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Podemos destacar, ao observarmos de forma panorâmica as temáticas das sete primeiras Conferências Pan-Americanas, que a relação do Brasil nestes eventos era relativamente ambígua, alternando-se conforme a pauta. O Brasil, como vimos, muitas vezes ia de encontro aos vizinhos hispânicos quando seus interesses (territoriais, por exemplo), pudessem entrar em disputa58. Este dado é evidente, mas é importante para avaliarmos a recepção do pan-

57 Estes elementos configuram uma segunda fase do pan-americanismo, que não será tema de análise

desta tese. Em função disso, não serão aqui analisadas as próximas Conferências Pan-Americanas.

58 Alguns analistas, ao enfocarem na gestão do Barão do Rio Branco, falam de uma postura pragmática.

Em relação às disputas que tomaram forma durante as conferências, é relevante indicar aqui o estudo de Teresa Maria Spyer Dulci (2008). Segundo a autora, durante as seis primeiras Conferências Pan- Americanas, se configuraram dois diferentes discursos: o do pan-americanismo e o do latino- americanismo. O pan-americanismo seria o discurso oficial das Conferências, tendo sido construído principalmente pelos delegados norte-americanos que participaram dessas assembleias. A maior opositora deste discurso foi a Argentina. Já o discurso latino-americano teria sido construído a partir das disputas que tiveram espaço durante as Conferências Pan-Americanas. Foi elaborado principalmente pelos delegados argentinos a fim de colocar freio aos avanços norte-americanos e de alçar a Argentina à posição de líder dos países latino-americanos. Havia duas correntes deste discurso: uma que incluía o Brasil e outra que excluía (que apelava para a identidade hispânica, isto é, decorrente da colonização espanhola). Sua principal motivação era o receio de intervenção dos EUA nos territórios dos países latino-americanos. A posição do Brasil, na maior parte das contendas, era da busca por uma posição neutra, no limiar entre os dois discursos identitários: “Assim, quando convinha, a chancelaria brasileira se aproximava dos Estados Unidos e, consequentemente, se valia do discurso pan-americano, principalmente se isso aumentasse seu poder de influência nas Conferências Pan-Americanas (esse é o caso do tema da arbitragem). Noutras vezes, a diplomacia brasileira se aproximava dos demais países latino-americanos, especialmente quando estavam em jogo, na perspectiva do Itamaraty, acordos que prejudicassem os interesses nacionais brasileiros (destaque para campo da economia, cujo melhor exemplo é a proposta de união aduaneira)” (DULCI, 2008, p.34)

americanismo entre os intelectuais brasileiros. Além disso, é pertinente considerarmos, como destacou Salvatore (2016), o fato de que o Brasil localiza-se na parte da América vista como “terra de oportunidades” para os norte-americanos. Sendo assim, tanto as iniciativas e discursos dos Estados Unidos, quanto o intercâmbio com a intelectualidade é diferente daquele que ocorre com os países ao norte do Panamá, por exemplo.59

Em relação ao pan-americanismo no Brasil, é significatico que, em consonância com as reivindicações do Manifesto republicano de 1870, a proclamação da República brasileira tenha implicado em uma reorientação da sua política externa – houve, neste momento, uma aproximação tanto com as repúblicas vizinhas quanto com os EUA.

A recepção do pan-americanismo entre os países latino-americanos não é uma questão simples. A tese de Fernando Vale Castro (2007) é, nesse sentido, valiosa. Ao estudar a Revista Americana (1909-1919), o autor aponta para a existência de rumoroso debate sobre a conveniência ou não de se aceitar a liderança estadunidense nos assuntos continentais. Um ponto consensual entre os autores que se dedicaram a estudar a questão pan-americana é que, à medida que a ação estadunidense vai se revelando cada vez mais intervencionista, aumentam as desconfianças e as críticas à liderança americana, crescendo os debates em torno de uma união que não fosse tão dependente dos Estados Unidos. Em relação à temática, são relevantes as considereções contidas na tese de Kátia Baggio (1998).

Esta autora, ao nos apresentar a América Latina na visão dos intelectuais brasileiros das primeiras décadas republicanas, afirma que houve, neste período, um evidente fortalecimento do americanismo no Brasil. Mas este americanismo foi, sobretudo, aquele vinculado ao exemplo norte-americano, o qual ganhou a adesão efetiva da maioria dos intelectuais.

Para além de situar as querelas em torno do pan-americanismo, o estudo em questão também localiza os debates intelectuais na América como um todo. Assim, vemos que as polêmicas político-ideológicas e literárias que tiveram espaço no Brasil entre os últimos decênios do século XIX e as primeiras décadas do século XX – relacionadas às profundas mudanças de caráter modernizante pelas quais o país passava – também tiveram lugar privilegiado na América Hispânica no mesmo período:

A acentuada urbanização de algumas cidades (Buenos Aires, Cidade do México, Santiago do Chile, Montevidéu, etc.); o processo de industrialização que se esboçava nos principais centros econômicos; o crescimento demográfico; o aumento das camadas médias e da classe operária; a

59 No capítulo três será explorada a questão da postura brasileira nas relações exteriores e o impacto

imigração; em suma, a modernização capitalista, que se delineava a partir da década de 1870 na América Latina (com evidentes variações de grau entre os diferentes países e regiões), trouxe consigo uma profusão de debates políticos e ideológicos: a discussão sobre o tema da nação e do latino-americanismo; os projetos para a superação do “atraso” e para promover o “progresso” e a “civilização”; a polêmica sobre as relações entre a América Latina e os Estados Unidos; a assimilação e reinterpretação das correntes de pensamento surgidas na Europa no século XIX; a questão do negro, do índio e da conformação étnica dos vários países, etc. Da mesma forma que no Brasil, em toda a América Latina este foi um momento de intenso debate intelectual, com temáticas similares, em que se discutiam questões pertinentes a um período marcado pela intensificação do processo de modernização. (BAGGIO, 1998, p. 29-30)

Acerca da integração dos países americanos e a política externa brasileira, a autora entende que o pan-americanismo e o incremento da integração dos Estados Unidos com os demais países americanos visava, em última instância, o crescimento das exportações de produtos norte-americanos para o restante do continente, a fim de superar a entrada dos produtos europeus, principalmente da Inglaterra, sua principal concorrente. Uma prova desta intenção é que o único resultado concreto da Primeira Conferência foi a criação do então denominado Departamento Comercial das Repúblicas Americanas, com a função de realizar a “pronta compilação e distribuição de dados sobre o comércio”, posteriormente designado União Pan-Americana. A data em que a criação do Departamento Comercial foi aprovada – 14 de abril de 1890 – foi considerada o início do pan-americanismo e foi escolhida como o “Dia das Américas”.

Como vimos, encontros periódicos foram realizados durante toda a primeira metade do século XX, em diversas capitais do continente, até que, em 1948, na Conferência de Bogotá, foi criada a Organização dos Estados Americanos – OEA, com novo aparato jurídico, substituindo a União Pan-Americana. Baggio ressalta que os 58 anos que separam a Conferência de Washington e a de Bogotá foram marcados por tensas relações entre os países hispano-americanos e os Estados Unidos, principalmente nas primeiras décadas deste século, devido à agressiva política intervencionista dos norte-americanos nas Antilhas, América Central e México, mais conhecida como big stick policy. Somente com a “política da boa vizinhança” de Franklin D. Roosevelt, a partir dos anos 30, foi possível visualizar novos rumos nas relações entre as “duas Américas”, que desembocaram na criação da OEA.

Sobre os debates intelectuais acerca do pan-americanismo no Brasil republicano, Baggio afirma que estes pensadores, que estavam com os olhos voltados para a compreensão do momento em que viviam, tinham o objetivo de elaborar projetos para o “futuro da nação”. Eles,

em linhas gerais, se dividiam em duas vertentes. Uma delas valorizava a tradição ibérica, principalmente o período monárquico dos Bragança, identificado como uma fase de estabilidade, manutenção da unidade territorial e progresso. Congregando fundamentalmente saudosistas da monarquia recém-destituída, fazia críticas severas ao regime republicano e valorizava as heranças lusa e católica da nossa constituição enquanto Estado Nacional. Um exemplo dessa corrente é Eduardo Prado, que publicou o livro A Ilusão Americana, de 1893.

Outra relevante vertente interpretativa do período recusava a herança portuguesa, simbolizada pelos períodos colonial e monárquico, e via na república o caminho natural e necessário para a superação do “atraso” e a construção de uma nação “civilizada”, “moderna” e “progressista”. Nesta visão, o modelo republicano e liberal-democrático dos Estados Unidos ganhava destaque. Importantes intelectuais da época foram defensores da república liberal, como Rui Barbosa, José Veríssimo, Quintino Bocaiúva, Francisco Glicério, Euclides da Cunha, Raul Pompéia, Sílvio Romero, Artur Orlando, entre outros.

A tese de Kátia Baggio explicita alguns dos debates sobre o pan-americanismo e as relações da América Latina – e, particularmente, do Brasil – com os Estados Unidos. O tema colocou importantes intelectuais brasileiros em oposição. De um lado, críticos da política expansionista dos Estados Unidos, como Eduardo Prado (A Ilusão Americana, 1893), Oliveira Lima60 (Pan-Americanismo, 1907), José Veríssimo61 (em vários artigos publicados em O Imparcial e no Jornal do Comércio, do Rio de Janeiro) e Manoel Bomfim (A América Latina, 1905, e outras obras). De outro, defensores ardorosos do pan-americanismo, como Joaquim Nabuco (em discursos e artigos), Artur Orlando (Pan-Americanismo, 1906)62 e Euclides da

60 É importante, neste ponto, antecipar que, segundo Natália Henrich (2016), a posição de Oliveira

Lima, que será abordada no terceiro capítulo desta tese, é bastante instável, não sendo adequado reduzi-la tão rapidamente (a partir apenas do livro de 1907) a uma oposição ao pan-americanismo.

61 Sobre o pensamento de José Verissimo, a autora afirma: “Ainda que Eduardo Prado tenha sido, entre

os opositores ao panamericanismo, o primeiro a ter sua obra amplamente conhecida e debatida (driblando a censura da época), o educador e crítico literário José Veríssimo expressou antes mesmo de Prado, em seu trabalho A Educação Nacional – cuja primeira edição foi publicada em Belém no ano de 1890 – as suas reservas em relação aos Estados Unidos e críticas à “imitação” das instituições políticas e traços culturais norte-americanos [...]. Seu livro A Educação Nacional teve um objetivo explícito: servir como colaboração às reformas educacionais que deveriam ser implementadas a partir do novo regime. Veríssimo acreditava que, para consolidar e fortalecer o regime republicano, era imprescindível uma profunda reforma educacional. Para o autor, faltava no Brasil um forte sentimento nacional que estivesse acima dos localismos e provincianismos.” (BAGGIO, 1998, p. 80- 81)

62 É interessante a crítica da autora à interpretação de Orlando, uma vez que a versão por ele difundida

acerca do pan-americanismo será, como veremos, adotada pela União Pan-Americana: “Impressiona, também, vinculação que Artur Orlando fez entre as propostas de integração continental formuladas por Simón Bolívar e James Monroe, descartando qualquer diferença entre as duas perspectivas. Chegou a dizer, referindo-se ao Congresso do Panamá, de 1826: “Bolívar dirigiu um novo convite

Cunha (em artigos e cartas, mas sem o mesmo entusiasmo dos colegas), situando o tema como um dos mais frequentes do debate intelectual na virada do século.

Este não é o momento de nos determos na análise das posições assumidas por cada um destes intelectuais (alguns serão objeto de discussão no capítulo três). O que importa destacar aqui é que, com o estudo de Baggio, podemos observar que as discussões sobre o pan- americanismo estiveram vinculadas aos projetos de nação e de futuro para o Brasil. Os debates em torno da questão, em geral, estão associados ao tema da modernidade e da busca pelo progresso, mobilizando questões como raça, mestiçagem, clima, e identidade nacional63. Como veremos, no Brasil, eles estiveram na ordem do dia e foram marcados pela heterogeneidade de posições e de falas.

Para concluir esta seção, é elucidativo mencionar o livro de Hélio Lobo (1939) intitulado “O pan-americanismo e o Brasil”. Os argumentos nele expostos são uma síntese das discussões que o tema gerou tanto no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro quanto em círculos mais amplos. Membro do corpo diplomático brasileiro e sócio do IHGB, Hélio Lobo foi um dos principais entusiastas do pan-americanismo no Brasil. Bastante inspirado no livro de Joseph Lockey (citado no começo desta seção), o diplomata-historiador explica que pan-americanismo é:

[...] antes de mais nada, aspiração, entendimento continental para o bem comum; e como variam os meios de se chegar a isso, as outras definições contém alguma expressão dele, quer na sua evolução histórica, quer na sua forma atual, tais como: aliança politica, forma democrática de governo, exclusão de soberanias estranhas, no sentido de senhorio territorial ou outro fim. Aspiração, entendimento continental pelo bem comum: essa a melhor interpretação [...]. Para a realização desse ideal a primeira contribuição foi, sem dúvida, norte-americana. (LOBO, 1939, p. 2-3)

às democracias americanas, a fim de reunidas em congresso solene adotarem a doutrina de Monroe [...]. Esta interpretação, como sabemos, é claramente tendenciosa e deturpadora da realidade, porque a idéia original de Bolívar era uma liga voluntária de Estados hispano-americanos, que não incluía o Brasil monárquico – visto como um braço da Santa Aliança no continente americano – e considerava tanto os Estados Unidos como a Inglaterra apenas aliados potenciais e não integrantes desta confederação. Deve-se registrar que, em diversas ocasiões, Bolívar manifestou sua admiração pelas instituições políticas inglesas e seu desejo de obter o apoio da Grã-Bretanha para seus projetos. Obviamente, Bolívar não compactuava com as posições de Monroe, no sentido de recusar qualquer forma de interferência européia nas Américas. Além disso, Bolívar manifestou seu descontentamento quanto à posição dos Estados Unidos em relação às guerras de independência na América Hispânica, criticando severamente a ausência de apoio dos norte-americanos. [...]. Claro está que o pan- americanismo (como foi proposto por James G. Blaine) não tem ligação com a proposta bolivariana de uma confederação de Estados hispano-americanos, muito pelo contrário. E, evidentemente, em nenhum momento Bolívar pretendeu ‘adotar a doutrina de Monroe’, como afirmou, de forma apressada e forçada, Artur Orlando.” (BAGGIO, 1998, p.166-169)

63 Além disso, nos parece, há mais nuances entre a “oposição” e a “defesa” que alguns dos autores

Depois disso, o autor explica a doutrina Monroe (1823) e aponta que ela teria sido a precursora do pan-americanismo. Para tanto, cita seu próprio livro, publicado no ano de 1912 e intitulado “De Monroe a Rio Branco”. O Congresso do Panamá, convocado por Bolívar e ocorrido em 1826, seria uma continuidade dos anseios por uma “união da América para resguardo de sua integridade territorial, intermitentemente ameaçada.” (LOBO, 1939, p. 10).64 Além de buscar esta ancestralidade dos princípios pan-americanos em Monroe, Lobo vai ainda mais longe, dizendo que o Tratado de Madrid, de 1750, ao propor que as colônias não devessem ser envolvidas nas disputas entre as coroas portuguesa e espanhola, estaria já antecipando a Doutrina Monroe e, portanto, o próprio pan-americanismo. A grande figura por trás do tratado, Alexandre de Gusmão, é bastante exaltada pelo autor. Gusmão inspirou Monroe, esta é a interpretação que Hélio Lobo quer consolidar. Sua conclusão é exemplificativa de uma certa visão de pan-americanismo, que o associa ao desenvolvimento e ao progresso:

É certo que o continente teve guerras, no seu seio; que o caudilhismo ou a ditadura foram e ainda são, em mais de um, a forma usual de dominação política: e que falta às suas populações, em geral, o grau de educação cívica, o padrão de vida material, que são privilégios das civilizações adiantadas. Mas não é menos verdade que tais episódios e situações, no seu conjunto, não retiraram à América, como entidade própria, a vocação para o progresso e para a paz, que lhe são peculiares. Foi a consciência do destino comum que, aos poucos, criou este sentimento, do mesmo passo que o instinto de conservação o fortaleceu. Pois pan-americanismo é essa consciência, nada mais. (LOBO, 1939, p.143)

Como vemos, a visão do autor é bastante positiva e pouco crítica à versão do pan- americanismo difundida pelos Estados Unidos. Tal visão, por sua vez, esteve em debate na instituição que este trabalho busca estudar. Antes de mergulharmos nas discussões sobre o pan- americanismo no IHGB, porém, é preciso que acompanhemos de perto a formulação da retórica pan-americana. Para tanto, será pertinente nos determos na análise da União Pan-Americana, a qual contribuiu fortemente para a constituição do discurso expresso no livro de Hélio Lobo e de outros intelectuais do período. No próximo capítulo, conheceremos melhor este empreendimento.

64 Apesar de apostar no discurso da ancestralidade das ideias pan-americanas, Hélio Lobo também

aponta para as divergências de pensamento decorrentes da postura intervencionista dos Estados Unidos na América. Ele menciona, por exemplo, que após a anexação de territórios mexicanos, passa a ganhar força o pan-latinismo, o qual conclamava a necessidade de associação geral, sem a participação dos EUA. Era o pan-latinismo, portanto, contrário ao pan-americanismo.

3 A UNIÃO PAN-AMERICANA E O PAPEL DAS MULHERES NA PROMOÇÃO DO PAN-AMERICANISMO

Este capítulo se divide em duas seções, as quais se subdividem internamente. A primeira delas é dedicada ao estudo da União Pan-Americana, com ênfase para a apresentação de seus objetivos centrais. Um destes objetivos foi a busca por criar um sentimento de unidade entre os diferentes países da América. Neste capítulo será argumentado que este exercício buscou fomentar a ideia de pan-americanismo, a qual ganha um passado que, a partir de então, passa a abarcar boa parte dos países das Américas. Na segunda seção será analisada a relação das mulheres com o Pan-Americanismo.