo educacional. Podemos destacar, pelo menos, alguns desses eventos como: movimento de Reconceptualização nos EUA; Nova Sociologia da Educação na Inglaterra com Michael Young; estudos de Paulo Freire no Brasil e Ensaios de Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Estabelet na França. Assim, esses eventos consistiram em um movimento de renovação da teoria educacional que “iria abalar a teoria educacional tradicional, tendo influência não apenas teórica, mas inspirando verdadeiras revoluções nas próprias experiências educacionais (SILVA T., 1999, p. 29)”.

Com isso, gera-se um sentimento de crise que

Desenvolveu-se, como consequência, uma contracultura que enfatizava prazeres sexuais, liberdade sexual, gratificação imediata, naturalismo, uso de drogas, vidas comunitárias, paz e liberdade individual. Inevitavelmente, as instituições educacionais tornaram-se alvos de violentas críticas. Denunciou-se que a escola não promovia ascensão social e que, mesmo para as crianças dos grupos dominantes, era tradicional, opressiva, castradora, violenta e irrelevante (MOREIRA; SILVA, 2009, p. 13)

Diante dessa conjuntura, existia um sentimento negativo em relação à função da escola, pois se a mesma não fosse capaz de promover a democracia, a melhor solução seria sua extinção. Isso demonstrava como a escola estava sendo questionada e as instituições precisavam dar respostas que atendessem aos questionamentos da sociedade. No entanto, essa mesma sociedade que questiona a legitimidade da escola, não faz nenhum questionamento com relação à estrutura da sociedade capitalista e muito menos sobre a função da escola na manutenção dessa ordem.

Nesse momento, alguns autores inconformados com as injustiças e as desigualdades sociais, tentando demonstrar a escola e o currículo na reprodução da

estrutura social vigente, e interessados em propor uma escola e um currículo voltados para atender aos grupos mais oprimidos, passam a buscar teorias sociais desenvolvidas, principalmente, na Europa. Como o neomarxismo, a teoria crítica da Escola de Frankfurt, as teorias da reprodução, a nova Sociologia da Educação inglesa, a psicanálise, a fenomenologia, o interacionismo simbólico e a etnometodologia (MOREIRA; SILVA, 2009, p. 14).

Em 1973, os estudiosos do currículo participam de uma conferência na Universidade de Rochester (EUA). Apesar de suas diferenças, todos rejeitavam a tendência curricular pautada em seu caráter tecnicista (instrumental, apolítico, ateórico). Esse novo campo de pesquisa busca compreender a natureza como mediada pelo conceito e entendimento da questão cultural. Uma vez que a cultura não é dirigida pelas leis da Natureza, aos poucos, as partes da natureza seriam obstáculos à ação do homem. No caso do currículo, seria identificar e eliminar aspectos que contribuíram para limitar a liberdade dos indivíduos e grupos.

Como resultado desta conferência, formaram-se duas grandes correntes: uma associada à Universidade de Wisconsin e Columbia, balizada no neomarxismo e na teoria crítica, como Michael Apple e Henry Giroux e outra, vinculada a Universidade de Ohio, com tradição humanística e hermenêutica, como William Pinar.

Como podemos verificar, não existia consenso entre os reconceitualistas, e as análises poderiam apontar várias divergências:

De um lado, estavam aquelas pessoas que utilizam os conceitos marxistas, filtrados através de análises marxistas contemporâneas, como Gramsci e da Escola de Frankfurt, para fazer a crítica da escola e do currículo existentes. Essas análises enfatizam o papel das estruturas econômicas e políticas na reprodução cultural e social através da educação e do currículo. De outro lado, colocavam-se as críticas da educação e do currículo tradicionais inspiradas em estratégias interpretativas de investigação, como a fenomenologia e a hermenêutica (SILVA T., 1999, p.38).

Assim, essas novas perspectivas de análise da realidade, no campo teórico do currículo, possibilitam novas análises e novas compreensões de situações e processos de interesse educacional e curricular dentro de determinada sociedade.

A concepção fenomenológica, que surgiu com Edmund Hussel, foi desenvolvida, entre outros, por Heiddeger e Merleau-Ponty. Para a fenomenologia, começa uma análise colocando os significados ordinários do cotidiano entre parênteses. Pois os acontecimentos que nos parecem naturais devem ser colocados em dúvida. Encontra-se focada nas experiências vividas, nos significados subjetivo e

intersubjetivo que são construídos. Esses significados são profundamente pessoais e subjetivos, suas conexões com o social se operam através das conexões intersubjetivas. Esses significados se manifestam através da linguagem, seja na linguagem ordinária, ou no senso comum inserido na linguagem.

Na perspectiva fenomenológica, o currículo não é, pois, constituído de fatos, nem mesmo de conceitos teóricos e abstratos: o currículo é um local no qual docentes e aprendizes têm a oportunidade de examinar, de forma renovada, aqueles significados da vida cotidiana que se acostumaram a ver como dados e naturais. O currículo é visto como experiência e como local de interrogação e questionamento da experiência (SILVA T., 1999, p.40-41).

Dessa forma, na perspectiva fenomenológica, as categorias como currículo, pedagogia e ensino são colocadas em suspensão para serem analisados. Em seguida, os conceitos como objetivo, metodologia, avaliação e aprendizagem passam por esse processo de suspensão. Esses conceitos são categorizados como sendo de segunda ordem e que aprisionam a experiência vivida por professores e alunos. Nesse contexto, os alunos são encorajados a aplicar suas próprias experiências, ao seu próprio mundo vivido. Para a fenomenologia, a análise se dá pelos temas que fazem parte do cotidiano, da rotina da própria pessoa que faz a análise e/ou das pessoas envolvidas.

Outra corrente é da teoria crítica neomarxista. Os autores associados a esta corrente, nos Estados Unidos, criaram a Sociologia do Currículo. Com estudos sobre a relação entre “currículo e estrutura social, currículo e cultura, currículo e poder, currículo e ideologia, currículo e controle social etc. (MOREIRA; SILVA, 2009, p. 16)”.

Movimento semelhante ocorre na Inglaterra com os sociólogos britânicos, liderados por Michael Young, que considera a Sociologia da Educação como uma sociologia do conhecimento escolar. Como podemos entender, as duas posições não se opõem, completam-se. Isso fez surgir um movimento que passou a definir essas duas perspectivas de currículo em Nova Sociologia da Educação (NSE). Essa NSE enfatiza que a forma que uma sociedade classifica, seleciona, distribui, transmite e avalia os conhecimentos que são reservados ao ensino, demonstram a hierarquia do poder e mantém o controle social.

Trata-se com efeito de fazer surgir o sistema complexo de relações que pode existir, nas sociedades contemporâneas, entre a estrutura dos saberes e o modo de funcionamento das transmissões escolares por um lado e o controle social que se exercem tanto no interior das instituições quanto no nível da sociedade global (FORQUIN, 1993, p. 85).

Na tentativa de explicitar a corrente teórica neomarxista, iremos abordar a perspectiva de dois teóricos: Michael Apple e Henry Giroux. No início da crítica, as teorias tradicionais do currículo e a ideologia do currículo estão identificadas nos trabalhos de Apple. Pois trabalhos de Althusser e Bourdieu fazem críticas radicais à educação liberal, mas não focalizam o currículo especificamente. Apple se apropria desses estudos e de outros que teorizam sobre teoria social crítica para elaborar sua crítica sobre o currículo. Esse trabalho passar a ter grande repercussão e será muito influente nas décadas seguintes.

Apple utiliza os elementos centrais da teoria marxista da sociedade, pois essa dinâmica se assenta na dominação de classe, dos que possuem os meios de produção e os que possuem apenas a força de trabalho. Essa organização da produção na sociedade influência outras esferas sociais, como a educação e a cultura (SILVA T., 1999).

Como vimos, isso está intimamente ligado, também, ao papel cultural da escola na maximização da produção de conhecimento técnico. Pelo fato de a escola ser única grande instituição que se situa entre a família e o mercado de trabalho, não é estranho que, tanto historicamente quanto hoje, determinados significados sociais que tragam benefícios diferenciais sejam distribuídos nas escolas (APPLE, 2006, p.88).

Existe, pois, em Apple e Giroux, uma relação entre economia e educação, entre economia e cultura. Isso demonstra uma conexão de como se estrutura a economia e o currículo, contudo, não é uma relação simples e direta, é mediado pela ação humana, o que torna essa relação complexa, pois a ação humana é permeada por vários fatores, inclusive a cultura. Essa preocupação com a relação à educação e do currículo com a economia, leva Apple a recorrer ao conceito de hegemonia de Gramsci e Raymund Williams. É esse conceito que permite perceber o campo social como campo contestado, onde os grupos de dominação necessitam de um esforço permanente de convencimento ideológico (consenso) para manter essa dominação. Esse esforço se transforma em hegemonia cultural, quando se encontra naturalizado, apropriado pelo senso comum. Esse movimento só se dá no seu próprio campo cultural. A partir desses elementos e outros utilizados de autores como Pierre Bourdieu, Basil Bernstein e Michael Young, que Apple visualiza o currículo em termos estruturais e relacionais.

O controle social e econômico ocorre nas escolas não somente sob a forma

das disciplinas ou dos comportamentos que ensinam – as regras e rotinas

obediência, pontualidade, etc. O controle é também exercido por meio das formas de significado que a escola distribui: o “corpus formal do conhecimento escolar” pode tornar-se uma forma de controle social e econômico (APPLE, 2006, p. 103).

O currículo não é neutro, nem desinteressado. Ele compõe a base da educação e da cultura, que está relacionada aos interesses de classes e/ou grupos dominantes. Esses grupos chegam a fazer algumas concessões quando é necessário para manter o consenso social em torno do projeto de dominação do qual fazem parte.

Por isso,

Reconhecer que o currículo está atravessado por relações de poder não significa ter identificado essas relações. Grande parte da tarefa da análise educacional crítica consiste precisamente em efetuar essa identificação. É exatamente porque o poder não se manifesta de forma tão cristalina e identificável que essa análise é importante. No caso do currículo, cabe perguntar: que forças fazem com que o currículo oficial seja hegemônico e que forças fazem com que esse currículo aja para produzir identidades sociais que ajudam a prolongar as relações de poder existentes? (MOREIRA; SILVA, 2009, p. 29-30).

Neste sentindo, a tarefa de realizar uma análise com base na teoria curricular crítica se caracteriza no compromisso contínuo de identificar e analisar as relações de poder (político) e as relações culturais (cultura) perpassadas pela educação e currículo, além de seus efeitos na vida real de homens e mulheres de uma sociedade de classe.

A educação escolar indígena no Brasil esteve, durante muito tempo, condicionada a inserir os povos indígenas na sociedade brasileira, quase sempre como mão de obra barata. Essa escola que, durante quase cinco séculos, sempre foi imposta aos indígenas sem respeitar seus processos próprios de educação e aprendizagem, passou a ser bandeira de luta nos movimentos dos povos indígenas que começou a ser organizado nos anos de 1970.

Sabemos que, durante esses quinhentos anos de conquista e ocupação do território que hoje corresponde ao Brasil, os inúmeros povos que aqui viviam opuseram resistência à invasão. As estratégias de enfrentamento ou de relacionamento com o “estranho invasor” foram as mais diversas, desde a resistência física até a diplomacia e a resistência cultural (SILVA R., 1999, p.95).

A partir dessa década a organização dos povos indígenas conseguiu garantir, nos marcos legais, como a Constituição de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 direitos específicos de educação, respeitando a cultura, a língua e a organização socioeconômica de cada povo indígena.

Apesar de grandes avanços terem sido garantidos com relação aos povos indígenas, na prática, ainda é marginal a formação de professores indígenas para atuarem em suas escolas. Entre os Tenharin, dentre os localizados à margem da BR-230, apenas cinco professores possuem graduação em Pedagogia Intercultural, os demais possuem o Ensino Médio ou somente o Ensino Fundamental, o que demonstra que, na prática, 27 anos após seus direitos terem sidos garantidos na atual Constituição Federal, muitas escolas indígenas ainda padecem com o descaso do poder público com essa questão.

No entanto, devemos enfatizar que a escola, tanto indígena como não- indígena, sempre foi motivo de preocupação para as classes dirigentes desse país. Preocupação em monitorar a escola como forma de manter o processo educativo dentro dos padrões ideológicos que serviram e servem à classe dominante. Então, o discurso oficial de que a educação deve formar cidadãos críticos não corresponde aos modelos educacionais que são implantados no Brasil. Mesmo considerando que alguns avanços foram alcançados nestas últimas décadas, a escola ainda não proporciona aos seus estudantes uma educação capaz de formar alunos críticos, capazes de questionar qual o seu papel na nossa sociedade.

A conquista de uma escola indígena específica, diferenciada, intercultural, bilíngue/multilíngue e comunitária, dentro dos marcos legais, possibilitaram aos povos indígenas a garantia que poderiam escolher o tipo de escola que atendesse às suas expectativas de futuro. No entanto, a conquista legal não significa, automaticamente, a conquista real dessa escola.

A problemática da diversidade nas escolas indígenas ainda se apresenta de forma muito problemática, pois, na prática, o sistema educacional não foi modificado para que essa escola pudesse ser reconhecida como diferenciada, considerando que o Brasil apresenta uma diversidade indígena com 305 etnias diferentes, logo, seria interessante pensar na organização dessas escolas. No entanto, já existem alguns povos indígenas que experimentam uma escola específica, o que coloca o currículo mais apropriado a atender às exigências dessa população.

A diversidade cultural indígena se apresenta como uma problemática para as agências oficiais que precisam entender a organização e o nível de interação que se encontra com a sociedade envolvente, para compreender quais os processos educativos que os próprios indígenas irão escolher. Isso não significa que a escola passaria a ser responsabilidade dos povos indígenas, eles serão seus protagonistas,

mas cabe ao Estado garantir o acesso a uma educação escolar que possibilite aos diversos povos indígenas a valorização de sua cultura milenar e seus modos próprios de organização, além de conhecimentos produzidos pelos povos não- indígenas.

Entretanto, a escola não proporciona acesso apenas aos conhecimentos indígenas ou não-indígenas, ela ensina valores, regras, normas que devem ser analisadas para saber a quem iria interessar esses valores, à comunidade indígena ou aos sistemas da sociedade não-indígena.

Faz-se necessário que reconheçamos a importância do acesso à educação escolar para os povos indígenas, uma vez que possibilita o domínio de ferramentas, como a Língua Portuguesa, para entender como se organiza e funciona a sociedade brasileira não-indígena para que possa se inserir nos debates e nas lutas pela conquista e garantia dos direitos dos povos indígenas. Para a concretização dessa escola indígena, seria necessária uma mudança nos paradigmas que sustentam a função da educação dentro da sociedade brasileira, especificamente da escola indígena.

Todavia, a diversidade cultural indígena também deve ser alvo de preocupação nas escolas não-indígenas, pois durante séculos foi ensinado aos alunos a desconsiderar a importância dos povos indígenas na construção da sociedade brasileira, sem, contudo, reconhecer as lutas e a resistência dos povos indígenas para manter sua cultura e seu modo de vida. O projeto de colonização que visava inserir o indígena dentro da lógica de mercado, destruindo sua organização tribal, gerou uma carga de preconceito com os povos indígenas que se encontra embutido nas palavras, gestos e comportamentos da sociedade não-indígena brasileira.

Atualmente, existe uma legislação importante (Lei 11.645/08) que obriga as instituições educacionais, no Brasil, a oferecerem o ensino da História e da Cultura Indígena. Contudo, a obrigatoriedade não resolve o problema, pois os professores não receberam formação adequada para discutir a diversidade cultural indígena nos seus cursos de formação inicial e continuada, além da falta de material específico para trabalhar com a temática. Seria necessário um grande investimento em estudos e pesquisas sobre as diversas etnias indígenas existentes atualmente no Brasil, além da história de contato entre indígenas e colonizadores, focalizando a questão indígena no cenário atual.

A problemática da diversidade cultural indígena não se resolve apenas no âmbito do currículo prescrito, é necessário compreender como são inseridas essas questões no currículo real realizado nas escolas, pois é no âmbito do currículo oculto que se trava a luta pela hegemonia do poder, e essa hegemonia se sustenta, dentre outras coisas, acentuando as diferenças e naturalizando os preconceitos.

No entanto, “a vida social, em geral, e a pedagogia e o currículo, em particular, não são feitos apenas de dominação e controle. Deve haver um lugar para a oposição e a resistência, para a rebelião e a subversão (SILVA T., 2009, p. 53)”. Pois é dentro desse espaço de contestação que podemos realizar experiências transformadoras que possam questionar as concepções acerca da escola a ser construída, de forma a garantir um currículo que satisfaça as necessidades da comunidade em que está inserido.

Dessa forma podemos afirmar que o currículo, assim como a escola, encontra-se inserido dentro de um contexto social mais amplo, por onde perpassa a vertente do poder. Portanto, o currículo se configura numa disputa ideológica e cultural, de conhecimento e de poder.

CAPÍTULO IV

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS ACERCA DE ESCOLA DO POVO TENHARIN