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2 TELENOVELA BRASILEIRA NA REDE GLOBO: DA BUSCA POR

2.1 BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA

A abordagem de temas de interesse público é uma característica forte da telenovela brasileira, sobretudo das obras apresentadas pela Rede Globo de Televisão a partir da década de 1990. Entretanto, se a atualidade permite identificar um padrão estético e um modo genuinamente brasileiros de se fazer novelas de televisão, é porque esse tradicional produto da cultura de massa nacional foi alvo de inúmeras transformações que acompanharam e refletiram a história e a sociedade do Brasil nos últimos 60 anos. Tais mudanças influenciaram também a trajetória e o formato da televisão brasileira.

O modelo de telenovela nacional, que se consagrou mundialmente, começou a ser gestado no fim dos anos de 1960. Especialistas em telenovela apontam Beto Rockfeller (TV Tupi, 1968), como o primeiro expoente de um novo padrão de teledramaturgia brasileira, caracterizado por um estilo narrativo moderno, capaz de incorporar ―um realismo que permite a cotidianização da narrativa” (MARTÍN-BARBERO, 2004, p.26), sem romper com a estrutura clássica do melodrama.

Inovadora, essa telenovela, protagonizada por uma personagem com características de anti-herói, introduziu o seguimento livre da história, os diálogos coloquiais e a livre ação dos atores em cena. Além disso, mostrou uma maior conexão entre a ficção e realidade social que ela espelhava em uma época na qual

Ainda se usava como base de inspiração os melodramas argentinos, mexicanos e cubanos, que por sua vez, continuavam a copiar a linguagem do folhetim francês do século XIX; por isso, as histórias muitas vezes eram ambientadas na Europa ou em paisagens exóticas, como o Saara, e ainda carregavam um forte ―ranço maniqueísta‖, com tramas simplistas (...)sem muito cuidado com a propagação de cultura e educação através do entretenimento. Aquelas primeiras telenovelas não apresentavam nenhuma preocupação política ou social; ao contrário, elas pareciam mesmo querer transmitir um ―sentido de alienação aos espectadores, de propósito‖

(PERET, 2005, pp.72-4).

Longe de ser uma prerrogativa das telenovelas, essa estética era reflexo do modelo de televisão brasileira em seus primeiros anos de história. Nessa época, o ideal de progresso cultural que guiou a empreitada dos primeiros homens de televisão nacional refletiu-se em uma programação inicialmente marcada pela erudição e excelência técnica: peças de teleteatro baseadas em textos célebres da

literatura mundial e seriados bem produzidos importados dos Estados Unidos encarregavam- de traduzir em imagens essa noção de requinte e tecnologia.

No entanto, havia uma discrepância entre o ideal de modernidade apresentado pela televisão brasileira e as deficiências materiais e gerenciais do incipiente mercado televisivo nacional de então. Assim, as primeiras tentativas de produção efetivamente locais esbarravam na falta de recursos financeiros, tecnológicos e de mão-de-obra especializada. A solução para esse impasse mostrou-se relativamente prosaica: transferir a estrutura e o esquema produtivos próprios do rádio para a televisão (Ortiz, 1994).

Nesse contexto, as primeiras telenovelas eram, na verdade, radionovelas adaptadas para a televisão. Além de seguirem o mesmo esquema de patrocínio de multinacionais do segmento de higiene e beleza daquelas, essas primeiras obras também reproduziam a linguagem radiofônica e exageravam no melodrama de origem bem latina.

A Rede Globo desempenhou um papel fundamental para a consolidação de uma identidade nacional para a televisão e a telenovela brasileiras. A partir de um polêmico acordo com o grupo norte-americano Time Life7, o canal, fundado em 26 de abril de 1965, passou a contar, além do capital financeiro, com o conhecimento e o ferramental técnico, administrativo e comercial do parceiro estrangeiro. Assim, em apenas quatro anos, em 1969, transformou-se em rede nacional (MATTELART, 1998).

A partir da constituição da rede, a Globo criou uma grade de programação.

Nessa época, e sob influência do sucesso de Beto Rockfeller, da TV Tupi, o canal passou a investir em telenovelas realistas ambientadas no Brasil contemporâneo.

Saíram as tramas de ―capa e espada‖, para dar lugar a tramas genuinamente brasileiras, como Véu de Noiva, ambientada na cidade do Rio de Janeiro, no fins dos anos de 1960.

Com o fortalecimento da produção em teledramaturgia e a ancoragem na grade de programação, a Rede Globo começa sua ascensão no mercado televisivo, tanto nacional quanto mundial, ao concentrar, em sua faixa horária mais nobre, o

7 Contrariamente à legislação da época, o conglomerado estrangeiro aplicou mais que o percentual de 30%, aprovado por lei, de capital na empresa brasileira. A negociação só se efetuou depois da intervenção do então presidente do Brasil, Marechal Castelo Branco.

principal noticiário da televisão brasileira – o Jornal Nacional –, em torno do qual orbitam, inicialmente, quatro telenovelas cujos estilos variavam conforme o horário de exibição8.

A partir de então, a organização de horários da emissora passa a incidir diretamente sobre o cotidiano da audiência. De acordo com Fadul,

Tudo é feito para garantir o acompanhamento ininterrupto da telenovela: o momento dos comerciais é usado para comentários e discussão dos conflitos da trama. Todos se sentem envolvidos e incentivados a opinar.

Uma vez que é um evento familiar, as discussões continuam mesmo depois que a transmissão acabou; os comentários e opiniões sobre a novela são trocados no círculo familiar, com vizinhos, no trabalho e na escola (FADUL, 1993, p. 21).

Essa capacidade de mobilização social se acentuou a partir década de 1990, quando a telenovela de horário nobre da Rede Globo passou a lançar mão de recursos narrativos capazes de promover o diálogo entre histórias de ficção escritas sob o signo do cotidiano e a realidade social na qual estão inseridas. Com o passar do tempo, esse esforço em combinar elementos de familiaridade, cotidianidade e realidade, por sua vez, passou a servir não apenas para reforçar a veracidade e a verossimilhança contida no texto ficcional. Para além disso, investiu a ficção televisiva de certo valor de responsabilidade social, como pode ser verificado, por exemplo, na abordagem de temas de interesse público e na proposição de debates acerca de questões prementes da realidade social de então (Fadul, 2000).

Apesar do discurso de compromisso social, o padrão estético conferido pela Rede Globo à telenovela brasileira revela também uma dimensão ética que propaga os ideais capitalistas da burguesia industrial. Para tanto, habitualmente recorre a, pelo menos, três opções estéticas que contêm princípios éticos. Em primeiro lugar, aparecem as histórias contemporâneas centradas ―no mundo das classes médias urbanas brasileiras, com seus dramas e suas aspirações‖ (Litewski apud MATTELART, 1998, p. 31). Em seguida, destaca-se o estilo de vida próprio da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro e, consequentemente, o sotaque característico

8 Conforme Campedelli (2005), tem-se: às 18 horas — histórias românticas, comédias românticas, adaptações literárias e histórias de época destinadas às donas-de-casa e aos adolescentes; às 19 horas — comédias e chanchadas, para o mesmo público, além dos jovens; às 20 horas — tramas voltadas para a toda família, que enfocam o dia a dia familiar. É o tipo de ―novela-verdade‖

(CAMPEDELLI, 1987, p. 33); e, às 22 horas — a―telenovela-alternativa‖, dedicada à experimentação estilística e à sátira social.

dessa região da capital fluminense, legitimado como o padrão de fala do brasileiro (GOMES, 1994).

Na opinião de Lopes (2009), esse conjunto de opções diz respeito à intenção, por parte da emissora, de demonstrar os padrões de consumo necessários à integração na sociedade brasileira dita moderna. Segundo a autora, ainda que, por vezes, seja possível ver nas telenovelas brasileiras críticas a valores tradicionais, especialmente aos que versam sobre questões de gênero e sexualidade, os enredos ocupam-se, predominantemente, de reproduzir e difundir os modelos ―legítimos‖ de homem, mulher, família e felicidade. Essa característica pode ser observada, por exemplo, nas telenovelas de autoria do dramaturgo Manoel Carlos.