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De acordo com Joseph Lockey (1920), a expressão “pan-americanismo” apareceu pela primeira vez na imprensa norte-americana, que começou a usar, alguns meses antes da Primeira Conferência Internacional Americana (1889-90), a expressão Pan-América. O termo difundiu- se e passou a denominar o conjunto de políticas de incentivo à integração dos países americanos, sob a hegemonia dos Estados Unidos.

Além de localizar o surgimento do termo, o autor também busca indicar que as iniciativas em torno da busca por uma união entre os países da América vinham de um passado mais remoto, tendo início já no século XVIII, na América Ibérica. Apesar de o surgimento destas ideias não ter sido nos Estados Unidos (o crédito deveria ser atribuído à América Hispânica), este país teria sempre as apoiado com entusiasmo47. É importante observar que este discurso será bastante utilizado pela União Pan-americana, como veremos na segunda seção deste capítulo.

Uma sólida análise contemporânea do pan-americanismo (enquanto conceito e também como projeto promovido pelos Estados Unidos) pode ser encontrada no já citado livro do argentino Ricardo Salvatore (2016): “Disciplinary conquest: U.S. scholars in South America: 1900-1945”48. Uma das definições desenvolvidas por ele é de que o pan-americanismo foi um

47 O livro de Lockey foi resenhado por Edward Perry, que escreve na Hispanic American Historical

Review, no ano de 1921: “Cinquenta páginas do volume são dedicadas a projetos precoces em prol de uma união continental, fornecendo evidências suficientes para mostrar que a ideia de Pan-América sempre teve, em todos os tempos, a simpatia, assim como a ajuda material, dos Estados Unidos. Parece óbvio que o crédito por esta ideia de união de todos os povos do Novo Mundo deve ser atribuído aos hispano-americanos.” (The Hispanic American Historical Review, Vol. 4, n. 4, Nov., 1921, p. 755. Tradução nossa.)

48 Mark Berger (1995), citado na seção anterior deste capítulo, também é outro autor que analisa o tema.

Segundo ele, já no século XIX a América Latina se tornou um objeto da política externa dos Estados Unidos. Durante as duas primeiras décadas do século XX, os EUA assumiram, gradualmente, uma

movimento que buscou fomentar a criação de um sistema hemisférico de cooperação, tendo feito parte de um processo de “segunda descoberta” da América: representações textuais e científicas da região, mais tarde congeladas em conhecimento regional disciplinar, constituíram um engajamento pela construção de um império benevolente informal. Em seu estudo, centrado na análise das ideias de cinco pesquisadores norte-americanos, o autor busca compreender como os estudos acadêmicos contribuíram para o estabelecimento deste “império informal” dos Estados Unidos na América Latina.

Nesse sentido, Salvatore afirma que os promotores do Pan-Americanismo esperavam que professores universitários e pesquisadores produzissem novos conhecimentos que pudessem revelar a “verdadeira natureza” das repúblicas do Sul – A América do Sul, na definição do autor, é a região geograficamente localizada ao sul do Panamá – estabelecendo as semelhanças e diferenças entre as culturas da região. A maioria destes acadêmicos sentia orgulho pelo fato de que o conhecimento fornecido por suas disciplinas servia para subsidiar as políticas dos Estados Unidos na região. Assim, “houve uma conexão implícita entre a formação dos estudos latino-americanos e a política externa dos EUA.” (SALVATORE, 2016, p.2). Esta conexão deu sentido e substância a muitos dos esforços dos pesquisadores para “conhecer a América do Sul”. Além disso, os estudiosos esperavam que, uma vez disseminada para a população norte-americana como um todo, este novo conhecimento traria sentimentos de simpatia e entendimento em relação aos sul-americanos. Nas palavras do autor:

posição de domínio na região do Caribe e da América Central. Foi neste período que teve início a construção do discurso pan-americanista, o qual contribuiu para que a interpretação negativa da América Latina, que predominou dos anos 1820 até o início do século XX, sofresse certa transformação: “Desde a independência da América Latina na década de 1820 até as primeiras décadas do século XX, essa interpretação negativa predominou. No entanto, com a Primeira Conferência Internacional dos Estados Americanos em 1890, o estabelecimento do Bureau Internacional das Repúblicas Americanas e o surgimento do Pan-americanismo, uma imagem mais positiva de uma América (Norte e Sul), com uma história e um destino comuns, começou muito gradualmente a surgir na América do Norte. Desde a Primeira Guerra Mundial, certas versões do pan-americanismo têm desafiado representações mais tradicionais da América Latina (mas certamente não as tem substituído) enquanto um outro negativo da América do Norte.” (BERGER, 1995, p. 16. Tradução nossa.). Exemplo do fato de que estas tentativas de superar tal representação negativa não substituíram às tradicionais é a questão da divisão religiosa, que continuou a ser um fator nas percepções da América do Norte sobre a América Latina. Os norte-americanos muitas vezes explicaram alguns problemas da América Latina nos termos da tradição católica e justificaram sua suposta superioridade em termos de seu protestantismo. Dessa forma, apesar dessas leves alterações, o autor conclui que a ficção sobre a solidariedade hemisférica foi sustentada por uma constante e poderosa retórica sobre parceria contra ameaças externas, não-americanas. Também se investe em objetivos compartilhados sobre liberdade e democracia. O domínio continuado dos Estados Unidos é, assim, reforçado pelo Pan-americanismo e pela visão de uma América unitária.

Minhas afirmações referem-se especificamente ao período 1900-1945, que corresponde à construção de instituições e ideais pan-americanos. Antes de 1900, a raridade do conhecimento regional especializado tornava a interação entre o conhecimento e o poder do Estado menos frequente e eficaz. Proposto pela primeira vez pelo secretário de Estado James G. Blaine em 1881, o ideal pan-americano foi concebido como uma união cooperativa das repúblicas americanas. Mais tarde, sob o presidente Woodrow Wilson, quando os EUA lançaram uma reaproximação com a América do Sul, a noção tornou-se uma ideologia completa, um hemisferismo, que se centrou em ideias de cooperação econômica, engajamento cultural e segurança coletiva. Em meados da década de 1930, o apoio ao pan-americanismo atingiu o ápice do entusiasmo. Em todo o país, “sociedades pan-americanas” – associações dedicadas a promover a amizade e o entendimento interamericanos – receberam amplo apoio de funcionários, corporações, universidades e municípios dos EUA. De fato, o pan-americanismo tornou-se um movimento social patrocinado pelo governo. A Política da Boa Vizinhança do Presidente Franklin D. Roosevelt, por exemplo, serviu para aprofundar a aproximação dos EUA ao subcontinente. A era do pan-americanismo foi uma conjuntura particular em que as oportunidades econômicas tornaram o conhecimento da América do Sul uma preocupação especial compartilhada por empresários norte-americanos, formuladores de política externa e acadêmicos. Esforços diplomáticos para obter a cooperação das repúblicas sul-americanas apresentaram às autoridades americanas muitas perguntas sobre as opiniões dos intelectuais sul- americanos. (SALVATORE, 2016, p.3. Tradução nossa.)

Aqui temos outras definições dadas à noção de pan-americanismo: ideologia, hemisferismo, movimento social patrocinado pelo governo. O autor, de forma convincente, vai explicando como se constituíram os projetos que deram forma ao pan-americanismo. O ponto de partida da análise está na interpretação de que havia múltiplos interesses dos Estados Unidos na América ao Sul das suas fronteiras, a qual passou a ser diferenciada e segmentada. É interessante, nesse sentido, a diferenciação que é feita entre os territórios localizados entre o Panamá e os Estados Unidos e os países ao sul do Panamá:

No discurso acadêmico do período, a “América do Sul” representava uma região bem diferente do México, da América Central e do Caribe, onde os EUA exerciam formas mais diretas de intervenção. Ao norte do Canal do Panamá estavam nações com frequentes revoluções, com populações analfabetas vivendo em condições de extrema pobreza, e submetidas, por causa de sua proximidade com os Estados Unidos, a uma supervisão estreita e freqüente do Tio Sam. Ao sul desta divisão, na América do Sul, havia repúblicas mais politicamente estáveis, algumas das quais atingiram um grau significativo de progresso econômico, particularmente as chamadas potências do ABC, Argentina, Brasil e Chile, bem como, por extensão, o Uruguai. Na comunidade de política externa dos EUA e nos círculos de negócios, desenvolveu-se durante esse período uma fascinação temporária com – nos momentos limítrofes da perplexidade – o rápido progresso alcançado pelos poderes do ABC. Como consequência, os autores reivindicaram um

tratamento diferenciado da região em relação ao restante da América Latina. Por diversas razões, o establishment de Washington nunca considerou essas repúblicas como possíveis alvos de intervenção militar. Promotores do pan- americanismo, como John Barrett, apresentaram as repúblicas do sul como ‘terras de oportunidade’ para os investidores e comerciantes dos EUA.” (SALVATORE, 2016, p.4. Tradução nossa.)

Dessa forma, a América do Sul foi considerada uma “terra de oportunidades” pelos fabricantes, comerciantes e financistas dos EUA. A região foi objeto de suas recorrentes intervenções textuais e investigativas, através das quais procuraram descobrir e revelar sua natureza interior. Segundo Salvatore, durante a primeira década do século XX, por razões econômicas, políticas e culturais, os Estados Unidos adotaram uma política de sedução em relação às repúblicas sul-americanas. Essa política incluía cooperação intelectual, intercâmbios acadêmicos, assessoria técnica, tradução de literatura e de história, e a promoção do ensino do espanhol nas escolas dos EUA. Essa política cultural do pan-americanismo foi sustentada pela crença de que o conhecimento e o entendimento mútuos entre as duas Américas gerariam um clima melhor para negócios, para a diplomacia, e outras atividades.

Desse modo, as demandas dos empresários estadunidenses por uma maior competência cultural eram parte de um discurso mais amplo sobre como ganhar os mercados sul-americanos, uma vez que:

Suas demandas por maior competência cultural fizeram parte de um discurso mais geral sobre como ganhar mercados sul-americanos, um discurso implantado em livros de aconselhamento para comerciantes e fabricantes, em artigos de especialistas sobre comércio e navegação dos EUA e em literatura promocional publicada pela Secretaria Internacional das Repúblicas Americanas. Esse discurso enfatizou a necessidade de estabelecer bancos norte-americanos na região, a conveniência de linhas de navegação direta para portos sul-americanos e a urgência de melhorar a forma como os exportadores conduziam seus negócios [...]. Mais informação sobre as práticas alfandegárias e um conhecimento mais sutil das preferências dos consumidores completaram a lista de preocupações do comércio sul- americano como interpretadas pela retórica comercial. [...] A comunidade empresarial buscou cada vez mais conhecimento cultural nos anos 1920. Em 1920, a Convenção Nacional de Comércio Exterior (reunida em São Francisco) recomendou que os agentes de negócios dos EUA tivessem “conhecimento preciso dos mercados estrangeiros, com conhecimento prático de línguas estrangeiras e amplo conhecimento das condições econômicas, sociais e políticas que prevalecem no exterior.” (Lord 1921, 167). A comunidade empresarial argumentava que as Universidades e faculdades assumiram o desafio de formar homens em comércio exterior, mas o currículo era prático demais e carecia de conteúdo nas ciências humanas. Era necessário maior treinamento na história e nas literaturas do mundo. (SALVATORE, 2016, p.22-23. Tradução nossa.)

Veremos, no próximo capítulo, que a União Pan-Americana (UPA), presidida por mais de vinte anos por um destes acadêmicos estudados por Salvatore, Leo S. Rowe, teve papel fundamental no sentido de promover a apresentação da América ao Sul dos Estados Unidos para o público norte-americano. Além disso, no terceiro capítulo desta tese, veremos que Rowe, por meio da UPA, interpelou diretamente um importante intelectual brasileiro, Manuel de Oliveira Lima, sobre temáticas diversas. Este dado, observável por meio da correspondência pessoal do brasileiro, nos auxiliará a compreender a amplitude do projeto descrito por Salvatore, o qual destaca que: “Ao estudar a formação do ‘conhecimento regional’, é muito importante prestar atenção à interação entre intelectuais internacionais e locais, entre estudiosos estrangeiros e informantes nativos”. (SALVATORE, 2016, p.15. Tradução nossa.).

A partir da revisão bibliográfica desenvolvida até aqui, é possível observar que, ao mesmo tempo em que o pensamento latino-americano do final do século XIX pode ser lido como uma resposta à política expansionista e imperialista dos Estados Unidos, o próprio pan- americanismo, enquanto desdobramento desta política e justificativa ideológica dela, vai se constituindo em relação ao pensamento latino-americano, buscando contrapô-lo e/ou ser alternativa conformista a ele. Ao cotejarmos este cenário com as interpretações de Mignolo e Salvatore acima expostas, é possível sugerirmos que é pela via da aproximação ao discurso conservador sobre a América Latina anterior à ascensão do pensamento latino-americano que o discurso pan-americanista se apresenta. Como veremos adiante, um dos seus subprodutos é a exclusão de boa parte da população da América, notadamente dos negros e indígenas. Sob a justificativa de incluir todas as nacionalidades da América (que, como vimos, enquanto narrativas sobre o pertencimento nacional excluíam vastas camadas de sua população), o discurso pan-americano reúne as nacionalidades excludentes em um manto supranacional, o qual reserva um espaço privilegiado aos norte-americanos, autorepresentados como os detentores do receituário da modernização e do progresso49. Ele é, nesse sentido, uma extrapolação do discurso das elites criollas do século XIX, as quais aderiram à conveniente ideia de latinidade para reafirmar seus laços com a Europa, especialmente com a França, e recalcar a presença indígena e africana na composição dos jovens estados. A mudança que se opera no discurso pan-americano é que o elemento a ser ressaltado é o norte-americano, a

49 Agradeço aqui a colocação da professora Cláudia Wasserman na banca de qualificação deste

trabalho. A professora sugeriu que a ideia de pátria ainda estava em questão quando da adesão (ou não) de muitos intelectuais brasileiros ao pan-americanismo.

América anglo-saxônica. Ela que é o norte e o guia, não mais a Europa. É uma definição do que é ser americano (do Sul ou do Norte) que se dá pela negação. É não ser afro-americano, nem nativo-americano/indígena. Ao prevalecer este discurso do não ser, todos aqueles que são, ou seja, mais da metade da população no caso de muitos estados do continente americano, são relegados à obliteração e à baixa representatividade.

Dessa forma, podemos afirmar que a ideia de pan-americanismo, a qual era pouco inclusiva em relação aos povos indígenas e à população de origem africana, parece uma forma de dar continuidade e acentuar a ideia conservadora e eurocêntrica de latinidade, que, como vimos, estava, desde fins do século XIX, perdendo espaço para as vertentes mais críticas de pensamento sobre a América Latina.

É preciso ressaltar que, para que o pan-americanismo tomasse forma, houve significativo investimento por parte de múltiplos atores. Tal investimento se manifesta em um fenômeno complexo e amplo. Nas linhas a seguir daremos continuidade à busca pela compreensão de suas diferentes manifestações.