• Nenhum resultado encontrado

Para compreendermos melhor o pan-americanismo como um empreendimento de estado, precisamos nos deter um pouco em algumas das iniciativas para a sua promoção. As conferências pan-americanas são, neste caso, importantes eventos. A primeira Conferência Internacional de Estados Americanos (posteriormente conhecida como Conferência Pan- Americana) foi realizada em Washington, de outubro de 1889 a abril de 1890. Como podemos obervar na tabela abaixo50, ao todo foram realizadas dez conferências, sediadas em diferentes países51.

Tabela 1: Local e data das Conferências Pan-Americanas

Cidade/País Ano

Washington DC (EUA) 1889-1890

Cidade do México (México) 1901-1902

Rio de Janeiro (Brasil) 1906

Buenos Aires (Argentina) 1910

50 Tabela elaborada com base nas informações disponíveis no verbete “Conferências Pan-americanas”,

do dicionário de conceitos históricos da Primeira República (CPDOC) de autoria de Leslie Bethell.

51 Devido ao recorte temporal desta pesquisa, nas páginas seguintes serão analisadas apenas sete das

Santiago de Chile (Chile) 1923 Havana (Cuba) 1928 Montevidéu (Uruguai) 1933 Lima (Peru) 1938 Bogotá (Colômbia) 1948 Caracas (Venezuela) 1954

Segundo Lucas Minella (2013), na Primeira Conferência Pan-Americana os países do continente haviam sido convidados pelos Estados Unidos, que elaboraram a agenda do encontro com dois pontos fundamentais: uma proposta de união aduaneira continental, e outra de criação de um sistema de arbitragem para os conflitos interamericanos. Os dois objetivos, contudo, fracassaram devido à oposição latino-americana, especialmente da Argentina, que contrapunha o slogan monroísta “América para os Americanos” com o dito “América para a humanidade”. O Brasil, por sua vez, após a proclamação da República, passou a sinalizar positivamente às propostas de acordo diretamente com os EUA52.

Além destas questões, neste primeiro encontro foi debatida uma proposta baseada na Doutrina Calvo53 que sustentava o tratamento igual entre estrangeiros e locais nos países americanos, isto é, que os primeiros teriam garantidos os mesmos direitos dos segundos, e, por outro lado, não poderiam exigir tratamento especial. Desse modo, na prática, “o acordo

52 O monroísmo é fundamental para compreendermos o pan-americanismo. Nesse sentido, Flávia Ré

(2010), ao estudar os debates em torno do pan-americanismo durante os anos iniciais da Primeira República (1889-1912), associa sua gênese ao monroísmo, cristalizado na declaração da Doutrina Monroe de 1823, considerada um marco no sentido de estabelecer limites à intervenção europeia na América, agora sob a vigília, protetora e interventora, dos Estados Unidos. Apesar de uma postura isolacionista em sua política externa até o final do século XIX (BUENO, 2004), a referida doutrina serviu para atenuar as tentativas europeias de intervenção no continente americano. Após a crise econômica dos anos 1870, contudo, os EUA alteram sua política externa e passam a envidar esforços no sentido de se aproximar dos países latino-americanos com interesse evidentemente econômico – a busca por mercados e extensão de sua política protecionista para os países do “resto” da América. Em plena Era dos Impérios (HOBSBAWM, 2006), havia o interesse norte-americano em estabelecer sua influência sobre o subcontinente. Foi neste cenário que se deu a convocação da I Conferência Pan-americana de 1889. Mal recebida pela maioria das partes, a Conferência não foi propriamente um sucesso, mas a sua repercussão no Brasil foi significativa. Até o ano de 1891 os EUA haviam reconhecido a República brasileira, apoiado o Brasil na questão fronteiriça de Palmas, e o Brasil havia assinado um acordo de comércio com o país do Norte – o desastroso acordo Blaine/Mendonça. Além disso, os norte-americanos passaram a ter apoio brasileiro nas Conferências Pan-americanas.

53 Elaborada por Carlos Calvo, historiador e diplomata argentino, “determina que os investidores em

países estrangeiros só podem apelar aos tribunais do Estado onde seus capitais estão investidos, impossibilitando assim a cobrança das dívidas pela força.” (SUPPO, 2003, p.16). O livro em que Carlos Calvo expõe sua doutrina foi publicado em 1863 e se intitula Direito Internacional Teórico e Prático da Europa e América.

impediria que os interesses privados de sujeitos e companhias agindo fora de seu território nacional pudessem ser defendidos pelo corpo diplomático ou através do exercício da força por seu país de origem, estando sujeitos, portanto, somente às leis do país em questão.” (MINELLA, 2013, p. 45). Este ponto era uma exigência direcionada para os Estados Unidos, que já acumulava um histórico de interferências no México, no Caribe e América Central. Apenas os Estados Unidos (e o Haiti, que se absteve) não foram favoráveis à adoção de uma cláusula pautada pela Doutrina Calvo para reger as relações interamericanas. A proposta não foi implementada.

A Segunda Conferência Pan-Americana (1901-1902) aconteceu na Cidade do México. Este encontro aconteceu logo após a crise na Venezuela e da independência de Cuba.54 A questão da doutrina Calvo veio à tona novamente, mas EUA se negaram a aderir. Este encontro não rendeu resultados significativos. O ínterim entre ele e a terceira conferência destacou-se por mais duas situações que marcaram as relações internacionais interamericanas. Uma delas foi a construção do Canal do Panamá. A situação se deu da seguinte forma: o Senado colombiano rejeitou a proposta de construção de um canal no istmo do Panamá, obra esta que previa a soberania dos EUA sobre o local. Em função disso, os EUA contribuíram para uma revolta local no Panamá, que se separou da Colômbia e instalou um governo ligado à companhia construtora.

Antes da questão do canal do Panamá, em dezembro de 1902, Inglaterra e Alemanha anunciariam que bloqueariam os portos venezuelanos para forçar o pagamento de dívidas que o Estado tinha com instituições daqueles países. Alegando não haver tomada do território venezuelano, os EUA decidiram não agir. Este bloqueio durou três meses e forçou a Venezuela a aceitar uma comissão mista de arbitragem. Um importante efeito desta intervenção foi a elaboração da proposta da doutrina Drago:

54 Alguns dos seus antecedentes são importantes para compreendermos a atmosfera na qual este

encontro se realizou. Em 1895, em razão de conflitos com Guiana Inglesa, a Venezuela pediu o apoio dos EUA, mas o resultado foi desastroso: EUA arbitrou a questão e a Venezuela perdeu parcela de seu território para a Inglaterra. O recado dos EUA para Inglaterra era evidente: nada mais poderia ser resolvido no continente sem a sua intervenção. Também no ano de 1895 estoura em Cuba a revolta contra o Império espanhol, na qual os EUA intervêm. O resultado, expresso no Tratado de Paris de 1898, foi que os EUA obtiveram as ilhas de Porto Rico, Guam e as Filipinas, estendendo seu domínio pelo Pacífico. Além disso, a partir de então a autoimagem promovida pelos EUA é a de que haviam libertado Cuba do domínio espanhol, sendo a nação “irmã” mais poderosa. Com a participação norte- americana, no entanto, foram impostas diversas limitações à soberania de Cuba, sendo um dos principais exemplos a Emenda Platt (incluída na Constituição de Cuba), segundo a qual Cuba cederia perpetuamente parte de seu território (Guantánamo), assim como seria obrigada a vender terras para mineração e instalação de bases navais dos EUA. O governo estadunidense também teria direito de intervir para “preservar a independência” cubana e manter a lei e a ordem.

Diante da crise do bloqueio dos portos venezuelanos o Ministro do Exterior argentino, José Maria Drago, propôs ao na época Secretário de Estado John Hay, que o país subscrevesse ao princípio coletivo americano de que não seria aceita, por parte das Repúblicas Americanas, a cobrança de dívidas com o uso de força militar, seja por ameaça ou ocupação efetiva de territórios. O próprio Drago associou a sua proposta à Doutrina Monroe, tal como se a primeira decorresse logicamente da segunda. Esta é uma indicação importante acerca do que antes já foi sugerido; de alguma forma, a política externa de alguns países latino-americanos episodicamente via em uma apropriação multilateral da Doutrina Monroe uma possibilidade de proteção. Sua unilateralidade, porém, seria posta às claras pela resposta de Theodore Roosevelt à crise do bloqueio da Venezuela, que, após pressões internas, finalmente declarou-se contra a intervenção europeia no episódio do bloqueio dos portos venezuelanos. (BANDEIRA, 2007, p. 251, APUD MINELLA, 2013, p.64).

Esta proposta será alvo de diversas análises. Como veremos no terceiro capítulo, muitos dos intelectuais brasileiros da Primeira República viam nela a possibilidade de ampliação da doutrina Monroe e o ensejo de construir um pan-americanismo “multilateral”. Como resposta à intervenção europeia na Venezuela e à Doutrina Drago, no mês de dezembro de 1904 foi enunciado o famoso corolário Roosevelt à Doutrina Monroe. Para Minella, o corolário tornava mais explícito o caráter unilateral da Doutrina e a vontade estadunidense de assim mantê-la, diminuindo a possibilidade de que países latino-americanos procurassem invocá-la de modo coletivo, como propunha a formulação de Drago. O Corolário Roosevelt é um marco que formaliza o que se chamaria de política do big stick para a América Latina, que perduraria, com suas variações, até 1933.55

A terceira Conferência Pan-Americana ocorreu no Rio de Janeiro (23 de Julho a 27 de agosto de 1906). Nela a Doutrina Drago foi bastante debatida, bem como o tema da cobrança compulsória de dívidas e da arbitragem. Esta conferência foi marcada por aliança de bastidores entre o Secretário de Estado norte-americano, Elihu Root, e Joaquim Nabuco, embaixador do Brasil em Washington: os dois países tinham interesse em afastar o tema da arbitragem obrigatória. Os EUA não se interessavam no estabelecimento de restrições à sua política agressiva e o Brasil temia uma aliança hispano-americana em questões de fronteira. Dessa forma, os dois países impediram o avanço das negociações.

55 Segundo Minella (2013), ainda em 1904, o primeiro ato pós-corolário foi a ocupação da República

Dominicana e o controle da alfândega do país por autoridades americanas, a fim de garantir o pagamento da dívida do país às potências europeias, evitando assim a intervenção.

A quarta Conferência Pan-Americana aconteceu em Buenos Aires, em 1910. Nela, os assuntos potencialmente polêmicos foram evitados. Apesar disso, é importante destacar que a delegação brasileira tentou introduzir no programa de debates um elogio à Doutrina Monroe, que suscitou fortes críticas de outros países latino-americanos, em especial a Argentina. Foi também nessa Conferência que a Agência Comercial das Repúblicas Americanas teve suas funções ampliadas e passou a chamar-se União Pan-Americana.

No ano de 1923 foi realizada a quinta Conferência Pan-Americana, em Santiago, no Chile. O intervalo entre esta e a quarta conferência se deve ao fato de que a sequência dos encontros foi interrompida devido à Primeira Guerra Mundial. O ínterim entre as duas conferências foi novamente tumultuado. Durante o governo de Woodrow Wilson houve a tentativa de imposição de outra “emenda Platt”, agora ao Haiti, no ano de 1914. O Haiti recusou e os EUA interviram, com a elaboração de nova uma Constituição para este país. Este período também foi marcado pela Revolução Mexicana (1910). Não sendo reconhecido pelos EUA, o México não participou desta Conferência. Foram feitas diversas críticas à atuação dos EUA, especialmente da delegação da Colômbia.56

A sexta Conferência Pan-Americana ocorreu em Havana, no ano de 1928. Os EUA esperavam críticas à sua política intervencionista (Nicarágua, 1926), mas os países latino- americanos não conseguiram se articular, por diversas questões. A Argentina, por exemplo, queria fazer a crítica, mas o Brasil não apoiou. Nesse sentido, Minella chama a atenção para o fato de que, em algumas das intervenções acima citadas, o governo dos Estados Unidos implantou governos aliados, que obviamente apoiavam as políticas estadunidenses nas Conferências. Isso deve ser levado em conta sempre que pensamos a posição das Repúblicas quanto ao sistema interamericano.

56 Sobre a postura dos EUA na Revolução Mexicana, é interessante observar que “O significativo,

porém, da questão da Revolução Mexicana em termos da investigação sobre o pan-americanismo, é que a nova constituição de 1917 dizia, no artigo 27, que a propriedade de terras não garantia o direito de uso do subsolo, que precisaria de autorização do governo, e colocava uma restrição importante: companhias estrangeiras poderiam explorar os recursos do subsolo mexicano apenas se se comprometessem a assumir, por contrato, a ideia da Doutrina Calvo, isto é, de abrirem mão de recorrer a seus países de origem em casos de conflito com o governo nacional. Essa era uma exigência antiga de países latino-americanos nas conferências, que agora tentava se concretizar na Constituição mexicana. A pressão estadunidense, em defesa das companhias petrolíferas no país, se deu no sentido de exigir a não retroatividade do artigo 27; a tática usada para efetuar a pressão, já desgastados os meios de intervenção militar durante o processo da Revolução Mexicana, foi o não reconhecimento do novo governo do México. A política do não-reconhecimento foi usada pelos Estados Unidos; essa política funcionava como um convite à ação da oposição, que, ao agir, teria o apoio da potência continental (CONNELL-SMITH, 1974, p. 162). Em 1923, somente após a 5ª Conferência, sob pressão, o governo mexicano aceitou a não-retroatividade da medida constitucional, e foi, imediatamente, reconhecido pelos Estados Unidos.” (MINELLA, 2013, p. 67)

A sétima Conferência Pan-Americana se realizou em Montevidéu, de 3 a 26 de dezembro de 1933. No período entre 1928 e 1933 ocorreram alguns eventos que são indicativos do avanço do diálogo sobre o pan-americanismo: a Primeira Reunião do Instituto Pan- Americano de Geografia e História; o Congresso Pan-Americano de Reitores, Decanos e Educadores e a fundação da Comissão Interamericana de Mulheres. Quanto aos resultados da conferência de Montevidéu, podemos apontar que parte da questão da não intervenção, defendida por vários países latino-americanos, foi aceita pelos Estados Unidos. Aqui, porém, dois fatores relacionados entram em jogo: a crise de 1929 e a mudança de orientação da política externa estadunidense do big stick para a good neighbor policy.57