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Segundo o historiador camaronês Achille Mbembe (2014), no decorrer do período atlântico, a Europa, antes uma pequena província do Planeta, inscreveu-se progressivamente em uma posição de comando em relação ao restante do mundo. Paralelamente a isso, ao longo do século XVIII, surgiram vários discursos acerca da natureza, da especificidade e das formas dos seres vivos, bem como das qualidades, traços e características dos seres humanos “e até de populações inteiras, que são especificadas em termos de espécies, gêneros ou de raças classificados ao longo de uma linha vertical.” (MBEMBE, 2014, p.37). Estas classificações, por sua vez, escalonaram e rotularam diferentes povos mundo afora. Nas precisas palavras do autor:

O alargamento do horizonte espacial europeu decorre juntamente com o controle e a contração da sua imaginação cultural e histórica e, até, em alguns casos, com um relativo enclausuramento do espírito. Efetivamente, uma vez identificados e classificados os gêneros, as espécies e as raças, nada resta senão indicar através de que diferenças eles se distinguem uns dos outros. Este relativo enclausuramento do espírito não significa necessariamente a extinção da curiosidade propriamente dita. Porém, desde a Alta Idade Média até a época das Luzes, a curiosidade enquanto faculdade do espírito e sensibilidade cultural era inseparável de um impressionante trabalho de efabulação que, quando incide sobre mundos outros, confunde sistematicamente as fronteiras entre o credível e o inacreditável, o maravilhoso e o factual [...]. O momento

gregário do pensamento ocidental será então aquele ao longo do qual, ajudado pelo instinto imperialista, o ato de captar e de apreender ir-se-á progressivamente desligando de qualquer tentativa de conhecer a fundo aquilo de que se fala. (MBEMBE, 2014, p. 38-39)

O poder de enunciar e de classificar, emanado do colonialismo, teve seus efeitos perversos na América também. O ato de nomear os novos espaços a partir da experiência e do olhar do colonizador foi um deles. Atentemos, nesse sentido, para aquilo que já chamava a atenção de Franz Fanon (2008), em seus escritos dos anos 1950: a questão da língua e de seu papel na formação dos sujeitos humanos. Para este autor, a colonização requer mais do que a subordinação material de um povo: “Ela também fornece os meios pelos quais as pessoas são capazes de se expressarem e se entenderem. Ele identifica isso em termos radicais no cerne da linguagem e até nos métodos pelos quais as ciências são construídas. Trata-se do colonialismo epistemológico” (GORDON, L, 2008, p.15). Para formulamos a relação destas questões com o tema deste capítulo, é importante atentarmos às considerações de um conjunto de diferentes autores. Dessa forma, as reflexões do argentino Walter Mignolo (2007) são, para esta discussão, fundamentais.

O autor é um estudioso que se filia às teorias decoloniais. Em texto intitulado “Desobediencia epistémica. Retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad”, Mignolo (2010) explica o contexto de surgimento destes estudos. Segundo ele, durante a modernidade, a produção do conhecimento foi configurada por um único modelo epistemológico, como se o mundo fosse monocultural, eurocêntrico. Desde meados dos anos 1970, porém, a ideia de que o conhecimento era também um instrumento de colonização e que portanto a descolonização, em sentido amplo, implicava a descolonização do saber e do ser foi expressa de diversas formas. Na área da antropologia, o autor cita o antropólogo Darcy Ribeiro como exemplo. Na filosofia e sociologia, Enrique Dussel e Orlando Fals Borda.

Mignolo explica que Dussel transladou a noção de que na economia existem centros e periferias para o âmbito do conhecimento e da filosofia. Nos estudos coloniais Robert Ricard refere-se à “conquista espiritual do México”. Serge Gruzinski segue seu exemplo na Colonização do Imaginário. Em 1986 Rodena Adorno publicou sua obra sobre Guamán Poma de Ayala argumentando que o livro deste foi um ato de descolonização. Nos final dos anos 1980, o sociólogo peruano Aníbal Quijano apresentou o conceito de colonialidade como sendo a parte invisível e constitutiva da modernidade. Em artigo de 1989 Quijano afirma que se o conhecimento é um instrumento imperial de colonização, uma das tarefas urgentes é

descolonizar o conhecimento. Ele também critica a noção de totalidade e apresenta um projeto de desprendimento. Conforme suas formulações, a matriz colonial do poder é uma estrutura complexa de níveis entrelaçados onde a colonialidade do poder se vincula ao controle da economia, da autoridade, da natureza, dos recursos naturais, do gênero, da sexualidade, da subjetividade e do conhecimento36.

Walter Mignolo é, portanto, um profundo crítico do colonialismo e é nesse sentido que ele analisa o tema de seu livro intitulado “La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial” (2007). Segundo o autor, a ideia de América foi uma invenção europeia que eliminou as denominações dadas pelos povos que viveram no continente durante séculos antes que Colombo o “descubrisse”. O fenômeno tem sido descrito como “desculturação”, “despossessão” (material e espiritual), e em épocas mais recentes, como “colonização do saber” e “colonização do ser”. É por isso que ele indica que devemos considerar a “modernidade/colonialidade” como dois lados de uma mesma moeda e não como duas formas de pensamento separadas: não se pode ser moderno sem ser colonial e se nos encontramos no extremo colonial do espectro, devemos negociar com a modernidade, pois é impossível ignorá- la. Nas palavras do autor:

Quando nos despreendemos da crença natural de que a história é uma sucessão cronológica de fatos que conduzem à modernidade e colocam no centro da cena a espacialidade e a violência do colonialismo, a modernidade se associa intimamente com a colonialidade em uma distribuição espacial de nós que formam parte de uma organização estrutural e já não linear da história. Por outro lado, como a modernidade e a colonialidade são duas caras da mesma moeda, cada nó, além de ser parte de uma estrutura e não de uma linha, é heterogêneo em vez de homogêneo. Então, não se trata do “fim da história”, mas sim do “fim da ideia hegeliana de história”. Se em vez de conceber a história como um processo cronológico linear, pensamos em uma “heterogeneidade historico-estrutural”, em processos históricos que interatuam, entendemos qual é a função da “ideia de América” e da de “Americanidade”, e nos daremos conta de que quer dizer que a modernidade e a colonialidade são duas caras da mesma moeda.” (MIGNOLO, 2007, p.72. Tradução nossa.)

36 Algumas das fontes da descolonialidade encontram-se na Nueva Crónica y Buen Gobierno de

Guamán Poma de Ayala; no tratado político de Ottobah Cugoano; no ativismo e na crítica descolonial de Mahatma Ghandi; na fratura do Marxismo em seu encontro com o legado colonial nos Andes; em José Carlos Mariátegui; na política radical o giro epistemológico de Amilcar Cabral, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Rigoberta Menchú, Gloria Anzaldúa, entre outros. (MIGNOLO, 2010).

Vemos, então, que para este autor a ideia de América não pode separar-se da ideia de colonialidade: o continente em sua totalidade surgiu como tal, na consciência europeia, como uma grande extensão de terra da qual se apropriar e um povo que deveria evangelizar e explorar. Isso resultou na colonização dos territórios e também das subjetividades. A colonização do ser, por sua vez, consiste em nada menos que em gerar a ideia de que certos povos não fazem parte da história. Assim, enterradas sob a história europeia do descobrimento estão as histórias, as experiências e os relatos conceituais silenciados dos que ficaram de fora da categoria de seres humanos, de atores históricos e de entes racionais.

O processo de inferiorização dos não-europeus, por outro lado, esteve diretamente ligado à ideia de raça. Quando o termo “raça” (principalmente no século XIX) substituiu “etnia” e assim se colocou a ênfase no “sangue” e na “cor da pele” em detrimento de outras características da comunidade, “raça” se transformou em sinônimo de “racismo”:

O “racismo” surge quando os membros de certa “raça” ou “etnia’ têm o privilégio de classificar as pessoas e influenciar nas palavras e nos conceitos desse grupo. O racismo tem sido uma matriz classificatória que abarca não apenas as características físicas do ser humano (sangue e cor da pele, entre outras), mas que se estende ao plano interpessoal das atividades humanas, que compreende a religião, as línguas [...] e as classificações geo-políticas do mundo (Oriente-Ocidente, Norte-Sul, Primeiro, Segundo, Terceiro Mundo, o Eixo do Mal, etc.). A complexa matriz racial do mundo segue em pé, algo que se faz evidente quando observamos o mundo que nos rodeia e quando escutamos a retórica do neoliberalismo [...]. É importante recordar que a categorização racial não se aplica unicamente às pessoas, mas também às línguas, às religiões, aos conhecimentos, aos países e aos continentes. (MIGNOLO, 2007, p.42. Tradução nossa.)

Já a ideia de América Latina relaciona-se ao século XIX, quando se configuraram as designações de América Saxônica, ao Norte, e de América Latina, ao Sul. Neste momento, “América Latina” foi o nome eleito para denominar a restauração da civilização da Europa meridional, católica e latina na América do Sul e, ao mesmo tempo, reproduzir as ausências (dos índios e dos africanos) do primeiro período colonial. Segundo o autor:

A história de “América Latina” posterior à independência é a história multicolor da comunhão voluntária ou involuntária das elites locais com a “modernidade” que entranhou o empobrecimento e a marginalização dos povos indígenas, africanos e mestiços. A “ideia” de América Latina é a triste celebração por parte das elites criollas de sua inclusão na modernidade, quando na realidade submergiram cada vez mais na lógica da colonialidade. (MIGNOLO, 2007, p. 81. Tradução nossa.)

A ideia de América Latina que se forjou na segunda metade do século XIX dependeu de outra, a de “latinidade”, surgida na França. Entre as antigas colônias ibéricas, a ideia de América Latina surgiu dos conflitos entre as nações imperiais: a França a necessitava para justificar sua missão civilizadora no sul e sua disputa por essa área de influência com Estados Unidos. Como país que aderiu à Reforma, a França pertencia ao mesmo grupo que a Inglaterra e a Alemanha; no entanto, era predominantemente latino e, portanto, historicamente se contrapunha ao mundo anglo-saxão.

Ao final do século XIX, em um contexto de avanço do imperialismo, os intelectuais e funcionários franceses utilizaram o conceito de “latinidade” para tomar a dianteira entre os países latinos que tinham interesse na América (Itália, Espanha, Portugal), mas também para enfrentar a contínua expansão dos Estados Unidos até o sul (que se faz evidente na aquisição da Louisiana durante o governo de Napoleão e na apropriação de amplas franjas do território mexicano).

Na América do Sul e nas ilhas do caribe espanhol, as elites de criollos brancos e mestiços adotaram a “latinidade” depois da independência para criar sua identidade pós- colonial. O argumento de Mignolo é que a “América Latina” não é um subcontinente, mas sim um projeto político das elites criollo-mestiças. Dessa forma:

A ‘latinidade’, como temos visto, é a consequência dos conflitos imperiais e coloniais do século XIX, e da forma em que se construíram as diferenças imperiais e coloniais. Enquanto na Europa o conceito permitiu que os intelectuais e políticos franceses estabelecessem uma diferença imperial com as forças do mundo anglo-saxão com as que estavam em disputa (Inglaterra e Alemanha), na América do Sul a ideia foi útil aos intelectuais e políticos criollos para autodefinir-se em contraposição com seu competidor anglo- saxão na América: Estados Unidos. Porém, o lugar da “América Latina” na nova ordem mundial foi o de uma configuração histórico-política e cultural subalterna. Para dizê-lo de outro modo, a diferença cultural que construíram os ideólogos do Império espanhol para justificar a colonização da América (por exemplo, a inferioridade dos índios e o caráter não-humano dos escravos africanos) se manteve e intensificou-se nas repúblicas independentes. Assim, depois da independência, a diferença colonial se reproduziu na diferença colonial interna. A ideia de latinidade contribuiu para disfarçar a diferença colonial interna com uma identidade histórica e cultural que parecia incluir a todos mas que, na realidade, produzia um efeito de totalidade, silenciando os excluídos. Portanto, a latinidade criou um novo tipo de invisibilidade para os índios e os descendentes de africanos que viviam na América Latina. (MIGNOLO, 2007, p. 111-112. Tradução nossa.)

Na primeira metade do século XIX, depois do surgimento de diferentes Estados-nação como consequência da independência da Espanha, a ideia predominante não era a de América

“Latina”, mas sim a de “Hispano-américa”. O autor recupera a interpretação do uruguaio Arturo Ardão, segundo o qual a ideia de América Latina se materializou na cumplicidade triangular da intelectualidade francesa, espanhola e criolla hispano-americana. Para Ardão, América Latina surgiu dentro do movimento de orientação das elites criollas sob a égide da França, uma vez que a Espanha “perdeu o trem da Modernidade” no século XVIII e a França passou a ser o modelo também dos intelectuais espanhóis.

Quem contribuiu para impor a ideia de “latinidade” na América Hispânica foi Michel Chevalier, intelectual francês. Para Chevalier a Europa tinha uma dupla origem: latina (romana) e teutônica (germânica). O primeiro compreendia os países e os povos meridionais e o segundo abarcava os países e povos do norte, incluída Inglaterra. A Europa latina era católica; a Europa teutônica, protestante. Projetando essa separação na América, Chevalier afirmava que os dois ramos, o latino e o germânico, se reproduziram no Novo Mundo. Assim como a Europa Meridional, a América do Sul seria latina e católica; América do Norte, por outro lado, teria uma população protestante e anglo-saxã37.

Por um lado, a noção de América Latina deu lugar à ideia de uma nova unidade continental, o quinto lado que se agregava ao tetrágono vigente do século XVI. Por outro lado, trouxe a ascensão da população de origem europeia e apagou a população indígena e afro38.

37 Outro intelectual importante para a formulação e difusão destas concepções foi o colombiano José

Maria Torres Caicedo, que, tendo escrito no século XIX, “foi uma figura chave na justificação e divulgação da ideia de ‘América Latina’. Segundo Torres Caicedo, existe uma América Anglo-saxã, uma América holandesa, uma América dinamarquesa, e assim sucessivamente; também existem uma América espanhola, uma América francesa e uma América portuguesa, e a este grupo se aplica o adequado nome científico de latina. Francófilo empedernido, Torres Caicedo viveu muito tempo na França e manteve boas relações com o poder francês. Ainda que seu nome seja um dos primeiros que vêem a mente quando se menciona o nome ‘América Latina’, não era o único com esses interesses, e de fato defendia uma postura geopolítica comum, que respondia aos interesses imperiais franceses. Certamente, Torres Caicedo não ‘representa’ todo o pensamento da época, mas se ‘representa’ a um setor da intelectualidade para o qual, até não faz muito tempo, a França representava o ideal da política e da cultura literária. A ‘latinidade’ passou a designar a um governo espanhol e português e a uma sociedade civil americana educada, que voltava o olhar para a França e dava as costas à Península Ibérica. Assim como John Locke, Davi Hume, Thomas Hobbes e outros pensadores britânicos se associam com a cultura política dos Estados Unidos, os nomes de Rousseau, Voltaire e Montesquieu aparecem ligados à cultura política da América Latina.” (MIGNOLO, 2007, p. 83. Tradução nossa.)

38 Segundo Armando de Melo Lisboa (2014), o termo América Latina ofusca a grande diversidade

cultural nela existente, dando continuidade ao processo colonizador de redução e submissão destas diferenças, sendo os não-europeus considerados raças inferiores. Assim, “ao invés de uma conotação puramente geográfica, impingiu-se uma categorização racial do continente, preconceituosa e desqualificadora das massas populares, mas que também acabará desclassificando socialmente todos que habitavam este subcontinente.” (LISBOA, 2014, p. 511). Este autor também aponta a debilitação progressiva do conceito de América Latina, manifesto em buscas por, inclusive, denominá-lo de outra forma, o que é por ele lido como uma forma de desobediência epistêmica: “Se as antigas civilizações daqui originárias tinham inúmeras denominações para estas terras (Tawantinsuyu, para

Portanto, a ideia de América Latina não era um ente já existente antes de se iniciar o relato que construiu a ideia de modernidade e, ao fazê-lo, imaginou um passado anterior (A Idade Média) e um espaço bárbaro (As Índias Ocidentais para uns e a América para outros). Por isso, na argumentação de Mignolo, América Latina é um personagem fundamental do relato da modernidade. A modernidade não é, tampouco, um ente que se desloca da Europa e chega a uma América Latina já existente que o estava esperando. Muito pelo contrário, América Latina é uma das consequências da refiguração do mundo moderno/colonial provocada pelo duplo processo de descolonização do continente americano e emancipação do europeu.39

É importante apontar, no entanto, a ressignificação da ideia de América Latina, que ocorre ao longo do século XX. Já na última década do século XIX, José Martí, escritor, ativista e ideólogo cubano, lançou uma nova e mais aberta versão do livro “Latinidad” com sua famosa proclamação política “Nuestra América”. O programa de Martí deu as costas aos projetos que colocavam a Europa no centro das referências de desenvolvimento e se voltou para as civilizações mesoamericanas (maias, incas, astecas). Depois de Martí, e depois do líder político e intelectual peruano José Carlos Mariátegui na década de 1920, a ideia da América Latina

a região andina; Anáhuac, México; Pindorama, Brasil...), está se tornando corrente renomear toda a América, especialmente a América Latina, como Abya Yala, vocábulo provindo da língua Kuna – onde significa terra de vida, terra madura – nação indígena que atualmente vive no litoral do Panamá. Zona geopolítica emblemática onde os primeiros genocídios se instalaram, América Central e Caribe hoje é lugar de fortes relações entre europeus, índios, negro e asiáticos, de intensas fermentações de convivialidade pós-colonial, multitudinária. Não é acidente que esta região ofereça uma expressão grávida de perspectivas descolonizadoras para todo o continente.” (LISBOA, 2014, p.516)

39 Nesse sentido, Maria Lígia Prado (2009), ao refletir sobre a questão das identidades, aponta que,

após a independência, as elites latino-americanas aspiravam consolidar sua dominação sobre as diversas sociedades nacionais, baseadas numa identidade homogênea que lhes garantisse a hegemonia política: “Assim, postularam-se como portadoras do ‘espírito civilizador’ e da ‘razão letrada’ que lhes conferiam legitimidade para colocar-se acima de negros, índios e mestiços e justificar seu poder. A repetição de imagens, símbolos, valores nos discursos dominantes pretendia construir uma identidade nacional que lhes reservasse esse lugar privilegiado. A desqualificação sistemática de los de abajo justificou sua exclusão da esfera política e garantiu a manutenção do poder das elites. Estas, porém, jamais conseguiram fazer desaparecer esse ‘outro’ negado e mostrado como inferior ou bárbaro. A despeito do esforço para que fossem esquecidos, os pobres, as mulheres, os índios, os negros, os mestiços emergiam e penetravam nos discursos políticos, nos romances, na pintura, indicando a heterogeneidade da sociedade. Mais ainda, os subalternos aprenderam a linguagem dos dominantes e foram capazes de formular suas reivindicações, empregando uma retórica própria - por exemplo, a do liberalismo no século XIX. Interessante é enfatizar que, no presente, boa parte dos intelectuais trabalha com a idéia de uma América Latina cuja cultura é mesclada, mestiça, híbrida. Ao lado das identidades nacionais, no fim do século XIX, a concepção de uma identidade latino-americana foi elaborada em oposição a um “outro” externo, os Estados Unidos. Tal sentimento de unidade ganhou força e adeptos, pois coincidia com a inauguração de uma agressiva política externa norte-americana traduzida em intervenções armadas no Caribe e na América Central.” (PRADO, 2009, p. 69-70)

sofreu uma mudança radical nos anos 1960 através da filosofia da libertação e da teoria da dependência. Também na década de 1960, a descrição de Franz Fanon acerca do colonialismo mudou os termos das conversas em que os projetos imperiais franceses moldaram a ideia de “Latinidade” (MIGNOLO, 2007).

O livro organizado por Cláudia Wasserman e Eduardo Devés-Valdés, intitulado “Pensamento latino-americano além das fronteiras nacionais” nos auxilia a compreender o percurso intelectual de pensadores latino-americanos e caribenhos que ultrapassaram “o âmbito do Estado nacional e realizaram reflexões sobre as sociedades latino-americanas como um conjunto articulado e orgânico, seja no aspecto subcontinental ou regional (América do Sul, América Andina, América Central ou Caribe)” (WASSERMMAN; DEVÉS-VALDÉS; 2010, p. 7). São vários os autores analisados no livro, mas para fins de organização das ideias desta tese, é conveniente nos determos em três deles: José Martí, Mariátegui e Ruy Mauro Marini.